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DO TERMO À LOCALIZAÇÃO: DESDE “GUARDA-CHUVAS” A ESTEREOTIPIAS

Para dilucidar as categorias étnicas presentes nos etnônimos optou-se tanto pelo englobamento a partir das áreas do continente africano, quanto pelo referendo aos troncos étnico-linguísticos. É manifesto que seja através do estudo do tráfico de gente, práticas culturais de matriz africana ou aspectos étnicos constituídos na diáspora, as análises esbarram na identificação nominal, étnica ou geográfica dos grupos de escravizados trazidos para o Brasil.

Segundo Boxer73, no início do tráfico português de escravizados para o Brasil, muitos deles provinham da Guiné, tendo em vista o domínio português daquela região somado aos Açores, Cabo Verde e Madeira ainda final do século XV. Os escravos deste período tinham

71Mandinga foi um termo de procedência destinado inicialmente a povos da Alta Guiné, região da Senegâmbia que foram descritos por viajantes como usuários de bolsas com feitiços rentes ao corpo. Entretanto, a prática de usar bolsas com patuás, escritos árabes, católicos ou pedaços de pele ou pelos de animais estendia-se entre diferentes grupos de procedência na diáspora. Apesar de tal variabilidade, os usuários, independente da procedência, ficaram conhecidos como mandingueiros e esta palavra carrega uma ideia aproximada até os dias atuais.

72 Esses etnônimos podem ser encontrados na obra de HALL. Gwendolyn Midlo. Escravidão e Etnias africanas

nas Américas: restaurando os elos. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2017.

como termo de procedência guiné (em indicação a terra dos guineus – atuais Gâmbia, Senegal, Guiné-Bissau e Guiné). Só a partir do século XVIII surgiram variados etnônimos relativos aos grupos de procedência. Os colonizadores exploravam cada vez mais espaços do continente africano e intensavam relações de catequese e comércio.

O termo guiné apesar de permanecer durante os séculos do tráfico foi ao longo do tempo diminuindo a precisão. No XVII em diante ele foi encontrado definindo desde africanos da costa centro ocidental a toda a costa ocidental e até mesmo usado como sinônimo para africano74.

Durante a época escravista no Brasil, o maior número de cativos proveio da região centro africana. Conforme Luís Felipe Alencastro, o solo brasileiro desde a colonização foi constituído pela pilhagem de pessoas jovens desta região de África enquanto mão-de-obra escrava. Sobretudo Angola, depois Congo e Moçambique.

Aspectos como as relações políticas e econômicas entre Portugal e aquela região antecedentes a 1500, a geografia marítima e correntes de ventos favoráveis para aproximação entre portos brasileiros e Angola, foram aspectos elementares para o êxito dos negócios. Vale ressaltar que a proximidade geográfica entre África e Brasil proporcionou que muitas relações comerciais não passassem pelo crivo da elite portuguesa, constituindo associações diretas com interesses variados entre aristocracias africanas e brasileiras no comércio de gente.

Também prévios saberes agrícolas daqueles povos contaram positivamente para as relações de comércio. Os interesses da coroa portuguesa estavam desde exportar matérias primas brasileiras que podiam subsidiar necessidades de Portugal a servir como moedas de troca em África.

A partir do fim do século XVII e principalmente XVIII, entretanto, o fluxo tendeu ao ocidente. Enquanto em Angola houve um parcial domínio holandês aliado a epidemias de varíola que mataram muitos jovens, mais à leste as guerras entre diferentes povos iorubás e fon nas regiões da costa da mina75 possibilitaram a oferta de cativos. Decorreu uma forte relação comercial entre a Bahia e o Golfo de Benin principalmente pelos portos de Uidá, Badagri e Porto Novo. Somado a isto, cresceu posteriormente o interesse por esta escravaria no trabalho nas minas de ouro de Minas Gerais. Conforme Felipe Alencastro, “a Bahia estabeleceu

74 Cf.SOARES, Mariza de Carvalho. Descobrindo a Guiné no Brasil Colonial. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, 161 (407) 71-94, abr./jun. 2000.

75 Conforme Carlos da Silva Júnior, a Costa da Mina pode ser entendida enquanto os limites entre as antigas Costa do Ouro e dos Escravos, região que a partir de 1470 portugueses negociavam, entre outros produtos, ouro de aluvião. “Fontes europeias dos séculos XVII e XVIII atestam que os limites da Costa da Mina estendiam-se desde o Castelo de São Jorge da Mina (atual Gana) até Lagos (atual Nigéria). Eventualmente, até mesmo portos mais ocidentais, como Cabo Lahu (atual Costa do Marfim), faziam parte dos limites da Costa da Mina”.

vínculos políticos e culturais duradouros com o golfo do Benim, convertendo Salvador em ‘metrópole’ da Costa da Mina no setecentos76.”

Tem sido vigorosa a produção historiográfica77 que indica a presença de africanos da costa da mina em terras brasileiras. Ainda que o grande e maior número tenha sido encontrado na Bahia, tem-se trabalhos que averiguam quantitativa, étnica e culturalmente a presença mina em Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Lugares que durante todo o período escravista apresentaram um maior índice de população africana provinda da África central.

Desde o século XX, vem sendo realizados estudos classificativos sobre as procedências escravas. Averiguar os grupos específicos e os espaços geográficos africanos correspondentes às chamadas nações foi uma atividade iniciada pelos antropólogos brasileiros e brasilianistas. A especificidade destes pesquisadores no dado tempo era que eles tinham uma ideia de cultura rígida e baseada em hierarquias. Para eles, os africanos estavam acabando e incumbidos de uma missão etnográfica deveriam procurar a verdadeira África que restou no Brasil.

Uma das opções foi a delimitação dos dois blocos étnico-linguísticos, formados por diferentes povos de culturas e línguas similares e que foram os mais influentes na formação da cultura afro-brasileira. Tais grupos foram classificados como bantos e sudaneses (ou iorubás, nagôs).

76ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Desagravo de Pernambuco e a glória do Brasil: a obra de Evaldo Cabral de Mello. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Editora da UFMG/ São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2008, p. 43.

77 Cf. VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de todos os

Santos (dos séculos XVII a XIX). Salvador: Ed. Corrupio, 4ª ed., 2002 [1968]. RIBEIRO, Alexandre Vieira. O tráfico atlântico de escravos e a praça mercantil de Salvador, c. 1680-c. 1830. Dissertação (Mestrado em

História Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. ALENCASTRO, Luiz Felipe de.

O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras,

Figura 1 – Bantos e Sudaneses

Fonte: “Afrika do lado de ká”. Diáspora Negra78.

Bantos, segundo Nei Lopes são populações negro-africanas do centro, sul e leste que compõem territórios desde o Índico ao Atlântico. Estes no período pré-colonial tinham modos de viver similares e principalmente características linguísticas comuns, apesar da grande heterogeneidade delas (entre 700 e duas mil línguas). As áreas que hoje são conhecidas como Angola, Congo, Moçambique, Uganda e África do Sul são majoritariamente bantas. Quem criou o termo genérico “banto” foi o filólogo Willelm H. Bleek, que em 1860 percebeu que a maioria das línguas da região centro-ocidental de África tinha a palavra “muntu”, significando “pessoa”, sendo “bantu” (prefixo ba=plural, radical ntu=ser humano), em forma plural. A palavra hodiernamente significa “povo”, entretanto no passado o significado estava relacionado ainda que a uma ideia de povo, só que “primitivo” ou inferior79.

Os sudaneses correspondem aos povos situados em territórios que se estendem da Etiópia ao Chade e do sul do Egito passando pela Uganda e norte da Tanzânia. Este grupo também é comumente chamado de iorubá e nagô pelo fato de ser desta região na parte central a proveniência de tais etnônimos.

Nina Rodrigues, apontado até hoje como impulsionador de estudos afrodescendentes no país, analisou relatos de viajantes estrangeiros na época da escravidão e efetuou pesquisas de

78Disponível em: https://africadoladodeka.wordpress.com/2014/06/03/diaspora-negra/ acesso em: 12.01.2019. 79 Cf. LOPES. Nei. Bantos, malês e identidade negra. Autêntica, Belo Horizonte, 2011, p.96.

campo com descendentes de primeiro grau de pessoas que experienciaram o cativeiro. Sua contribuição é inquestionável sobretudo no que tange à documentação produzida sobre os aspectos culturais, linguísticos, religiosos e étnicos das culturas africanas no Brasil.

Entretanto, sua análise e de seus predecessores produziram estereotipias acerca dos grupos de africanos. Muitas baseadas pelas já advindas do período escravista e de teorias racialistas vigentes na época. Em relatos de viajantes, anúncios de fuga de escravizados e publicações literárias era presente o discurso que inferiorizava os grupos provenientes da região central de África em detrimento dos da região ocidental principalmente no século XIX80. O autor seguia a ideia de que a cultura dos sudaneses era muito superior a dos bantos.

Consoante Nina, a raça negra apresentava uma subdivisão. Os negros mais próximos do mediterrâneo ou os “povos camitas de raça branca” eram “bárbaros mais adiantados”81. A posição de proximidade geográfica com a Europa, a adesão de alguns ao islamismo e a inserção de povos na cultura letrada fez, conforme o intelectual, com que a sua cultura e línguas continuassem presentes nos candomblés. Até quando o autor trata de insurreições envolvendo este grupo na diáspora, o tom é de admiração a sua considerada altivez.

Acerca dos bantos, Nina dedicou alguns estudos sobre expressões linguísticas e culturais bantas e sobre o quilombo dos palmares. O autor referenciava o grupo como aculturado, principalmente no quesito religião, e em patamar inferior na escala evolutiva. Ainda que seu pupilo Arthur Ramos 82indicasse o silêncio do mentor em relação à cultura banto nas obras e por isso dedicou parte da sua pesquisa etnográfica a este grupo, Arthur seguiu a tese da inferioridade banto. Reconheceu a quantidade numérica superior de bantos no Brasil, mas afirmava a supremacia intelectual e cultural dos nagôs.

O pensamento de Nina Rodrigues, foi praticamente uma escola de como hierarquizar dois grupos étnicos-linguísticos e idealizar Salvador enquanto berço da África no país. Tal ideia fincou para a posteridade. Edison Carneiro e Roger Bastide83 foram intelectuais que também pesquisaram a cultura banto, sobretudo o primeiro. Em obras, explicitaram a importância das

80Sobre as teorias racialistas do ocidente em vigor na época e como afetava a classificação cultural dos grupos de escravizados ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças :cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

81Trechos do pensamento de Nina Rodrigues em “Os Africanos no Brasil”. RODRIGUES, Nina. Os Africanos no

Brasil. São Paulo/Brasília, Editora Nacional/ Editora da Universidade de Brasília, 1933. Apud REGINALDO,

Lucilene. “Uns três congos e alguns angolas” ou os outros africanos da Bahia. História Unisinos 14(3):257-265, setembro/dezembro 2010.

82Arthur Ramos (1903-1949) foi médico, etnólogo, antropólogo e folclorista. Uma de suas obras de mais destaque é “O negro brasileiro”. RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. Rio de Janeiro: Graphia, 2001.

83 Cf. BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: Contribuição para uma Sociologia das Interpenetrações de Civilizações. Vols. I & II, São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1985. Carneiro, Edison. Negros bantos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.

congadas, do folclore, dos candomblés de matriz Congo-Angola ou de caboclo. Entretanto a ideia da docilidade e concessão de influências externas pelos bantos persistiu. Nada obstante, é evidente que as variadas disquisições dos autores citados subsidiaram noções importantes acerca de grupos e aspectos culturais africanos na diáspora negra para o Brasil. Mesmo em relação a etnônimos africanos e suas correspondências geográficas e/ou étnicas em África, os intelectuais citados foram os pioneiros e fazem parte das leituras obrigatórias.

No que concerne às estereotipias destinadas ao grupo banto, pesquisas historiográficas a partir dos anos 90 tem provado o contrário e afirmado sua presença e importância cultural no Brasil. Através de um relevante aparato documental (fontes seriais como documentação judiciária, testamentos, inventários84) e de teorias conscientes dos agenciamentos e complexidades próprias do que é ser humano foram evidenciados os dados a seguir. Houve um contingente banto na Bahia muito maior do que o suposto décadas antes, principalmente no recôncavo e nas plantações de cacau. O estudo das irmandades católicas com presença negra demonstra que o fato de africanos aderirem à religião católica não os tornavam menos africanos, dóceis ou os faziam eliminar práticas religiosas de matriz afro. Além disso, as irmandades foram espaços de sociabilidade, poder e constituições familiares no contexto adverso do escravismo85.

As contribuições bantas estão presentes em vários aspectos da cultura. Por vezes elas são tão brasileiras que pessoas tem dificuldade de associar com o continente africano, tendo em vista os processos simbólicos de negação desta identidade. Em danças e músicas (samba, coco, ciranda, samba de crioula, maracatu, lundu, congada, jongo), na farmacologia (processos de cura com ervas), nos gestos (como o muxoxo, cafuné).

Yeda Pessoa nos lembra que as línguas bantas serviram como agente formador da língua portuguesa brasileira. Para nomear doenças (caxumba), comidas e bebidas (cachaça, mungunzá, moqueca), objetos e roupas (canga, tanga, miçanga), partes do corpo (bunda, anca). A pesquisadora baiana e doutora em línguas investiga há décadas etnônimos e palavras que apontam origem em África e fazem parte do cotidiano vocabular brasileiro. Para averiguá-los, além de pormenorizar a obra de Nina Rodrigues estudou no Zaire, atual República Democrática

84 REGINALDO, Lucilene. “Uns três congos e alguns angolas” ou os outros africanos da Bahia. História Unisinos 14(3):257-265, setembro/dezembro 2010.

85Sobre irmandades negras com atuação banto destacam-se alguns trabalhos tais como: QUINTÃO, Antônia Aparecida. Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e Pernambuco (Século XVIII), São Paulo: Anablume: Fapesp, 2002. RAMOS, Arthur. A Aculturação Negra no Brasil. Col. Brasiliana. Comp. Ed. Nacional. São Paulo, 1942. REGINALDO, L. Os rosários dos angolas: irmandades negras, experiências escravas e identidades africanas na Bahia Setecentista. Campinas, SP. Tese de Doutorado em

História. Unicamp, 2005. REIS, J.J. Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da

do Congo, bem como realizou viagens à Nigéria e entrevistou retornados (ex-escravizados que voltaram para África). A intenção era analisar como pessoas não mais influenciadas pelo português remontavam àquela língua. Assim, era feita a diferenciação entre expressões africanas de grupos étnicos específicos e o português mais antigo86. Este modo de pesquisa, frisou influências cotidianas bantas que por vezes passam desapercebidas e são negadas pelos processos de identificação hegemônicos.

A cosmovisão associativa que não precisa negar uma coisa para afirmar a existência de outra é presente em aspectos culturais brasileiros87. Por exemplo, uma pessoa que se diz católica e ao enfrentar algum problema de saúde consulta uma casa de religião de matriz africana. Ou mesmo uma pessoa mais velha que se afirma totalmente cristã, mas realiza uma “benza” de ervas em uma criança crendo que aquela ação irá livrá-la de um possível mau-olhado, são alguns dos muitos exemplos.

O que se denota é que tanto a cultura iorubá quanto a banto são pilares para a formação da cultura brasileira e precisam ser revisitadas. A interpretação contextual da cultura é importante para que não se repitam categorias racialistas que fomentam negações identitárias com aspectos fundantes da história brasileira.