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POBREZA: UM CENÁRIO A ENFRENTAR

3.2 O ENFOQUE MULTIDIMENSIONAL

Nos grandes marcos dessa reflexão, Ignacy Sachs (2004) destaca o “Decálogo dos direitos da cidadania”, de John Friedmann, como referência para a abordagem multidimensional da pobreza. Nessa perspectiva, Friedmann (UNESCO, 1996 apud SACHS, 1998, p.156), afirma que “[...] o crescimento econômico já não é considerado como uma busca cega do crescimento pelo crescimento (...) O novo contrato social dota a teoria econômica com uma finalidade moral.”

Nesse mesmo ano, em outro texto também para a Unesco, Friedmann e Sandercock (1995) publicaram um importante artigo chamado “Empowerment - an escape route from poverty”, traduzido para o português como “Os desvalidos”. Essa tradução infelizmente não

explicita a relação entre poder e pobreza, discutida no texto. Na época, a palavra “empoderamento”, que não constava dos dicionários de português, estava sendo introduzida no Brasil nos debates “sociais” pelos membros dos organismos internacionais que procuravam a melhor expressão para o sentido de “dar poder”/”conquistar poder”, com a qual o termo se relaciona.

No artigo, Friedmann e Sandercock (1995) igualam pobreza a “desempoderamento”, que seria a não capacidade (conjuntural estrutural) de um indivíduo ou grupo de acessar os recursos que o permitiriam atingir a “qualidade de vida” almejada. Segundo o autor, a pobreza se manifestaria em três dimensões: psicológica, social e política. A dimensão psicológica diz respeito à baixa autoestima ou autodesvalorização – um sentimento que o “pobre” sentiria frente ao rico e frente à sociedade. A social, ao pouco ou nenhum acesso às bases para o êxito social. E a dimensão política se relaciona à participação na vida pública, dando acesso aos mecanismos de intervenção na ação política.

As reflexões sobre pobreza, liberdade e desenvolvimento de Amartya Sen, Nobel de Economia em 1998, trouxeram contribuições fundamentais para essa nova visão, multidimensional, da pobreza. O autor aponta para a necessidade de pautar a pobreza não apenas na renda, mas também nas capacidades dos indivíduos. Em seu livro Desenvolvimento

como liberdade (1999), Sen exemplifica uma capacidade básica, a de sobrevivência, com o

caso dos afrodescendentes nos Estados Unidos. Mesmo tendo uma renda per capta consideravelmente inferior à de norte-americanos brancos, entre os negros norte-americanos ela é muitíssimo maior do que a de habitantes da China e Kerala (um Estado indiano). Ainda assim, eles não têm uma chance maior de atingir idades avançadas do que os chineses e indianos que habitam essas regiões, muito mais pobres. Retomando os conceitos de pobreza absoluta e relativa, o autor afirma que a situação dos afroamericanos não é somente pior relativamente à da população total dos Estados Unidos; em termos absolutos, eles passam por situações objetivas de privação maiores do que os habitantes da China e Kerala. Ou seja, a renda per si não garante aos negros norte-americanos um potencial maior de sobrevivência.

A privação da capacidade de sobrevivência é, para Sen (2003), a privação de uma das liberdades substantivas do ser humano, e afeta sua capacidade de realização, de viver. Oportunidades econômicas, participação política, acesso a recursos sociais, condições de suprir demandas básicas, como alimentação, moradia e educação, estariam relacionadas a outras liberdades, também privadas; outras liberdades substantivas cuja privação também está fortemente relacionada à complexa situação de pobreza.

Esse enfoque aponta para a importância de uma vida digna e plena em diferentes dimensões, que não somente a econômica – alinhada, por exemplo, às demandas por liberdade de ir e vir, de se comunicar, de igualdade entre gêneros, raças, respeito à diversidade religiosa e participação política.

Nesse sentido, a expansão das liberdades está intrinsecamente relacionada ao processo de desenvolvimento, sendo ao mesmo tempo o seu meio e o seu objetivo principal. Seu conceito

de desenvolvimento como processo de expansão das liberdades reais contrasta, dessa forma, com visões mais restritas que identificam o desenvolvimento somente em processos relacionados ao crescimento econômico, aumento da renda per capta, avanço tecnológico e industrialização. Reconhecendo a importância desses objetivos para o desenvolvimento e superação da pobreza, Sen (2003) postula que eles não devem ser tomados como fim em si mesmos, mas como parte das estratégias, meios, para seu atingimento.

O Programa Territórios da Cidadania se mostrou alinhado a essa estratégia de enfrentamento da pobreza, tendo neste enfoque sua base estruturante, manifestada pelos esforços de inclusão de diversos ministérios e ações complementares, assim como pelos critérios de seleção dos territórios (a serem apresentados no capítulo 4), como o IDHm (cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano para o município).

O IDH foi lançado em 2010 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para mensurar o desenvolvimento humano sob uma perspectiva multidimensional, em oposição à utilização do PIB como critério de medição da pobreza. Contou com a colaboração de Amartya Sen para sua elaboração, sendo hoje amplamente utilizado pelo mundo.

Complementando os esforços do PNUD por uma nova visão da pobreza, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou, também em 2010, o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), em substituição ao Índice de Pobreza Humana (IPH). O IPM inclui dez indicadores relacionados à pobreza:

[...] nutrição e mortalidade infantil (saúde); anos de escolaridade e crianças matriculadas (educação); gás de cozinha, sanitários, água, eletricidade, pavimento e bens domésticos (padrões de vida). Uma família é considerada multidimensionalmente pobre se sofre privações em, pelo menos, 30% dos indicadores (PNUD, 2010).

A soma desses esforços para uma mudança conceitual acerca da pobreza, focada na melhora da qualidade de vida e não somente no aumento da renda per capta, tem gerado ações concretas por parte de Estados como o Brasil – de que é exemplo a política pública analisada nesta dissertação. No entanto, como aponta Ricardo Abramovay (2007), citando Bernardo Kliksberg, o entendimento multidimensional da pobreza e seus impactos sobre o desenvolvimento mais focado em seu caráter social do que meramente econômico não pode parar de ser debatido, assim como a responsabilidade do Estado sobre seu enfrentamento via políticas sociais:

De fato, não se trata de negar que o crescimento econômico é importante, senão ressaltar que é simplificar muito o tema do desenvolvimento e suas dimensões sociais, afirmar que o crescimento econômico sozinho produzirá os resultados necessários para atacar a pobreza e as desigualdades sociais. É preciso superar o comportamento político corrente que pregoa às políticas sociais a qualidade de categoria de política pública de uso subótimo de recursos, muitas vezes de caráter clientelista, em comparação com a política econômica (KLIKSBERG apud ABRAMOVAY, 2002, p. 70).

3.3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAPÍTULO

Superar a situação de pobreza no Brasil é responsabilidade do Estado, conforme sua atual constituição. As políticas recentes voltadas à universalização de direitos e ampliação de serviços públicos claramente trouxeram resultados positivos para o país. No entanto, a manutenção da pobreza em regiões específicas demonstra um limite dessa intervenção, o que estimulou, sob o governo de Lula, a estruturação de políticas de redução da desigualdade e a criação do Programa Territórios da Cidadania. Pela marcante característica rural da pobreza brasileira, foi definido deixar sob responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário seu desenho e execução.

Porém, o conceito de pobreza utilizado é determinante na definição do conteúdo de um programa que objetiva enfrentá-lo. Dessa forma, esse capítulo refletiu sobre seus diferentes entendimentos, a origem fortemente baseada no viés econômico, cuja mensuração é amplamente conhecida, a renda per capta. Por fim, discutiu-se o conceito que tem dominado os debates internacionais recentemente, o de pobreza multidimensional, que engloba diversas situações de privação que não somente a econômica, e propõe o objetivo de garantir uma vida de qualidade, e não somente a sobrevivência física. O PTC está claramente alinhado a essa compreensão, como será detalhado mais à frente, por incluir ministérios de setores diferentes, como os de saúde, educação, cultura, meio ambiente e desenvolvimento social. E destes, incluir ações complementares do mesmo setor, intervindo em diferentes dimensões da vulnerabilidade.

Provavelmente, essa estratégia setorializada mostrou-se mais rápida de ser executada no tempo limitado e breve da política (Guimarães, 2013) do que propostas intersetoriais/transversais que, por essa natureza, desafiam a tradição estatal compartimentada. No entanto, a simples soma de ações de diferentes áreas pode não ser a melhor estratégia frente a uma situação multidimensional, nem a mais eficaz ou eficiente. Um exemplo apresentado por E7 foi a demanda por escolas rurais, que precisam contar com a construção de estradas que a

conecte com o público-alvo. A chegada ou de uma ação ou de outra não atende o objetivo principal de garantir a todos o acesso à educação.

No próximo capítulo, será debatida a estratégia escolhida pelo governo para superar a pobreza, estimular o desenvolvimento nos locais onde sua situação é mais grave.

CAPÍTULO 4

DESENVOLVIMENTO COMO ESTRATÉGIA DE