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CAPÍTULO I Da Toponímia: princípios teóricos dos nomes de lugares

1.2 Dos estratos etnolinguísticos e da constituição da Toponímia sergipana

1.2.2 Do estrato linguístico indígena

Que pese o errôneo senso comum de que todos os povos indígenas brasileiros falavam tão somente Tupi, tal qual a língua guarani no Paraguai, é importante notar a supervalorização dada pelos colonos e pelo clero a esta língua, encontrada na costa brasileira. O Tupi foi aprendido, gramaticalizado e dicionarizado por jesuítas, concomitante a um sentimento de desdém às outras línguas indígenas, tomando-os como “povos de língua travada” ou mesmo “Tapuya”, inimigo, bárbaros, em Tupi. Graças às informações de cronistas dos séculos coloniais, esta posição se confirma, uma vez que antes do início da pesquisa etnológica no Brasil, a partir do final do século XIX, o que se sabia dos costumes indígenas referia-se sobretudo aos índios tupi (MELATTI, 2007, p. 57-8).

Certo que havia na capitania de Sergipe Del Rey os povos Tupinambá, que dominavam a faixa litorânea, mas havia também os Kiriri mais ao sul, os Boimé, Kaxagó, Katu, Xocó, Romari, Aramuru e Karapotó ao norte de Sergipe, próximo ao Rio São Francisco (DANTAS, 1991). Muitos destes, expulsos de suas regiões originais, escravizados pelos colonos ou simplesmente mortos em combate, não resistiram ao tempo: além da quase total supressão étnica e linguística, dado que apenas uma destas populações permanece ativa – os Xocó, em Porto da Folha, região norte do estado. O aculturamento e morte simbólica são notórios, quando notado que este povo não mais se comunica em língua indígena, mas somente em português.17

Voltando ao assunto, fato é que as influências linguísticas do Tupi são profundas e as marcas toponímicas são produtos dos contatos interculturais ou do resgate étnico-nacionalista por meio da perpetuação do autóctone da terra. Para tal, o conceito de substrato serve às línguas indígenas, nas quais essas marcas toponímicas são expressas como um grande receptáculo no léxico do Português Brasileiro, doravante PB.

17 Vera Lúcia Mata, da UFRJ, afirma que “apenas alguns termos foram mantidos”. Clarice Novaes da Mota, em

As Jurema told us (1987), fez minucioso levantamento de vocábulos indígenas usados pelos Kariri-Xocó para designar plantas mágicas e medicinais por eles utilizadas. Os mesmos afirmam preservar "na idioma", como se referem à sua língua extinta, expressões mágicas do ritual do Ouricuri”. Disponível em http://www.arara.fr/BBTRIBOKARIRI.html. Acessado em 05 jan. 2012.

As marcas linguísticas advindas do povo que abandona seu idioma, levadas para a língua que passa a adotar. As marcas do substrato, com mais frequência, estão no léxico e na fonética; são mais raras ainda na sintaxe. Por exemplo, no Brasil o substrato tupi, o mais presente se comparado com o de outros grupos indígenas (bororo, carajá, caraíba, cariri, catuquina, xavante, tucano, xibará e jê), forneceu ao português grande número de topônimos, designações de fauna e flora, de utensílios etc. No total, chega-se a vários milhares, pertencentes ao chamado “vocabulário cultural” (BASSETO, 2005, p. 153).

Posto que a ação do homem no mundo testemunha sua vivência e por a força ambiental nunca existir isoladamente, mas sim condicionada à força social, Sapir argumenta que a linguagem constitui-se na relação binômica homem-natureza, cuja essência simbólica advém de dois matizes: fatores físicos e sociais (1969, p. 44). As descrições zoonímicas do período colonial feitas por missionários e cronistas demonstram o deslumbre que a natureza tropical causava ao olhar de um europeu cosmopolita.

Citando alguns, o padre Fernão Cardim, em Do Clima e Terra do Brasil, Gabriel Soares de Sousa, em Notícia do Brasil, Pêro de Magalhães Gândavo, com História da Província de Santa Cruz, Diogo de Campos Moreno, este último com Livro que dá Razão do Estado do Brasil, nos séculos XVI e XVII, descreveram a costa litorânea de Sergipe e se depararam com a fauna e a flora nativas, e descreviam-nas de maneira singular.18 Só para exemplificar, Cardim descreve o jacaré como um “(...) lagarto de notável grandura (...)” e o tamanduá como um animal “de notável admiração: é do tamanho de um grande cão mais redondo que comprido”.

Estes animais, cujos nomes estão inscritos em língua indígena, se tomados seus étimos possuem outras motivações para os nomeadores autóctones. O primeiro, do tupi yaca’re, que significa “do que olha torto, encurvado, aquele que vê pelos lados”, é visto para os colonizadores como lagartos d’água, entre outros. Já os tamanduás, do tupi ta-monduá, designa o “caçador de formigas” (SAMPAIO, 1901), seriam como donos de “focinho muito comprido e delgado (...)”. (apud CUNHA, 1998, p. 165-6, 275).

Assim, percebe-se que a nomeação de um lugar sempre está associada ao constructo social do denominador, na qual os fatores físicos intrinsecamente ficam a cargo de fatores sociais. Atenta-se também para a dificuldade de se encontrar a acepção etimológica de diversos nomes de origem indígena, uma vez que os significados publicizados são, por vezes, ambíguos ou mesmo errôneos.

18 Cabe informar que um estudo contrastivo destas obras acerca da toponímia sergipana seria de grande auxílio

Numa última instância, nota-se que muitas informações acerca das línguas indígenas brasileiras são dúbias, quando não desconhecidas, pelo grande público, como a distribuição espacial das famílias linguísticas autóctones e supervalorização do ramo Tupi-guarani, a influência no léxico do PB, por fim, de maneira mais particular, o (des)conhecimento da etimologia dos topônimos indígenas. Assim, a partir da leitura de uma bibliografia acerca dessas línguas, listam-se informações de sensos comuns, alguns inverídicos, sujeitos a desmistificações, sobre os substratos no Brasil, dispostos a seguir como pressupostos de nossa investigação:

 as línguas indígenas no Brasil e no território sergipano à época eram diversas, apesar da supervalorização do tronco tupi. Os conquistadores encontraram por quase todo o litoral brasileiro índios falantes do Tupinambá: os missionários aprenderam-na, dicionarizaram e gramaticalizaram-na, desdenhando dos outros idiomas dos gentios, fazendo com que fosse o Tupi antigo a base para a formação da língua geral do Brasil, falada até o século XIX. Lembre-se de que todo o estudo sistemático dos missionários foi realizado sob a influência das ideias linguísticas do seu tempo, ou seja, sob o ostensório do ideal gramatical latino (CAMARA Jr, 1979, p.101-2);

 do fato acima, depreende-se que a marcação do nome de lugar nem sempre revela a presença física do grupo indígena, levando-se em conta a ausência de povos tupi, mas a ocorrência de topônimos desta origem em diversas regiões sertanejas do país;

 os topônimos de origem indígena não foram designados apenas pelo gentio: muitos desses denominadores são portugueses, mamelucos e até africanos (SAMPAIO, 1903);

 uma vez que o aprendizado de língua(s) indígena(s) era pragmático – questões comerciais e religiosas –, o surgimento de idiomas francos, como as línguas gerais, é compreensível: mesmo após alguns séculos da conquista efetiva do território nacional, as línguas que serviam à comunicação oral eram ainda, em muitas regiões, as línguas gerais brasílicas, ficando, muitas vezes, a língua portuguesa restrita ao uso oficial com a Metrópole. Faladas por três em cada quatro habitantes então [séculos XVI/XVII], as comunidades da época eram fundamentalmente bilíngues e as línguas indígenas funcionavam como adstrato do português (SAMPAIO, 1901). Nota-se, assim, a criação de línguas artificiais – paulista e amazônica – como auxílio às mais diversas situações de contato interétnico;

 as principais motivações da toponímia indígena remetem a elementos naturais, como a fauna e a flora (ANTUNES, CARVALHINHOS, 2007b);

 a influência indígena atinge o vocabulário do PB substancialmente. Segundo Heckler et alii (1994), que quantificou exaustivamente sua formação morfológica, e assinalou

que a língua tupi, após o latim e o grego, é o idioma que mais emprestou ao léxico nacional, com pouco menos de 6% do total;

 pelas diferenças fonético-fonológicas entre os sistemas indígenas e português, notam-se variações gráficas em alguns topônimos, principalmente quanto ao Y tupi. Sampaio dedica um capítulo de sua obra O Tupi na geografia nacionalpara “as alterações phonicas no tupi sob a influencia da lingua portugueza” (1901, p. 41-85). Assim, “é claro que, inadequado como é o alfabeto escolhido para base do sistema, indispensável se tornou adicionar-lhe novos símbolos e sinais diacríticos ainda que poupadamente, no intuito de não deixar som sem representação gráfica peculiar.” (TOPONÍMIA, 1960, p. 175). Esta frase expõe as discrepâncias quando do contato entre estratos linguísticos tão diversos – como entre o português e os idiomas autóctones. Estas eram todas ágrafas. Destarte, vários são os grafemas lacunares ou dúbios, por não terem sistemas gráfico-fonéticos correspondentes;19

 as direções no curso de mudanças toponímicas ocorrem em ambas as vias: tanto do tupi ao português quanto do português ao tupi. O primeiro fenômeno remete, por exemplo, ao fim do século XVIII, quando um “capitão-general (...) ordenou que se substituíssem por topônimos portugueses os de origem tupi, visando assim a dissimular a origem indígena dos povoados em que se transfiguraram os aldeamentos organizados pelos jesuítas, incursos então na má vontade do marquês de Pombal”.20 Por seu turno, no século XX, vários municípios foram criados ainda com nominata indígena, mostrando um fenômeno mais recente de busca por uma identidade original, sem remissões colonizadoras. Portanto, ambas as vias espontâneas e oficiais são utilizadas em ambos os casos relatados.