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4 A teoria do campo da consciência

4.1. O tema

O tema, ou o “centro do campo temático” ou “foco de nossa atenção”, é equivalente, ainda, ao conceito fenomenológico de “noema” ou de “sentido noemático”. Gurwitsch (1929/2009a) sublinha esta equivalência, mas deixando claro que ela deve ser qualificada. Afinal, o autor afirma não considerar “o noema completo e concreto”, mas apenas o “estrato do noema destacado pela abstração, este sendo o estrato mais fundamental da estrutura do noema completo” (GURWITSCH, 1929/2009a, p. 202). Segundo ele, o noema é composto por três estratos distintos, a saber, (a) o “sentido noemático”, (b) o “estrato de caracteres” e (c) o seu “ponto de unidade central”. Já estudamos estas diferenças a respeito de Husserl. O tema deve ser considerado, por conseguinte, como sinônimo doque Gurwitsch considera como o primeiro estrato do noema – em outros termos, o “Quê” da consciência, o “sentido noemático”, aquilo que se apresenta à consciência tal como se apresenta.

a) A estrutura interna do tema

O tema apresenta uma estrutura interna que pode ser interpretada em termos de

Gestalt. Como, para a teoria Gestalt, todo percepto se apresenta imediatamente como

possuindo uma articulação interna, de modo que cada “parte” sua está já implicada no “todo”, sustentando-o e sendo sustentada por ele, também, para a fenomenologia, o noema, ou tema, deve ser entendido como sendo estruturado por uma “conexão de Gestalt” (GURWITSCH, 1929/2009a, pp. 226 e ss.; 2009h, p. 142). Segundo Gurwitsch (1929/2009a), com efeito, a “interpretação da estrutura do noema em termos da teoria da Gestalt conduz a importantes consequências para a teoria das partes e dos todos” (p. 277). Para ele, isto significa, de um lado, rever a teoria de Ehrenfels (1890/1988) sobre as “qualidades de forma” (Gestaltqualitäten) e, de outro, rever a distinção, de Stumpf, entre partes “dependentes” e partes “independentes” 116. A nova teoria deve partir, sobretudo, da compreensão de que não

116 Não lidaremos, aqui, em detalhes, com a concepção de “partes dependentes” e “partes independentes” que é

desenvolvida por Gurwitsch (1929/2009a, §VIII, pp. 286-293). A concepção do autor, diferentemente da teoria de Stumpf e Husserl, considera a diferença qualitativa entre aquilo que pertence a uma contextura e contribui com ela e aquilo que já sofreu destacamento (não há “identidade” entre um e outro). Assim, para ele, todo constituinte de uma Gestalt é “dependente”, no sentido da teoria clássica de ter o seu sentido sobredeterminado

há componentes “independentes” por essência, mas, sendo todos os componentes

dependentes, alguns destes componentes se sobressaem e “dão o tom” da Gestalt,

desempenhando um papel dominante na estrutura, enquanto outros desempenham meramente o papel de subordinados no interior desta estrutura, quer dizer, de sustentação do seu sentido. Os primeiros são os componentes formativos, ao passo que os outros são os componentes

formados. Isto deriva dos princípios funcionais da Gestalt (por exemplo, a lei da boa forma).

Por conseguinte, a conexão gestáltica interna ao tema diz respeito à relação entre os seus constituintes “formados” e “formativos”. Os constituintes formados são aquilo que são apenas no interior de uma configuração global e exaurem a sua significação na função (subordinada) que desempenham no interior desta Gestalt. Os constituintes formativos, diferentemente, têm um papel “dominante” na organização da Gestalt, mas tal papel depende inteiramente do quadro estrutural como um todo, no interior do qual eles ganham significado e têm o seu lugar determinado pelas leis de estrutura, isto é, pelo sentido que é determinado pela própria Gestalt. Nos dois casos, o “ser” dos constituintes corresponde, então, à sua função no interior da estrutura. Fora da estrutura à qual estão integrados, os constituintes formados e formativos são completamente modificados e, por conseguinte, a sua “fisionomia” se altera inteiramente. Os constituintes formados e os formativos mantêm uma conexão de tipo especial. Os constituintes formados são indispensáveis para a Gestalt na medida em que eles possuem uma “função de suporte” e, assim, contribuem para o sentido noemático, preenchendo a função que é atribuída a eles pelo todo estruturante. Os constituintes formativos requerem os constituintes formados para poderem ser formativos; do contrário, o tema seria incompleto e fragmentário, não seria, de fato, o que ele é. Isto porque todos os constituintes da Gestalt são dependentes, requerem e suportam uns aos outros, e formam, por isto, um sistema articulado. No exemplo já citado do retângulo (Figura 3), o lado a é um constituinte formado com relação ao caráter “retangular” da configuração total (sua “retangularidade”, por assim dizer). Ao mesmo tempo, ele sustenta a configuração e depende dela para ter o seu sentido. Fora da estrutura do retângulo, o lado a, no entanto, perde a sua fisionomia e o seu sentido, visto que perde a sua função estruturante: ele se torna, meramente, um segmento de reta. E, ao fazer-se abstração do lado a (por exemplo, apagando-o do quadro negro) e, inversamente, focar-se sobre o restante da figura, o próprio caráter de “ser retangular” da configuração total se torna alterado (ficamos com uma figura “vazada” por um

pela contextura, mas alguns podem ser destacados (não são independentes per se). Aquilo que a teoria clássica concebeu como constituintes “independentes” são, na verdade, os constituintes já destacados.

de seus lados e, por isto, “aberta”, diferentemente do caráter “fechado” do retângulo; ela pode ser, inclusive, vista como outra figura, semelhante à letra “C” etc.).

Neste sentido, o tema pode ser definido como o “sistema de seus constituintes” (GURWITSCH, 1929/2009a, p. 230), ou, conforme o autor afirma mais tarde, o “percepto

como um todo […] é interpretado como uma unidade complexa de significado”

(GURWITSCH, 1964/2010a, p. 265). Este ponto de vista acarreta, também, uma reinterpretação da teoria clássica sobre a unidade do percepto, anteriormente explicada, no interior da fenomenologia, pela doutrina dualista de “matéria” e “forma” (“hylē” e “morphē”).

b) Conteúdos fundantes e conteúdos fundados (hylē-morphē)

De acordo com a formulação clássica de Ehrenfels (1890/1988), a “qualidade de forma” seria um conteúdo adicional fundado sobre um “complexo de apresentação”. Por exemplo, uma melodia requereria a soma de apresentações acústicas dispostas em tempos diferentes, mas internamente ligadas entre si. Neste sentido, o complexo possui uma “qualidade de forma”. Ehrenfels (1890/1988) se pergunta se as figuras espaciais ou melodias seriam uma combinação de elementos ou algo de novo, diferente dos elementos. Para ele, deve-se considerar a natureza da qualidade de forma como diferente da mera soma das partes que um complexo contém, como uma “qualidade nova”. Por exemplo, uma melodia pode manter-se “idêntica” em tonalidades diferentes, ou, o que dá no mesmo, com base em “substratos” sensíveis, acústicos ou espaciais, diferentes. Segundo Ehrenfels (1890/1988), a condição necessária e suficiente para que uma qualidade de forma se apresente é a de que os elementos estejam combinados, mesmo que justapostos, seja espacial ou temporalmente, de uma maneira inteiramente determinada, formando estes “complexos”, chamados também de “substratos”. A “qualidade de forma” se superporia a estes substratos como um elemento adicional. Meinong117 (apud GURWITSCH, 1929/2009a, p. 278) teria expressado esta mesma

distinção com os termos inferiora e superius. Igualmente, a teoria de Benussi repousaria sobre esta distinção. E, ainda, a teoria de Husserl sobre os “fatores figurais” (figurale Momente) implicaria a mesma ideia da “unidade sensorial” como uma qualidade de segunda ordem, “superior”, fundada sobre dados múltiplos “inferiores”. Segundo Gurwitsch (1929/2009a), este dualismo é comum a todos estes autores, o que, aliás, já vimos no capítulo anterior.

Um dos principais pontos da teoria da intencionalidade de Gurwitsch é a crítica a este dualismo entre elementos sensoriais e extrato superior e que se atualiza, ainda que de forma

117 MEINONG, A. Über Gegenstände höherer Ordnung und deren Verhältnis zur inneren Wahrnehmung,

ligeiramente diferente, conforme Gurwitsch (1929/2009a), na teoria da hylē-morphē de Husserl (1913/1976a; 2006). De acordo com Gurwitsch (1929/2009a), esta teoria de Husserl é uma contraparte da distinção, feita por Benussi118 (apud GURWITSCH, 1929/2009a, p. 280),

entre as apresentações e os processos de apresentação de origem sensorial e extrassensorial. Como já o vimos, o conceito husserliano de hylē engloba uma multiplicidade de “sensações”. As sensações designariam, pois, um “estofo material desprovido de forma”, múltiplo e desconexo, apenas presente à consciência, um mero “dado”. Este material ganharia forma e sentido apenas por meio da ação de funções de ordem superior, que corresponderiam ao estrato da “apreensão doadora de sentido”, o estrato noético. Por meio deste último estrato, aliás, as sensações ganhariam o sentido específico de “consciência intencional”. O sentido genuíno de “vivência psíquica” seria garantido apenas por estas funções animadoras. Recorrendo à raiz grega do conceito de consciência (nous), tal como está implicado na formulação husserliana, Gurwitsch (1929/2009a) afirma: “O nous transforma os dados hiléticos em experiências intencionais; é graças a ele que algo é visado nos processos subjetivos, [é graças a ele] que estes últimos possuem referência intencional ou função presentacional ou presentificadora” (p. 281). Nous, para Gurwitsch (1929/2009a), corresponde, portanto, ao que Husserl chama de “morphē”. Além disso, os atos de doação de sentido são considerados, desta perspectiva, como os responsáveis pela atividade da consciência, de tal modo que esta é uma manifestação da “atenção”. Voltaremos ao problema da atenção mais abaixo.

A reprimenda de Gurwitsch (1929/2009a) quanto ao dualismo de Husserl vale tanto para o que ele concebe, nas Investigações (1984; 2012a), como “apreensão interpretativa” ou “apreensão objetivante”, quanto para o que ele concebe, nas Ideias I (1976a; 2006), como “apreensão animadora”. Certamente, o problema não está no fato de que as expressões são dotadas de sentido ou de que a compreensão necessita de signos, mas na tese subjacente de que significados ou apreensões diferentes se aplicam a um mesmo objeto invariável e destituído de sentido per se. Para Gurwitsch (1929/2009a), o fato é que, mesmo na experiência significativa (linguística), um “signo” pode aparecer de maneira diferente de acordo com, por exemplo, a familiaridade do intérprete. O autor utiliza o seguinte exemplo. Se eu me deparo com um texto escrito com letras chinesas e uma pessoa que conheça o chinês se depara com o mesmo texto, não apenas esta pessoa entende e eu não, mas, também, a

118 BENUSSI, V. Gesetze der inadäquaten Gestaltauffassung, Archiv für die gesamte Psychologie, XXXII, 1914,

p. 400; BENUSSI, V. “Zur Psychologie des Gestalterfassens”. In: MEINONG, A. (Ed.). Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie, Leipzig, 1904, pp. 382 e ss.

“fisionomia” das letras é diferente em cada caso, quer dizer, as letras “parecem” diferentes para mim e para ele. Para o autor, isto significa que não se está lidando, nos dois casos, com o mesmo objeto, tal como ele é imediatamente dado. O que se deve sublinhar, neste caso, é que não há um “substrato” percebido que permanece inalterado. Se as “sensações” são concebidas como este substrato percebido, elas só podem ser entendidas como permanecendo idênticas se elas não forem mais consideradas do ponto de vista estritamente fenomenológico, ou, dito de outra forma, se elas não forem mais consideradas do ponto de vista do que é percebido. Considerá-las como “evento físico”, em correspondência a um estado de coisas objetivo e externo, é extrapolar o domínio fenomênico.

De acordo com Gurwitsch (1929/2009a), ao considerar o ato de significação como “fundado”, como pressupondo a aparência de um substrato físico e, ao ser fundado nela, fundido com ela em um “ato total unitário”, Husserl (2012a) 119 escapa deste “fisicalismo”,

pois o substrato é alterado e combinado neste ato global de alguma forma. Mesmo assim, o ato de doação de sentido exige um substrato que seja articulado de maneira específica. Então, precisamente a questão sobre a articulação da hylē permanece um problema para a sua teoria. Ora, se os dados hiléticos sensoriais não possuem, diretamente, esta articulação e se os atos de doação de sentido não são da mesma ordem que tais dados, Gurwitsch (1929/2009a) entende que “um terceiro ato noético intermediário deveria ser assumido para que esta articulação seja gerada” (p. 283). De acordo com o autor, este ponto de vista é falso por dois motivos. Primeiro, porque a análise descritiva não encontra nada como este estrato intermediário. Segundo, porque, mesmo que este estrato fosse evidenciado, continuaria a ser um problema determinar se os dados hiléticos, isto é, os mais inferiores e que subjazem à aparição no ato global, permaneceriam sem serem afetados pelas noeses a operar sobre eles. Este segundo problema deriva do fato de que, na própria aparição, não são os dados hiléticos, enquanto correspondências estritas a estados de coisas físicos e, por isso, enquanto materiais caóticos, que aparecem, pois o que aparece não tem mais este caráter de “material caótico”. Então, se não aparecem, não há como determinar, fenomenologicamente, nada a seu respeito. Aqui, valem todas as consequências, que, aliás, já observamos, da hipótese de constância. Além disso, isto significaria que este estrato hilético permaneceria idêntico, constante, sem ser alterado, apesar de variações na atenção, na atitude etc. As análises de Gurwitsch (1929/2009a) sobre as modificações temáticas, que apresentaremos no próximo capítulo, falam contra esta tese. Não há, de acordo com a concepção do autor, propriedades que

pertençam a este estrato de uma vez por todas, tampouco este estrato pode ser considerado

como “independente”, no sentido de ser sempre destacável das conexões que mantém com o “estrato superior”.

Contra a doutrina da hylē-morphē e contra a teoria das “qualidades de forma”, Gurwitsch (1929/2009a) defende que há uma conexão gestáltica entre todos os componentes de um percepto, ou seja, que aquilo que se concebe como “dado hilético”, na verdade, tem um lugar determinado no interior de uma estrutura e que ele, ao mesmo tempo, a requer e é por ela requerido. Somente por meio deste papel funcional que este dado hilético pode “ser” aquilo que ele “é” em cada caso concreto. Se, de acordo com a teoria clássica, a “melodia” é

adicionada a um complexo de notas como um novo elemento e se cada nota deste complexo

permanece “a mesma” na alteração de sua contextura melódica, a teoria da Gestalt conduz a uma interpretação diferente. De acordo com esta teoria, a nota musical é dependente de sua contextura. Ela depende existencialmente desta estrutura para que ela seja o que é. Como se verá melhor adiante, a mesma nota musical como componente de uma melodia em tom de “sol maior” é diferente desta nota em uma melodia em “lá menor” (ou colocada em um acorde, etc.) e é, ainda, diferente se tomada como apartada da melodia, como uma nota “isolada”. Além disso, deve-se considerar que o material sensível não deve a sua articulação a qualquer função superior. Pelo contrário, conforme Gurwitsch (1929/2009a), “aquilo que é imediatamente dado, o material fenomenológico primário, é dado apenas como articulado e estruturado” (p. 283-284). Não pode haver, de acordo com este ponto de vista, dado sem articulação, ou, o que dá no mesmo, não há “dados hiléticos”. Aquilo que é dado é a própria

Gestalt com sua articulação interna, de tal forma que o dado não pode ser considerado sem as

conexões estruturais no interior das quais ele aparece, mesmo que ele seja produto de isolamento abstrativo. Por conseguinte, mudanças na organização, como, por exemplo, no tom da melodia, devem acarretar mudanças colaterais no próprio dado – a nota musical deve ser percebida de maneira diferente. A ideia de um “estofo material” que permaneça idêntico em múltiplas apreensões não demonstra sua validade fenomenológica. A separação entre hylē e morphē não possui fundamento. Considerar a hylē independentemente da morphē corresponde, antes de um dado fenomenológico fundamental, a uma mudança completa daquilo que é dado (mais particularmente, corresponde à mudança temática, a ser estudada abaixo, nomeada como “destacamento”).

Como consequência deste ponto de vista, o “sentido noemático”, tal como é “constituído” pela consciência intencional, deve ser entendido como um “todo estruturado” (GURWITSCH, 1929/2009a, p. 284). Não há mais dualismo entre matéria e forma.

Paralelamente, os conceitos de “noesis” e de “intencionalidade” devem ser redefinidos. O conceito de “noesis”, por um lado, deve deixar de significar “uma função organizadora e apreensora que transforma os dados hiléticos em um veículo de sentido ou significado, uma função especial e específica à qual a consciência deve o seu caráter de intencionalidade” (GURWITSCH, 1929/2009a, p. 284). A distinção entre hylē e morphē deixa de participar do conteúdo essencial do conceito de noesis. Por conseguinte, o termo deve corresponder ao “ato

experienciado de consciência em sua inteireza” (GURWITSCH, 1929/2009a, p. 284). Por

outro lado, o conceito de “intencionalidade”, na medida em que diz respeito à correlação noético-noemática, deve compreender, ao mesmo tempo, a “noesis” assim redefinida, bem como o “noema”, como seu correlato intencional, também redefinido a partir do conceito de

Gestalt.

c) O horizonte interno

A fenomenologia do tema não deve, no entanto, restringir-se à experiência perceptiva atual e àquilo que nela é dado através de um único ato de percepção. Diferentemente, é necessário incluir, nesta consideração, aspectos que não são dados desta forma, mas que desempenham um papel importante em tal ato de percepção, quais sejam: os aspectos invisíveis e potenciais que estão contidos, como referências possíveis, na percepção atual, além das relações e implicações, na simultaneidade e na sucessão, deste ato de percepção com outras coisas e outros atos. Em uma palavra, deve-se incluir, na fenomenologia temática, o fenômeno do contexto. Tome-se o seguinte exemplo. Ao perceber um cubo, percebo imediatamente uma de suas faces, a sua cor, a sua forma (form) e o seu formato (shape)120.

Como esta percepção, toda percepção se dá, com efeito, apenas por um de seus lados ou de seus aspectos. Mas, as demais faces do cubo, o seu lado “oculto” (seja como for colorido, seja

como for de tal forma e formato etc.), também me são imediatamente dadas na percepção

unilateral do cubo, apesar de eu ter apenas uma consciência mais ou menos obscura dessas demais faces do cubo. Para Gurwitsch (1929/2009a), mesmo esta face oculta compõe aquilo

de que eu estou imediatamente cônscio, isto é, pertence ao sentido noemático do próprio cubo

120 Gurwitsch (1929/2009a) utiliza, em conjunto, as palavras “form” e “shape” para descrever o fenômeno

perceptivo. Embora tais palavras possam ser entendidas, muitas vezes, como sinônimas e, nesta direção, traduzidas ambas por “forma”, o presente caso requer uma distinção entre elas. Uma possível distinção consiste no seguinte. Enquanto “form” denota a configuração material de um objeto no espaço e no tempo, preenchendo as dimensões de largura, altura e profundidade, o termo “shape” denota mais os contornos que tornam um determinado objeto reconhecível por seu “formato”, geralmente preenchendo apenas as dimensões de largura e de altura. Neste sentido, de forma bastante simplificada, o termo “form” é aplicável a estruturas complexas como cubos, esferas, cones etc., ao passo que o termo “shape” é mais aplicável a estruturas simples e planas, como quadrados, círculos, triângulos etc.

enquanto um objeto unitário. Pode-se afirmar, por conseguinte, que, na esfera da percepção de coisa, o sentido noemático sempre se apresenta como algo “atual” que está inserido em um

campo do que não é visto e do que é mais ou menos indeterminado. A configuração do tema é

essencialmente determinada por este “horizonte interno” 121, que consiste na articulação e

integração destas múltiplas referências perceptivas que vão além do dado atual e visível (as faces ocultas do cubo versus sua face visível) em um só objeto percebido (o cubo com suas seis faces). Todos os lados do cubo possuem significância funcional para a configuração total do cubo.

Os componentes da percepção atual são, por essência, sempre preenchidos e determinados, em menor ou maior grau, mesmo que eu possa me enganar a seu respeito ou me iludir. O campo de referências potenciais, todavia, é composto por obscuridades, de modo que os seus componentes são caracterizados como vazios e indeterminados. Toda percepção atual está conjugada no campo do que não está atualmente presente e que, contudo, forma, necessariamente, o campo de suas circunjacências. Segundo a formulação de Husserl (1913/1976a, p. 80, p. 286), a relação entre a percepção atual e este campo circundante é uma relação entre parte dependente e todo. A parte dependente, segundo ele, apenas pode possuir “unidade de sentido” e “independência de sentido” neste todo que, no entanto, necessariamente contém componentes vazios e indeterminados. Fazendo-se alusão ao exemplo anterior, poderíamos dizer que a percepção da face do cubo está necessariamente referida a um campo de indeterminação onde está contida, por exemplo, a sua face de trás, oculta, e os seus componentes indeterminados e vazios. Isto não significa, contudo, que estes componentes indeterminados e vazios, meramente potenciais, sejam “mediados” pelo dado atual, determinado e preenchido. Pelo contrário, o campo de indeterminação é dado

imediatamente à percepção e, por isto, ele se inclui na consideração do dado tal como ele aparece nos atos pelos quais é apreendido. A este respeito, o problema fenomenológico sobre

a estrutura interna do sentido noemático requer uma posição em face da questão sobre em que consiste a relação entre a percepção atual, preenchida e determinada, e seu campo de indeterminação.

121 As expressões “horizonte interno” e “horizonte externo”, provenientes das análises husserlianas sobre a