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2 A analítica da consciência pura e transcendental

2.6. Doação de sentido

A analítica da experiência pura e transcendental colocada em marcha por Husserl em

Ideias I (HUSSERL, 1913/1976a; 2006) explicitou, pois, estes componentes que são

ingredientes de nossa experiência cotidiana, em intentio recta, constituindo cada ato nosso (no tato, na audição, no pensamento aritmético, etc.), mas que, apesar de estarem implicados nessa experiência, não estão presentes, necessariamente, de forma explícita. Assim, por exemplo, embora a tese da existência ou a identidade do objeto sejam efetuadas na experiência cotidiana a todo o momento, eu não necessito ter delas uma consciência explícita ou “aplicá-las”, como um sujeito onisciente, a fim de que elas se realizem. Pelo contrário, estes componentes, ou estruturas, encontram-se no anonimato de uma experiência silenciosa que transcorre como minha vida fluente e operante. A fenomenologia, justamente, trata de explicitá-los, de destacá-los, deste fluxo e de fixá-los em conceitos descritivos puros, conforme a sua metodologia própria.

Mais ainda, a fenomenologia se concretiza não apenas como uma analítica desta experiência pura e transcendental, mas, sobretudo, como uma filosofia transcendental em sentido pleno. Assim,a fenomenologia constitutiva lida com os problemas próprios à filosofia transcendental, ou seja, com os problemas da “razão”. Como Kant, trata-se de esclarecer não apenas que os objetos da experiência são possíveis apenas por meio da subjetividade transcendental (na linguagem de Kant, que os objetos apenas podem ser pensados por meio dos conceitos puros do entendimento), mas como a subjetividade pode se relacionar com os objetos, explicitando as suas funções (ou “faculdades”, na linguagem de Kant) e como, através destas funções, o objeto aparece como dotado de sentido, como algo “uno” e “coerente”, e como verdadeiro, falso, ilusório, etc. É interessante que o termo “síntese” seja

comum a Kant e a Husserl na designação desta atividade da consciência que é responsável pela constituição da objetividade.

As análises noético-noemáticas revelaram, precisamente, a dialética interna da gênese do sentido para a consciência. Elas são explicitações da intencionalidade funcional da consciência doadora de sentido. A descrição fenomenológica transcendental deve atentar-se a ambos os ladosda correlação noético-noemática e isto de forma que os dois termos sejam entendidos como correlativos, apesar de a reflexão poder recair, em cada caso, ora sobre os atos (reflexão noética), ora sobre os próprios noemata (reflexão noemática). De um lado, tem- se uma consciência de multiplicidades – “constituintes” (konstituierenden) – que unifica funcionalmente essas mesmas multiplicidades e constitui a unidade nos diferentes intervalos da duração imanente, sem ser, ela mesma, uma consciência da identidade. De outro lado, tem- se, precisamente, a consciência da identidade, uma consciência que exibe a identidade do objeto tal como é visado, nas diversas modalidades de ser visado e ainda que esta consciência esteja fundada sobre a unidade de coisa constituída pelas diversas maneiras desta “se perfilar” e pelos diversos dados de sensação contidos neste perfilamento, os quais estão, ainda, em constante mudança nos intervalos temporais da percepção contínua. Neste caso, o objeto visado (por exemplo, a “árvore” entre aspas, já mencionada) não é alterado em seu sentido. Com efeito, é a consciência noemática que garante a coerência de sentido da vivência, ou, mais especificamente, no caso da percepção, a coerência perceptiva. Esta consciência noemática é, pois, “ideal”, refere-se ao conteúdo lógico do ato intencional, a seu momento de significação.

A correlação noético-noemática demonstra ser o principal instrumental de análise da fenomenologia transcendental e revela, de fato, o seu lugar de epistemologia universal entre a lógica e a psicologia. A problemática do sentido se resolve, precisamente, nas análises das correlações noético-noemáticas, por meio das quais se descobre que o objeto se apresenta como “o mesmo”, como “idêntico”, mas também por meio de análises sobre os mais distintos níveis de sínteses, passivas e ativas, que constituem a aparição não apenas como algo coerente, idêntico, articulado, mas, também, como algo verdadeiro ou falso, evidente ou desprovido de evidência. Assim, o sentido que é “visado” pode ser ou pode não ser preenchido, na atitude fenomenológica. O preenchimento é sempre intuitivo. Um modo particular de preenchimento é o que Husserl chama de “ver doador originário” (HUSSERL, 1913/1976a; 2006, §136). É o dado originário que fundamenta a legitimidade da “posição”.

A partir da evidência da experiência imanente e eidética, o fenomenólogo descobre essências, ou “leis eidéticas”, que compõem a estrutura da consciência em seu todo. Estas

essências “vinculam o sentido e o noema em geral ao sistema fechado de noeses” (HUSSERL, 1913/2006, p. 322) e, em última instância, a sistemas fechados coerentes que formam as ontologias formais e regionais. É a partir delas que o mundo natural e os mundos ideais, colocados entre parênteses pela redução fenomenológica, adquirem um estatuto positivo no interior da consciência transcendental como “sentido do mundo” (HUSSERL, 1913/2006, p. 322). É, então, sobre a base da correlação entre o sistema de atos de consciência e seus objetos que o universo da significação – isto é, de tudo o que faz ou pode fazer sentido – adquire um estatuto fenomenológico e, por isto, um fundamento epistemológico. Todos os enunciados e teorias, sejam verdadeiros ou falsos, devem repousar, em última instância, na estrutura de coerência e de identidade que a referida correlação torna possível. Assim, a fenomenologia conduz a uma investigação sobre o ser em geral, ou seja, a uma ontologia (ZAHAVI, 2003).

Além disso, as análises fenomenológicas constitutivas levam à constatação de que as atestações da consciência seguem sínteses de concordância e de discordância, por meio das quais pode haver um aumento fenomenológico progressivo de evidência ou algo como uma “explosão” ou “destruição” da mesma (HUSSERL, 1913/1976a, §138). É apenas a “significação” e as suas regras eidéticas que possuem evidência apodítica. De resto, a concatenação da experiência, com suas múltiplas determinações, é apenas uma possibilidade aberta, e jamais determinada. Mesmo assim, apesar deste fluxo cambiante, as regras de possibilidades podem ser determinadas fenomenologicamente (HUSSERL, 1913/1976a; 2006, §144) e é por esta via que a fenomenologia constitutiva pode abranger a totalidade do mundo natural e dos mundos ideais e reconduzi-los aos nexos eidéticos, ou configurações, da esfera originária de atestação de sentido e de ser. A fenomenologia não julga ontologicamente, mas parte das configurações de consciência, com suas leis eidéticas, para fornecer os “fios condutores” aos conceitos e proposições fundamentais para as ontologias regionais, formais ou materiais. É a partir da validez intuitiva (da doação originária) que este fio condutor é seguido. Por isto, aliás, a analítica da experiência pura e transcendental é sempre um requisito básico de toda teoria do conhecimento e de qualquer filosofia criticamente fundada.