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Do trajeto do corpus e da História de Sergipe: uma narrativa pari passu

CAPÍTULO II Dos primeiros nomes da terra: o sistema sesmarial e a colonização

2.2 Do trajeto do corpus e da História de Sergipe: uma narrativa pari passu

Como já assinalado, não interessa aqui fazer um histórico pormenorizado da ocupação da capitania de Sergipe Del Rey. Se assim fosse, seria necessário pontuar questões controversas e inconclusas, como as inequivalentes fronteiras da então capitania e do atual estado de Sergipe. Assim, procede-se aqui a traçar marcos históricos de Sergipe a partir do corpus, – as cartas de sesmarias – e como seu estado de conservação e salvaguarda atual são consequências de ações políticas, dividindo-a em três períodos históricos.

(a) 1500-1590: O território sergipano estava no perímetro da capitania da Bahia de Todos os Santos – de Itapoã ao rio São Francisco, pertencente ao donatário Francisco Pereira

Coutinho e, após a morte deste, a seu filho.56 Com a instalação do governo-geral em Salvador, esta foi devolvida ao rei espanhol Filipe, a quem remete a alcunha Del Rey, diferenciando-a da região de Sergipe do Conde, na Bahia, ainda hoje com essa designação.

A ocupação e colonização de Sergipe, por ser, então, rota intermediária estratégica das maiores capitanias no Brasil do século XVI – Bahia e Pernambuco –, era de extrema importância na consolidação dos planos luso-espanhóis. Para tal sucesso, era preciso, entre outros intentos, pacificar os índios, afastar os corsários franceses da costa e criar um eficiente esquema de defesa da terra, distribuindo sesmarias e intensificando a produção na colônia. Como fruto dessas ações, como a concessão maciça de glebas, não à toa a ocupação do território chega ao limite norte da capitania em poucos anos: “As doações são concedidas nas vizinhanças de [rio] São Francisco, até a serra de Tabanga57” (FREIRE, 1977, p. 96).

Antes disso, numa primeira tentativa, capitaneada por Luiz de Brito e por jesuítas, em 1575, após confronto dos colonos com os nativos na região do rio Real, num movimento bem descrito na Carta de Toloza58 e na historiografia de povoamento da capitania59, tem-se como marco daquele intento uma lápide memorializando a primeira missa em território sergipano, que ocorreu na atual matriz do município de Santa Luzia do Itanhy, naquele ano.

Assim, à medida que os colonos baianos e portugueses iniciavam sua empreitada pelo litoral sul da capitania, os nativos60 iam sendo expulsos de suas terras para o norte e para o sertão, ocupando a zona ocidental, “pela pobreza do solo, para atividade pastoril (...) que a

56 Uma das querelas atuais entre os dois estados remete a esse fato: os limites territoriais sergipanos, ainda hoje motivo de imprecisão. Ivo do Prado (1909) registra com propriedade sobre as querelas entre os esses estados pelos limites territoriais. Em A capitania de Sergipe e suas ouvidorias: memória sobre questões de limites, as primeiras sesmarias são citadas como justificativa por ambas as partes. Também outros historiadores sergipanos que se embrenharam na questão citam o corpus, por exemplo, Freire (1995), Nunes (2006), remetem às certidões de sesmarias dos séculos iniciais de ocupação para ratificar uma usurpação baiana de territórios sergipanos. Pontue-se aqui que as questões limítrofes são historicamente marcadas por fatores político-econômicos, mas as semelhanças étnico-culturais entre ambas são profundas. Fora as divisas estaduais, a toponímia fronteiriça demarca indicadores híbridos: quer queira estudar a toponímia sul do estado, deve incondicionalmente se debruçar sobre a história da Bahia, notando certamente marcas idênticas ou muito semelhantes.

57 Serra em Gararu (GUARANÁ, 1916, p. 321).

58 Uma correspondência do padre espanhol Inácio de Toloza ao Padre Gaspar Lourenço sobre a missão de

evangelizar as tribos nativas do então território sergipano, encontrada transcrita na íntegra em Freire (1977, p. 71-76).

59 Vide FRANCO, Emmanuel. A colonização da Capitania de Sergipe Del Rei. Aracaju: J. Andrade, 1999; HOORNAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil Colonial (1550-1800). 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994; PRADO, Ivo do. A Capitania de Sergipe e suas ouvidorias. Rio de Janeiro: Pap. Brasil, 1919;

60 Alguns dos caciques resistentes à conquista fazem hoje parte da memória coletiva sergipana, demarcando simbolicamente a bravura e o não subjugamento bélico-cultural à dominação europeia. Boipeba, Aperipê, Serigy, Surubi, sendo os três últimos caciques morubixabas, são os que estiveram na linha de frente das trincheiras indígenas contra a ocupação dos colonos, com a ajuda dos franceses. Suas marcas simbólicas de guerreiros bravos, contrários à dominação ibérica, permeiam o imaginário coletivo sergipano. Suas figuras são recorrentes: a logomarca do judiciário, os postos de gasolina Serigy, os canais de TV e rádios locais Aperipê, o programa de TV local Terra Serigy, a lenda da maldição do índio Serigy. A perífrase para sergipano também remete a esse tema, já que são todos d’a terra do cacique Serigy.

colonização não sabia aproveitar, furtando à escravidão que se lhe queria impor”, pois a costa litorânea estava legada à invasão luso-espanhola (idem, p. 91).

(b) 1590-1623: contra um projeto de Brasil holandês61, o território sergipano seria o limite norte desse domínio luso-espanhol contra o limite sul, até então, do Brasil holandês comandado por Nassau e de acontecimentos memoráveis de Sergipe. A colonização se desenvolveu no sentido sul-norte, liderada por Cristóvão de Barros, e, quando da conquista do território, o governo luso-espanhol forçou a criação de uma estrutura burocrática na capitania já em 1590. Assim, a partir de então, Sergipe Del Rey passou a dispor de uma série de cargos administrativos (SALGADO, 1985, p. 66-69), todos lotados então na recém-fundada cidade de São Cristóvão. Freire afirma que, à época, “a administração compunha-se de um capitão- mor, ouvidor, provedor-mor da fazenda, escrivães, almoxarifes, um Conselho, que era o órgão do município e um presídio” (1977, p. 86), possivelmente baseado nos relatos do corpus deste trabalho. Juntamente com as administrações militares, judiciárias, o clero fazia parte da trupe colonizadora.

As certidões das cartas de sesmarias, por serem documentos notariais, ficavam em posse do escrivão no cartório da capitania, na cidade de São Cristóvão, o qual sendo integrante da Câmara, subordinava-se ao governador e ao capitão-mor. Destarte, o caminho protocolar das cartas de sesmarias costumava ser: i) petição pelo donatário ao governo geral; ii) registro de tais petições pelo escrivão da capitania; iii) envio de tal pedido pelo governo geral ao Conselho Ultramarino; iv) despacho, concedendo ou negando, glebas de terra; v) caso necessário, o Conselho Real era a instância maior solicitada para resolver quaisquer querelas.

(c) 1624-1819: com a invasão holandesa no território sergipano, estas certidões são transladadas para a Bahia pelas autoridades competentes, provavelmente retornando ao solo pátrio depois da expulsão daqueles, em 1645. Com a criação do Conselho Ultramarino, em 1643, organismo que passou a tratar das matérias e negócios de quaisquer naturezas das colônias lusitanas – Brasil, Goa-Índia, Guiné, São Tomé e Cabo Verde, entre outros – os requerimentos de mercês por serviços prestados no Ultramar passam a ser controlados por essa instância em Lisboa-Portugal. A partir de então, as petições de terra estavam subordinadas a essa instância.

Outro fato importante foi a autonomia judiciária de Sergipe, com o surgimento das primeiras vilas em 1697 e a criação da Ouvidoria, descentralizando o serviço cartorário.

Ainda sendo São Cristóvão a capital da capitania, o corpus permaneceu nesta cidade, de onde veio a ser transladada somente no século XIX.

(d) 1820-2012: Já independente politicamente da Bahia desde 1820, após inúmeras disputas jurídico-administrativas, houve o desmembramento da capitania e criação da província de Sergipe. Com a mudança da capital de São Cristóvão para Aracaju, em 1855, as certidões de sesmarias, entre outros documentos do patrimônio histórico, assim migraram de espaço. Nesta migração, sua salvaguarda deve ter sido feita na Secretaria do Governo do Estado de Sergipe.

É provável que tenha sido durante a estada destes documentos nessa instituição que Felisbelo Freire, primeiro governador republicano de Sergipe (1890-1891), então deputado, teve contato com esses manuscritos na década de 1880. As transcrições freireanas devem remeter a essa década, já que data de 1891 a publicação da primeira edição de sua obra História de Sergipe, onde estão as transcrições do corpus. Alguns dos manuscritos transcritos não mais existem, tendo aqueles que se debruçarem sobre o corpus, nesse caso, de confiar na habilidade do trabalho paleográfico do historiador. Apesar da relevância inconteste de Freire por seu labor paleográfico, encontram-se erros substanciais em suas transcrições, que caso comportem os topônimos relatados no corpus, agravam, sobremaneira, este trabalho. Daí ser mister o confronto destes com os autógrafos.

As criações tanto do Arquivo Público do Estado de Sergipe – APES, em 1923, cujo objetivo “era receber e conservar, todos os documentos relativos ao direito público, à legislação, administração, história, geografia, às manifestações científicas, literárias e artísticas de Sergipe”62, quanto do IHGSE, em 1912, são relevantes neste histórico, pois são sítios de consulta de grande relevância a qualquer intelectual desiderato pela História de Sergipe. O corpus, aliás, encontra-se atualmente sob o poder dessa segunda instituição, tendo sofrido má conservação e perdas no ínterim de sua salvaguarda, quando cerca de cinquenta roubos e inúmeros danos irreparáveis ao material impresso fizeram do material, frágil por natureza, de irreconhecível estado em certas partes. Na década de 2000, com a tecnologia da digitalização de documentos históricos, estes foram digitalizados e catalogados pela equipe da instituição, liderada pelo historiador Jackson da Silva Lima.63

Como dito, o estudo dos nomes de lugares neste trabalho parte do confronto das transcrições situadas no apêndice da obra de Freire ([1891]1977) com os manuscritos das

62 OLIVEIRA, Bruno (2010). Acervo iconográfico digital sergipano: ação educativa e organizadora no APES.

In: http://www.educonufs.com.br/IVcoloquio/cdcoloquio/eixo_09/e9-12b.pdf Acesso em 15 jan. 2012.

63 Para publicizar o acervo sesmarial, o IHGSE disponibiliza estes documentos para aquisição em formato CD-

certidões das cartas de sesmarias de Sergipe Del Rey, em seu formato digital, num trabalho que parte das transcrições freireanas com a consequente checagem da fidedignidade do labor paleográfico.