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Capítulo I – A Tradução Audiovisual

I. 2.1 – A TAV – Especificações terminológicas

I.2.1.2 Do uso do termo “tradução”

No sentido de contrariar a volubilidade semântica do termo tradução audiovisual, com o título deste capítulo (“A Tradução Audiovisual”) pretendo sublinhar a minha relutância em considerar a transferência linguístico-cultural, implicada na legendagem de um filme, através dos diferentes meios de difusão, como uma simples adaptação ou interpretação. Se assim fosse, talvez não houvesse a necessidade premente de o profissional da TAV desenvolver e aperfeiçoar as quatro competências referidas no início deste capítulo (a linguística, a comunicativa (pragmática), a semiótica e a técnica).

Além disso, partilho da ideia de Jorge Díaz Cintas (2003b: 34-35) quando este denuncia a conotação pejorativa de que o termo adaptação – e, acrescento, interpretação – tem sido investido para designar todo o universo de práticas de tradução levado a cabo pelos profissionais da TAV.

O artigo canónico “Translation and mass-communication: film and T.V. translation as evidence of cultural dynamics”, de Dirk Delabastita (1989: 213), procede a uma reflexão de teor terminológico relativamente à adopção dos termos “tradução ” ou “adaptação” no caso da transferência linguística nos meios audiovisuais:

[T]o what extent is it advisable to make use of the term “translation” at all when dealing with the transfer of films from one linguistic/cultural community to another? One cannot be struck by the fact that the term “adaptation” is frequently

suggested as an alternative to “translation” in the few scholarly and not-so- scholarly discussions of film translation that I have been able to collect; there is

an unmistakable hesitation among translators, critics and scholars regarding the applicability of the term “translation”. One might venture the hypothesis that this same hesitation is responsible for the fact that translation studies have been rather

reluctant to include film translation among their subjects of study.

(negrito meu)

Em harmonia com as palavras de Delabastita (ibidem), a polémica gerada pelos académicos, quanto ao uso dos termos “tradução” ou “adaptação”, está directamente ligada ao conceito daquilo que se entende por “tradução”:

[I]f translation is defined as a process of linguistic recoding that should aim at a maximal transfer of source text syntax and semantics into the target language, then clearly film translation is emphatically not a form of genuine translation.

(negrito meu)

Com efeito, o autor afirma não se poder falar de fidelidade linguística máxima relativamente ao processo de transcodificação (“recoding”) do texto fílmico, na medida em que as atitudes de tradução por parte dos profissionais pressupõem alguns aspectos que não se coadunam com o tradicional conceito de tradução, a saber: muitos elementos verbais não são traduzidos; os constrangimentos de sincronia (na dobragem) e de compressão textual (na legendagem) são tão limitadores que os signos verbais do texto original, que chegam a ser efectivamente traduzidos, não respondem positivamente aos critérios de fidelidade semântica ou sintáctica; por fim, é comum que se proceda à edição (corte ou supressão) de enunciados, o que obriga, muitas vezes, à redução do texto traduzido de um filme.

Delabastita (1989: 214) adianta ainda que nenhum dos aspectos acima descritos se

compatibiliza com uma definição restrita normativa8 de tradução linguística. Daí que se

poderia debater acerca do uso do vocábulo “adaptação” – para referir todo o processo de passagem do texto de partida para o texto de chegada – e de “tradução” – atinente à componente verbal de transferência linguística de uma língua para outra. Contudo, o autor matiza esta distinção, apresentando um conceito mais flexível de “tradução”, fazendo-o coincidir com o “produto final” (conglobando as componentes não verbais e até as “não traduzidas”) a que o público tem acesso quando visiona um filme.

Tal como Delabastita, considero que o uso do termo “tradução” não pode ser exclusivamente normativo e deve admitir, no caso da tradução audiovisual, uma abordagem descritiva que permita a reflexão sobre as práticas de transferência linguístico-cultural nos meios audiovisuais, tendo em conta a cadeia de constrangimentos a que está sujeita pela sua natureza multidisciplinar.

Em função daquilo que se tem vindo a afirmar, como é fácil depreender, ao longo desta tese, o termo “adaptação” enquanto sinónimo de “tradução” é inteiramente inaceitável. No entanto, admite-se enquanto componente do próprio processo de tradução audiovisual, tal como a concebe Georg-Michael Luyken na obra Overcoming language

barriers in television: Dubbing and subtitling for the European audience (1991: 54-55).

Para este autor, aquando da elaboração das legendas, a adaptação constitui a transposição do discurso oral (texto original) para o escrito (legenda ou texto traduzido). Muitas vezes, a tradução cinematográfica é submetida a um processo de “adaptação” para que o filme da grande tela possa ser visionado numa transmissão televisiva ou por meio de uma fita de vídeo ou DVD. Neste caso concreto que se acaba de descrever, o uso do termo “adaptação” está imbuído de toda a propriedade.

À parte dos constrangimentos técnicos e tradutológicos que a tradução para legendagem pressupõe, existem outras modalidades da TAV, como se verá mais adiante, cujo trabalho de tradução implica um maior grau de adaptação e até de interpretação. É o

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Segundo Delabastita (1989: 214), a abordagem normativa da tradução não abrange uma grande parte das traduções realizadas: “[O]ne can easily think of literally thousands of texts that we accept as being “translations” and which fail to come up to the normative definitions of translation.

Indeed in most cases the translators of poetry, of plays, of novels, of tourist brochures, etc., do not translate mere semantic and syntactic structures either. Rather they do translate texts into texts, and in that process a lot of things may happen which are quite similar to the manifold operations that occur in film translation and which defy any static definition: reductions, additions, stylistic or ideological shifts, adaptation of sociocultural data, changes in the visual (graphic) presentation of the text, and so forth”.

caso da prática do teletexto para Surdos ou para pessoas com surdez adquirida e o caso da descrição audiovisual ou dobragem dupla, destinada aos invisuais ou pessoas com cegueira adquirida. Aliás, como atesta Josélia Neves (2005b: 13) a adaptação consiste na “[...] transformação de uma mensagem original com vista a uma maior adequação às necessidades de determinados receptores”.

Dito isto, e apesar de reconhecer em toda a tradução a reflexão interpretativa que lhe está subentendida, não posso concordar com Yves Gambier (1997: 81) quando afirma que a legendagem, vocacionada para o grande público, é uma espécie de interpretação

simultânea escrita, com condensações, dependentes de um determinado ritmo9. Ainda, em

consonância com o exposto por este autor, a dobragem está muito relacionada com a interpretação devido à sua sincronização com a parte oral do texto original.

Não correndo o risco de contribuir para o marasmo definitório, e não pretendendo retirar à TAV (e por que não a qualquer outro tipo de tradução?) as componentes de adaptação e de interpretação, subjacentes ao trabalho dos profissionais da tradução para legendagem, e admitindo todos os constrangimentos técnicos, no âmbito desta investigação, o texto legendado (e vocacionado para o grande público) será perspectivado como tradução.

Na contracapa da revista da especialidade de tradução, The Translator: Studies

Intercultural Communication – Translating Humour (Special Issue) (Jeroen Vandaele

(ed.), 2002), pode ler-se a seguinte informação:

The Translator is a refereed international journal that seeks to bring

Professional and academic interests closer together […]. Translation is understood to cover all types of translation, whether written or oral, including activities such as literary and commercial translation, various forms of oral interpreting, dubbing, voice-overs, subtitling, translating for the stage, an dsuch under-researched areas as sign language interpreting and community interpreting.

Existem ainda outros motivos que justificam a legitimidade do uso do termo “tradução” aplicado à tradução realizada no campo audiovisual, como seja o facto de, há já

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Pode ler-se: “[A]nsi le sous-titrage est une sorte d’interprétation simultanée écrite, avec condensations, souci du rythme […]” Gambier (1997: 81).

Na verdade, esta ideia já havia sido anteriormente ventilada por Gambier (1996: 10), quase textualmente: “[A]nsi le sous-titrage est une sorte d’interprétation simultanée écrite; le voice over ressemble à des sous-titres oraux, etc.”.

várias décadas, os profissionais da TAV em Portugal e, mais concretamente, os profissionais de legendagem e de dobragem terem vindo a denominar o seu trabalho como tradução (por exemplo: “tradução e legendagem” no final – e, em casos mais raros, no início dos programas/filmes). Sublinhando o que anteriormente se disse, acresce que o termo “adaptação” é reservado para os casos em que a tradução de um filme legendado e exibido, por exemplo na TV, sofreu algumas alterações para poder ser difundido noutro meio audiovisual, nomeadamente, o vídeo. Como se verá posteriormente, os diferentes meios audiovisuais implicam ritmos de leitura diferentes, pelo que supõem uma tarefa de adaptação a cada um deles.

A análise das práticas de tradução do humor audiovisual no corpus, que será objecto de tratamento no percurso deste trabalho, radicará na abordagem predominantemente descritiva, em contraposição a uma visão prescritiva – no sentido em que Gideon Toury a entende na sua obra Descriptive Translation Studies and Beyond, de 1995. Significa isto que se procederá a uma descrição daquilo que ocorre com regularidade no humor legendado (fenómeno empírico), em vez de se ensaiar constantemente a construção e a imposição de teorias reguladoras de tal prática de tradução. Porém, a exploração de alguma vias normativas, primordialmente aquelas que se coadunam com a tradução do humor, não serão completamente colocadas de lado.

Uma vez identificado o padrão de regularidades (nas relações entre o processo, a função e o produto) da tradução para legendagem do humor, tentar-se-á delimitar terreno para aventar, de modo justificado, um conjunto de regras ou de normas relativas às variáveis tidas como relevantes para as práticas da tradução (Toury, 1995: 15-16). A respeito deste conjunto de regras ou normas (laws), parte integrante da faceta mais teórica

dos estudos descritivos da tradução10, Toury informa-nos do seguinte:

[T]o be sure, the envisaged laws are everything but absolute, designed as they are to state the likelihood that a kind of behaviour, or surface realization, would occur under one set of specifiable conditions or another. Needless to say, not even one law of the conditioned type can be formulated unless the conditioning factors

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Segundo Theo Hermans (1999: 8): “[T]he approach known as ‘descriptive translation studies’ is sometimes referred to as the ‘polysystem approach’ after one of its proeminent concepts. The term ‘polysystem’ was invented by the Israeli scholar Itamar Even-Zoar and has also found application outside the world of translation, especially in literary studies. We can also speak, more broadly, of a ‘systemic’ perspective on translation, which would then include other system-theoretic concepts apart from the polystem concept. It is good to bear in mind, though, that one can perfectly well operate along descriptive lines without taking on board any systems or polysystems”.

have been formulated. This is why the formulation of laws of this type requires the establishment of regularities of behaviour, along a maximal control of the parameters of function, process and product.

Neste sentido, Toury afirma, num artigo intitulado “The nature and role of norms in translation” (de 1978 e revisto em 1995 in: Venutti (ed.), 2000: 204), que são as normas que determinam o tipo e a extensão da equivalência manifestada nas traduções propriamente ditas. Ademais, Toury (p. 199) considera que, na sua dimensão sociocultural, a tradução está sujeita a constrangimentos de vária ordem e grau. Estes ultrapassam as diferenças sistémicas entre as línguas, as tradições textuais nas línguas de origem e traduzida, ou até as possibilidades ou as limitações cognitivas do tradutor. A tradução para legendagem não é alheia a estes constrangimentos, como será oportunamente descrito e comprovado.

Na esteira de Holmes (1972), Toury (1995: 18) subdivide os Estudos sobre Tradução em dois segmentos: “Puros” (subagrupados em teóricos e descritivos) e (Extensões) Aplicado(a)s, ou Tradução Aplicada (ensino de tradução, auxiliares de tradução, crítica da tradução). Daí que exemplifique, através de diferentes usos verbais, as diferenças entre aqueles dois segmentos, no quadro aqui por mim traduzido:

Quadro 1 – Estudos sobre Tradução: Puros e Tradução Aplicada Tipo de Relação Critério (ou Tipo de

Condição)

Verbos Comuns Ramo dos Estudos sobre Tradução possível provável teórico Condicional pode ser é provável que seja

Teoria da tradução, básica Teoria da tradução,

modificada

existente Empírico é Estudos Descritivos da

Tradução requerida Postulado devia ser Estudos de Tradução

Aplicada

Evidentemente, e em consonância com a taxonomia supra indicada, no percurso reflexivo desta tese será consistentemente manifesta a oscilação entre os Estudos Descritivos da Tradução – na medida em que serão analisadas cenas concretas de filmes – e os Estudos de Tradução Aplicada, visto assumir-se um papel activo e crítico, mediante o que se observa e descreve, empírica e holisticamente.

Neubert e Shreve (1992: 7-8) referem igualmente que os estudos sobre tradução devem envolver a observação rigorosa e a descrição empírica do modo como a

[T]ranslation studies in its empirical form is primarily descriptive and should be based on the observation of translation practice. As an empirical science, it has two objectives. It seeks to identify regularities in the way that translators respond to specific translation situations, and it seeks to identify regularities in the results of that response. A prescriptive translation didactics could emerge from this empirical approach but it is not entailed by it. The ideal content for a translation didactics, however, would be a set of heuristics derived from an understanding of effective practice.

Díaz Cintas (2003b: 317) reconhece as virtudes do recurso a uma cartografia da realidade da tradução, apoiada na análise descritiva, com vista à obtenção de uma imagem completa das estratégias aplicadas por diferentes profissionais em períodos históricos distintos. Assim sendo, não interessa tanto a adopção de uma atitude metatradutológica (eminentemente teorizante), pois o que realmente importa, segundo o autor (idem: 318), não é o culto sagrado da «tradução ideal», mas indagar “[...] qué tipo(s) de equivalencia(s) se estabelece(n) entre la obra de origen y la meta”. Além disso, o teórico espanhol (idem: 319) comprova precisamente a necessidade de análises descritivas, ao contrapô-las a abordagens meramente prescritivas e, consequentemente, redutoras, na medida em que sublinham os “erros” de tradução, tendo em vista aquilo que se diria ser a tradução ideal. Coloca-se, então, de lado a ideia utópica de o investigador de tradução oferecer uma categorização exaustiva de todos os pormenores linguísticos (idem: 320).

Na verdade, no panorama da TAV em Portugal só podemos avançar com a descrição devido à ausência de normas gerais, comuns a todos os profissionais. A título individual, as grandes empresas de tradução audiovisual em Portugal têm envidado esforços no sentido de criar as normas a seguir pelos profissionais que nelas trabalham. Porém, revela-se urgente criar um livro de estilo para a TAV neste país, em concertação com (pelo menos)

os desenvolvimentos dos países-membros da União Europeia (UE) nesta área concreta11.

Uma vez mais, destaca-se a opção pela via analítica preponderantemente descritiva, já previamente aludida. Porém, não deixa de se reconhecer a necessidade se apreciar crítica e construtivamente as instâncias do texto fílmico legendado, precisamente a fim de contornar o problema que Andrew Chesterman expõe, num artigo sintomaticamente

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Esta questão tem merecido um cuidado especial por parte da ESIST – European Association for Studies in Screen Translation – e para o demonstrar, observe-se o “Code of Good Subtitling Practice” (Código da Boa Prática de Legendagem) no sítio: www.esist.org. Aquele código visa oferecer directrizes de legendagem de carácter internacional, ou, pelo menos, para os países europeus.

intitulado “From ‘Is’ to ‘Ought’: Laws, Norms and Strategies in Translation Studies” (in:

Target 5, 1993: 3):

[A] purely descriptive approach will not incorporate any evaluative elements, so that a study of the translation behaviour of a beginner is, qua translational- theoretical study, just as valid as the study of the behaviour of a competent professional. […] Unfortunately, of course, such an approach necessarily overlooks much of the motivation for studying translation behaviour in the first place. […] Constitutive laws of behavour-that-can-be-defined-as-translation-behaviour must surely be supplemented by regulatory laws of good translation behaviour.

Translation theory, if it is to take the form of a theory of translation behaviour, must include both a descriptive and an evaluative element.

Em última análise, isto significará, portanto, que, nas cenas cinematográficas a apresentar, se renderá homenagem às propostas de estudo tradutológico, quer de Toury (1995), quer de Chesterman (1993), nas suas dimensões descritiva e (sempre que se julgar oportuno) apreciativa/avaliativa ou orientadora.

Chesterman (idem: 8) distingue dois tipos de normas da tradução: as profissionais (“professional norms”) e as de expectativa (“expectancy norms”). As do primeiro tipo referem-se ao comportamento do profissional de tradução, e por essa razão se encontram subdivididas em três subtipos: a norma da responsabilidade (“accountability norm”), a

norma da comunicação (“communication norm”) e a norma da relação (“relation norm”)12.

Por seu turno, as normas de expectativa (idem: 9-10), tal como a própria nomenclatura indica, encontram-se relacionadas com a moldura tradutológica criada nos receptores da tradução, não tanto como processo, mas, sobretudo, enquanto produto final. Neste sentido, estas normas justapõem-se às normas profissionais, dado que os tradutores terão em linha de conta as expectativas dos receptores do produto que realizam.

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Resumidamente, Chesterman (1993: 8-9) explica que a norma da responsabilidade se prende com o comportamento do tradutor relativamente a questões de fidelidade para com o autor do texto original, e a assumir a responsabilidade pela tradução que realiza. É, fundamentalmente, uma norma ética. Em seguida, a norma comunicacional tem que ver com o comportamento do tradutor com o objectivo de assegurara optimização comunicativa entre a sua tradução e o seu potencial público. Por fim, a norma da relação é também comportamental no que diz respeito à relação (do tipo de grau de equivalência) textual existente entre o objecto de tradução, ora na língua de chegada, ora na de partida.