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Na continuidade dos estudos de doutorado sobre a Capoeira do Recife na década de 1980 observei nos documentos escritos e nas falas dos entrevistados, faces em que a Capoeira pode se expressar para se afirmar socialmente. Neles vamos encontrar pistas que ora apresentam o capoeirista como um lutador, ora como um esportista, ora como um dançarino, ora como um educador, ou mesmo com aspectos destas identidades.

96 Nas lutas disputadas, por exemplo, muitas histórias de confronto antes e depois do ringue, foram construídas. Isso porque já havia nesta década uma ascensão das artes marciais estrangeiras no Brasil, especialmente aqui em Recife, com a chegada de algumas, dentre elas o full contact que inicialmente se instalou em academia no terminal do bairro da zona sul da cidade, Boa Viagem, sob a direção de Rosael José de Queiroz. Em décadas anteriores outras lutas já tinham sido incorporadas a cultura do Recife, como foi o caso do Karatê e Jiu-jitsu.

Outra forma de visibilidade construída pelos capoeiristas foi à participação em grupos de dança da cidade, desde aqueles maiores e mais conhecidos como o Balé Popular do Recife, Balé Primitivo e Balé de Cultura e Arte Negra (BACNARÉ) até aqueles menores, muitas vezes surgidos a partir de pessoas saídas destes grandes grupos.

No campo da educação vamos ver surgir projetos sociais, nos quais a Capoeira aparece como atividade principal e espaço para sociabilidades entre crianças, adolescentes e jovens. Assistimos também a participação da Capoeira como prática de lazer, em escolas do Recife da rede pública e privada e sua inserção na Universidade Católica como atividade do setor de extensão.

Sobre as experiências dos capoeiristas do Recife na relação com o esporte apresentei uma discussão preliminar no artigo “Você diz que dá no nego, no nego você não dá...” As táticas dos capoeiristas para afirmação do jogo da Capoeira em Recife construídas a partir da década de 1980, veiculado no livro A História e Suas Escritas: relatos de pesquisa, organizado por Erinaldo Cavalcanti e Geovanni Cabral (2013, p.172- 192).

Neste artigo mencionado constatei que, nas entrelinhas da participação dos capoeiristas em campeonatos estaduais e nacionais, havia táticas para afirmar o jogo da Capoeira na cidade. “Essas competições serviam para aglutinar os capoeiristas nas primeiras décadas dos anos oitenta, conseguindo unir para o propósito esportivo, diferentes escolas e perspectivas de Capoeira.” (CORDEIRO, 2013, p.176)

Essa ênfase esportiva para as práticas corporais nas sociedades capitalistas, estabelecendo códigos disciplinares para os corpos, espaços e tempos, vai dialogar com aspectos da capoeira e criar um ambiente esportivo singular em Recife. Apesar de existirem regulamentos que passaram a fazer parte das competições nacionais, aqui eles nunca foram seguidos a risca, sempre foram recriados e adaptados ao seu público. (OP. CIT, p.181)

97 O caso dos JEP’S (Jogos Escolares Pernambucanos) e o JEB’S (Jogos Escolares Brasileiros) são muito elucidativos para compreender as relações da Capoeira com o esporte no Recife dos anos de 1980. Essas competições foram organizadas desde o início dos anos de 1960 e teve no período da ditadura civil militar um grande incentivo. A Capoeira, entretanto, só vai aparecer como modalidade competitiva no ano de 1985 e fica até 1990. Depois tem mais uma versão em 1994 e deixa de fazer parte dessa competição.

Aos poucos o campeonato estadual que acontecia em escolas, tornou-se local de reunião de diferentes grupos de capoeira da cidade. Por isso, além de selecionar a equipe que defenderia Pernambuco na competição nacional, ficou marcada por ser um espaço de afirmação de identidades, divulgação de eventos e de consolidação do jogo da capoeira. (OP CIT, p.184).

Em 1987, a participação feminina foi incorporada na competição, colaborando para um intercâmbio entre as mulheres e visibilidade das mesmas no meio capoerístico brasileiro. As capoeiristas, apesar de estarem em menor número do que os homens passam a se destacar pela qualidade de suas intervenções. Elas lembram com carinho deste momento tão significativo em suas vidas. Muitas participavam pela primeira vez de uma competição, assim como de uma viagem de avião, na qual ficariam dias longe da família.

Para as jovens capoeiristas tudo era novidade. Foram momentos de muitas coisas a superar, o medo das adversárias, dos novos ambientes para a Capoeira, entre outros. Mas afirmam que estes foram momentos importantes para seu fortalecimento enquanto mulheres que se refletiram posteriormente em suas vidas profissionais. Daniela Gouveia em depoimento no livro A Mulher Entrou Na Roda afirma que

Com a Capoeira, aprendi a conviver num universo masculino sem perder a doçura. Por incrível que pareça, há 14 anos comecei a trabalhar como representante comercial, participava de grandes negociações, em grandes redes de varejo e nessa época ainda existiam poucas mulheres vendedoras. Eram almoços com executivos, empresários... Mas para mim era uma grande roda, onde eu tinha apenas que gingar, sorrir e ter cuidado para não vacilar. Apesar de que temos sempre a chance de recomeçar o jogo. E esse para mim é o grande aprendizado. Temos de ficar atentos à vida, à violência urbana, à falta de respeito ao ser humano e aos preconceitos de que nós mulheres ainda somos vítimas.

Os JEB’S apesar de ser uma competição nos moldes do sistema esportivo oficial se constituiu , no dizer de alguns estudiosos e organizadores desse evento, como um espaço de intercâmbio entre os capoeiristas, que na década de 1980, contribuiu para divulgação da Capoeira Angola e Regional, pelas mãos de mestres tradicionais dessas linhagens de Capoeira, e principalmente para sedimentação dessa prática como modalidade educativa.

98 Marta Lima Jardim (2010, p.35 e 36) comenta que os JEB’S foram importantes para as mudanças na Capoeira em todo o Brasil.

Nem acreditávamos: nós adolescentes e aprendizes, partilhando da convivência, atenção e carinho de mestres como João Pequeno, João Grande, Paulo dos Anjos, Tabosa, Suíno, Zulu, Falcão, entre outros.

Muito mais importante do que os títulos e medalhas recebidas, também foram as fortes relações de amizade que se tornaram duradouras entre os capoeiristas de diversos estados, sobretudo do Nordeste. Por diversas vezes, tive prazer de reencontrar os então garotos e garotas, posteriormente formados professores e mestres de capoeira, e relembrar tais momentos com muitas saudades.

Todos os aspectos mencionados da relação da Capoeira com os esportes, lutas, danças e como elemento de educação vão tomando corpo na década de 1980 e contribuíram para legitimar socialmente a prática da Capoeira. No entanto, a luta nestes espaços para aceitação da Capoeira como manifestação ligada ao acervo da cultura negra, ainda estava longe de se concretizar. Sobretudo pelos preconceitos ligados às relações da Capoeira com elementos de outras expressões de mesma raiz cultural (Candomblé, Maracatu, Afoxé, etc), que muitas vezes estão presentes na música e rituais desta prática.

Ainda hoje, mesmo a Capoeira estando presente em vários espaços da cidade, enfrenta tentativas de invisibilizar sua força enquanto elemento da cultura negra, desarticulando-a de seus ideários, preceitos e rituais, sofrendo uma espécie de higienização dos seus modos.

Mas os primeiros passos, dados nos anos de 1980, foram condições importantíssimas para luta por espaços de expressão, que até hoje a Capoeira ainda enfrenta na sociedade pernambucana, apesar de: ter sido reconhecida e registrada como bem de natureza imaterial do Brasil, desde 15 de julho de 2008, com recomendação especial para inventariar as singularidades do estado; ter a roda de Capoeira como Patrimônio da Humanidade; e estar presente em vários artigos da Lei do Estatuto da Igualdade Racial.