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POBREZA: UM CENÁRIO A ENFRENTAR

3.1 DO QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE POBREZA?

Uma possível obviedade do conceito de pobreza não resiste aos primeiros questionamentos mais aprofundados, porém, para ser enfrentada, ela precisa ser entendida, definida. Não existe consenso acerca da definição de pobreza e das formas para sua mensuração; no entanto, três conceitos são comumente encontrados: pobreza absoluta, pobreza relativa e pobreza subjetiva.

Sinteticamente, Gary Fields (1999) explica que existe o conceito de “pobreza absoluta” e “pobreza relativa”. A absoluta possui basicamente quatro formas de se calcular: a contagem de número de pobres, o índice de incidência da pobreza, o índice de Sen, e Pα (estes últimos baseados em formulas matemáticas mais complexas). A pobreza relativa é calculada com base em dois tipos de medidas. Na primeira, define-se um grupo que é relativamente mais pobres (como os 40% mais pobres) e a medida de pobreza utilizada seria a média de rendimento real deste grupo mais pobre. O problema de seu uso é que um crescimento económico que beneficia alguns dos considerados pobres pode parecer não impactar no monitoramnto da redução da pobreza. Já no segundo tipo, a linha de pobreza é tanto mais elevada quanto mais rico for o país. Fields (1999) diz que o problema dessa abordagem é que se o crescimento da renda for proporcional entre os pobres, a taxa de pobreza também manteria-se inalterada.

O conceito mais conhecido é o de pobreza absoluta. Por mais objetivo que possa parecer, há diversas maneiras de calculá-lo, não havendo consenso sobre qual a melhor forma. Mas, para além da renda e do consumo, uma série de outros aspectos são apontados por pesquisadores como fundamentais para a definição de pobreza. E quando a distribuição de recursos escassos passa pela categoria do “pobre” (como em políticas de renda), entender sua dinâmica e esclarecer seus pressupostos é fundamental na busca de justiça nesta distribuição.

Seria inicialmente simples calcular a pobreza por essa lógica se o conceito de “necessidades básicas” não fosse tão relativo, assim como é relativo o objetivo que se procura atingir: evitar a morte ou viver dentro de patamares de saúde? Viver minimamente ou com qualidade de vida? E quem definiria os patamares de saúde? E os de qualidade de vida?

A lista de questionamentos relacionados à definição de pobreza continua. A oferta estatal de serviços públicos, por exemplo, altera a renda mínima necessária para que uma pessoa não seja enquadrada como em situação de pobreza. Serviços públicos gratuitos ou de baixo custo reduzem a necessidade da renda para acessá-los (ou consumi-los). Ou seja, manter um mesmo padrão de vida na Somália e na Finlândia demanda rendas (padronizadas numa mesma moeda determinada) altamente diferenciadas. Como argumentam Walquíria Rego e Alessandro

Pinzani (2013, p.149): “No caso de um Estado de bem-estar altamente desenvolvido, que oferece quase tudo gratuitamente aos cidadãos (...) uma baixa renda não implicaria necessariamente uma vida sem confortos, na qual as necessidades básicas permanecem não satisfeitas”.

A capacidade pública e privada de remuneração também pode afetar o entendimento de pobreza, assim como as estratégias para o seu enfrentamento. Um país que historicamente possui poucos recursos e baixo ou nenhum crescimento econômico, com alto índice de pobreza, não estipula um valor como salário mínimo acima do que considera sua capacidade de pagamento6, mesmo que esse não corresponda ao mínimo necessário. De acordo com documento da Organização Internacional do Trabalho - OIT, produzido em parceria com a

Food and Agriculture Organization - FAO (OIT, 2014), o salário mínimo de muitos países é

insuficiente para suprir as necessidades básicas, e ainda assim há o descumprimento da política de salário mínimo em países da América Latina.

Gary Fields (2000) chama a atenção para o que nomeia como o “problema do emprego” no cenário global da pobreza, que avalia ser mais problemático do que o desemprego. De acordo com relatório da International Labour Organization (ILO, 2009), 40% dos trabalhadores do mundo recebem até USD7 2 por dia (destes, metade vive na extrema pobreza, com até USD 1,25); aproximadamente 200 milhões de pessoas vivem na pobreza e estão desempregadas, enquanto 900 milhões trabalham e, ainda assim, os membros de suas famílias vivem com menos de US$ 2. A remuneração insuficiente, muitas vezes também desigual, inconstante e informal, não demanda somente uma carga de trabalho diferenciada, mas majoritariamente não proporciona a possibilidade de superação da pobreza.

A definição de pobreza passa, ainda, por questões culturais valorativas. Estando sob uma situação de permanente pobreza, um indivíduo poderia definir como “necessidade básica” uma cesta de bens e serviços consideravelmente reduzida em comparação à considerada por uma pessoa com acesso a uma ampla gama de recursos. A cultura sociopolítica de diferentes grupos sociais, da mesma forma, pode diferenciar o que é classificado como “necessidade básica”.

6 Não entrarei no debate sobre a capacidade de pagamento. Uma reflexão sobre a inexorável mais-valia do

capitalismo, exemplificada pelas altas taxas de lucro empresarial, além dos altos valores pagos como impostos, acompanhados por diversos escândalos de corrupção pública, demandariam um capítulo à parte.

Em 1776, Adam Smith (1996 apud Cunha, 2013, p. 167) já escrevia:

[...] por bens necessários entendo não só os indispensáveis para o sustento da vida, mas todos aqueles cuja carência é segundo os costumes de um país, algo indecoroso entre as pessoas de boa reputação, mesmo entre as de classe inferior. A rigor, uma camisa de linho não é necessária para viver. Os gregos e os romanos viveram de uma maneira muito confortável apesar de não conhecerem o linho. Mas em nossos dias, na maior parte da Europa, um honrado jornaleiro se envergonha se tiver que apresentar-se em público sem uma camisa de linho. Sua falta denotaria esse desonroso grau de pobreza ao que se presume que ninguém poderia cair senão por causa de uma conduta dissipada. O costume tem convertido, do mesmo modo, o uso de sapatos de couro na Inglaterra em algo necessário para a vida, até o ponto de que nenhuma pessoa de um ou outro sexo ousaria aparecer em público sem eles. Essas diferenciações estão sempre presentes – entre países, diferentes classes sociais, idades, gêneros, profissões, localizações, períodos no tempo, cultura, religião. Sob uma perspectiva baseada na renda/consumo, percebe-se como o desafio de entender a pobreza é grande, porém maior quando outras dimensões são incluídas no debate. Nas últimas décadas, outros aspectos socioculturais vêm sendo considerados como fundamentais na sua definição – e o uso de conceitos multidimensionais se fortalecem continuamente.