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3 O significado fenomenológico da Psicologia da

3.5. Radicalização do procedimento redutivo da

A radicalização do procedimento da Psicologia da Gestalt na direção da fenomenologia transcendental tem dois aspectos principais.

a) Pressuposição da atitude natural

As análises descritivas da Psicologia da Gestalt são de todo o interesse para o desenvolvimento da fenomenologia. No entanto, é preciso manter reservas quanto às suas explicações fisiológicas. Tome-se como exemplo a tese do “isomorfismo” 107. Esta tese

assevera que a todo processo consciente, que pode ser descrito fenomenologicamente, corresponde um processo fisiológico, que não deve ser mais descrito, como na teoria clássica, em termos “moleculares” (isto é, com referência aos fatos elementares), mas, a partir de então, apenas em termos “molares”. Isto significa que as leis que regem os fenômenos conscientes (as “leis de Gestalt”) valem, também, para os processos neurofisiológicos. Segundo a expressão de Goethe citada por Köhler (1920), “aquilo que é interior está fora” (Denn was innen, das ist außen) (p. 173). As Gestalten que foram encontradas na pesquisa psicológica podem ser generalizadas e encontradas mesmo na realidade física ou fisiológica.

Há um “paralelo” entre as formas físicas (physische Gestalten) que ocorrem no sistema nervoso e as formas dos fenômenos perceptivos (Gestalten der phänomenalen Wahrnehmung)

108. Após compreender a universalidade das Gestalten na natureza, os teóricos da Psicologia

da Gestalt deixam o privilégio da descrição pura do dado fenomênico e, inclusive, voltam-se à tarefa de explicar – não apenas colocando em jogo “conceitos funcionais”, mas, sobretudo, um quadro teórico explicativo universal – estas estruturas organizadas que podem ser encontradas no próprio sistema nervoso, sob a base do princípio de que estas últimas seriam

manifestações primeiras e externas das ocorrências do campo fenomênico, as quais, por sua

vez, seriam meramente secundárias, verdadeiras réplicas internas das primeiras109. Em última

instância, os conceitos psicológicos voltam a se validar com referência aos conceitos estritamente físicos (GUILLAUME, 1937, pp. 24-25).

Ainda que muitas das investigações fisiológicas da Psicologia da Gestalt sejam orientadas por seus princípios descritivos, deve-se considerar que todas elas são elaboradas na “atitude natural” do cientista (GURWITSCH, 2009h, p. 143). O fato principal não é, então, se estas explicações possuem validade teórica ou não. Na verdade, na medida em que elas são derivadas de pesquisas conduzidas no interior da pesquisa psicológica, elas possuem uma validade de princípio. Afinal, defende-o Gurwitsch (2009h, p. 143), enquanto ciência positiva, a psicologia não tem compromissos de ir além deste ponto. Do ponto de vista fenomenológico, contudo, o fato principal é que a Psicologia da Gestalt continua a supor “realidades humanas, incluindo, dentre elas, a nossa organização psicofísica” (GURWITSCH, 2009h, p. 143). Os objetos “reais” que haviam sido colocados entre parênteses pela derrogação da hipótese de constância voltam a ter funcionalidade no interior do quadro teórico da Psicologia da Gestalt sempre que a correlação entre o percepto e os processos psicofísicos é feita. Nestes casos, está-se sempre a supor um “mundo objetivo” existente, ao passo que a redução transcendental coloca fora de jogo, justamente, a interveniência de qualquer crença sobre a existência e retorna ao problema do ser apenas após a “viragem transcendental”. Por tudo isto, Gurwitch (2009h) considera que a derrogação da hipótese de

108 Köhler (1920), por exemplo, assume o objetivo de estudar este paralelismo, conforme no-lo atesta: “Unser

Ziel kann einmal sein, die allgemeinen Eigenschaften phänomenaler Gestalten von ebenso allgemeinen Eigenschaften physikalischer Strukturen aus zu verstehen, indem wir zeigen, daß physische Gestalten, welche im Nervensystem auftreten und psychophysische Bedeutung erlangen, ganz analoge oder in einem weiten Sinne ‘parallele’ Beschaffenheit haben müssen wie die Gestalten der phänomenalen Wahrnehmung” (p. 174).

109 Conforme Merleau-Ponty (1990): “[...] se há tais fenômenos no meio físico (e, pois, no sistema nervoso), é

possível que o mundo fenomênico seja só a expressão, para a consciência, desses fenômenos” (p. 192). E adiante: “Para Koffka, o fato é que um processo consciente não acrescenta nada, posto que tudo está fundado em estruturas nervosas e que a tomada de consciência pode estar ligada à realização de uma estrutura particular” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 193). Isso significa que a consciência se torna mero “epifenômeno”.

constância é “uma redução fenomenológica fragmentária e incompleta” (p. 143). A fim de realizar todo o seu potencial epistemológico e colocar os problemas propriamente filosóficos, é preciso levá-la à universalidade e à radicalidade que Husserl deu à redução fenomenológica.

b) Os problemas constitutivos

No interior da necessidade de radicalização do procedimento redutivo da Psicologia da Gestalt surge a questão sobre a maneira como os problemas transcendentais constitutivos se colocam perante esta abordagem psicológica ou, como também poderíamos nomeá-la, “protofenomenológica” (no sentido transcendental). Corretamente desenvolvida, a Psicologia da Gestalt demonstra ter conexão com os problemas transcendentais, isto é, basicamente, com a questão sobre como o mundo e seus objetos têm sentido. Como já mencionamos anteriormente, este problema surge para Kant (1996) como a questão sobre a possibilidade do conhecimento objetivo. Para o autor alemão, trata-se de saber como, a partir daquilo que é dado enquanto uma multiplicidade desorganizada, fornecida pela intuição sensível, é possível ter-se uma experiência coerente e dotada de sentido. Gurwitsch (1929/2009a) retoma este problema kantiano da “unidade do múltiplo” para afirmar que os problemas transcendentais também se colocam perante a Psicologia da Gestalt, porém de forma modificada. Porque, se Kant partia da doutrina de Hume sobre o “material sensorial caótico” (GURWITSCH, 1929/2009a, p. 215), a Psicologia da Gestalt deve partir, pelo contrário, “da ordenança, da estruturação e da organização originais do imediatamente dado, o material fenomenológico primitivo” (GURWITSCH, 1929/2009a, p. 215). Dito de outra forma, a Psicologia da Gestalt

modifica o aspecto objetivo da dedução transcendental de Kant (1996) sobre a unidade do

objeto da intuição sensível. Esta é, então, modificação do problema transcendental, e não uma eliminação do mesmo: a multiplicidade sensível passa a ser interpretada como um material dotado de articulação interna, isto é, como a própria Gestalt. Substitui-se, assim, a aplicação de conceitos pelo entendimento sobre o material sensível pela noção de “nexo gestáltico” (Gestaltverbindung) (GURWITSCH, 2009h, p. 142).

Mas, o problema da passagem do noema ao objeto e às ontologias regionais, apesar de também surgir a partir das análises descritivas da Psicologia da Gestalt, exige que o seu procedimento redutivo seja radicalizado. Esta passagem é o problema principal da “fenomenologia da razão” 110 . Trata-se de determinar as correspondências entre a

multiplicidade de atos de consciência e de sentidos e proposições que manifestam um objeto

transcendente como um objeto idêntico. É a partir deste momento que a entidade transcendente, colocada fora de circuito pela redução fenomenológica, retorna ao âmbito de investigação fenomenológico (HUSSERL, 1976a, p. 310; 2006, p. 298). Valem aqui as determinações pelas quais o objeto aparece como “existindo verdadeiramente” e a partir das quais se pode diferenciar o seu ser verdadeiro de quaisquer aparências ilusórias (GURWITSCH, 1929/2009a, pp. 214-215). Para ter acesso a tais determinações, é preciso, aliás, que o procedimento redutivo seja radicalizado no sentido de colocar entre parênteses qualquer juízo, predicativo ou antepredicativo111, sobre a existência, que permite compreender

todo ser como correlativo à consciência, e que seja enriquecido com uma descrição sobre a estrutura eidética das correlações noético-noemáticas, que permite compreender as leis de constituição das objetividades para a consciência (HUSSERL, 1976a, pp. 311-312; 2006, p. 299). De acordo com Gurwitsch (1936/2009c, pp. 53 e ss.; 2009h, pp. 142 e ss.), no entanto, a Psicologia da Gestalt da Escola de Berlim não esgota as possibilidades filosóficas e fenomenológicas da unidade e da identidade da objetividade. Ao contrário, conforme Gurwitsch (1936/2009c), esta teoria psicológica requer um complemento no que diz respeito às unidades categoriais.

111 Veja-se Husserl (1973; 2013 §4).