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Recentemente o Diário de Pernambuco, no dia 17 de fevereiro de 2013, no Caderno Aurora, veiculou uma reportagem intitulada Mestre da Delicadeza, referindo-se ao capoeirista Gilson Santana, o Mestre Meia Noite. Nela a jornalista Camila Almeida apresenta uma síntese da história deste mestre que contribuiu muito para afirmar o jogo da Capoeira, levando para palcos do Recife, das cidades do interior de Pernambuco, de outros estados do Brasil e do mundo, a plasticidade dos movimentos da Capoeira.

106 No festival de dança 2015, evento que ocorre desde 2006 em Recife, o Mestre Meia Noite foi homenageado. Ele foi reconhecido como grande artista pernambucano, que no dizer de Ariano Suassuna veiculado em documento de divulgação do Festival de Dança do

107 Recife, seria o Mikhail Baryshnikov pernambucano (se referindo ao bailarino russo, que é reconhecido como um dos maiores dançarinos de todos os tempos.)

Mestre Meia Noite ganhou seu apelido numa brincadeira de seu primeiro professor de capoeira Valmir, que ao conhecê-lo disse: escureceu tudo! Assim como José Raimundo da Silva Neto, conhecido como Branco ou Branco de Aruanda ou Aluanda, que recebeu esse apelido também pela cor da pele, em contraste com seu amigo e companheiro nos caminhos da Capoeira, Meia Noite. Foram principalmente pelas mãos desses dois homens que a Capoeira passa a incorporar em Recife os espetáculos de dança popular.

Segundo entrevista de Antônio Nóbrega, presente na reportagem, o Mestre Meia Noite combinava nas suas coreografias passos de dança e de luta. “Meia Noite se interessou pelas danças populares e decidiu recriar esse universo artístico, que não tem tanta visibilidade no Brasil...” (ALMEIDA, 2013, p.9)

Segundo Branco de Aluanda, tudo começou depois que ele e Meia Noite estrelaram num espetáculo de teatro e foram chamados por André Madureira para participarem do grupo que iniciara seu trabalho na cidade com as danças e folguedos populares, o Balé Popular do Recife. No balé solicitaram a eles que aprofundassem seus conhecimentos de Capoeira, foi quando eles procuraram o Centro Cultural Boi Castanho Reino do Meio Dia que tinha um professor chamado Valmir, de Campina Grande que dava aulas de Capoeira.

O balé passou então a dividir os custos da vinda desse professor de Capoeira de outra cidade, mas logo ele precisou voltar para sua terra para finalizar seus estudos. Foi quando Avestruz (nome de Capoeira de Antonio Nóbrega), junto com Meia Noite e Branco foram a João Pessoa e procuraram Mestre Zumbi Bahia, que dava aulas de Capoeira naquela cidade.

O Boi Castanho foi um centro artístico de grande relevância para o Recife nos anos de 1980. Nele foram gestados muitos movimentos culturais. O compositor Getúlio Cavalcanti fez uma música em homenagem a esse espaço e seus artistas, que expressa um pouco do que era vivido lá.

Eu sou da Estrada Real do Poço, da Casa Forte, sou Boi Castanho, Eu sou do Reino do Meio-Dia,

Fazendo alegria, coração desse tamanho... Vejam vocês:

Burra Calu, Bastião e o Mateus, Cavalo-marinho e o Capitão,

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Mané Pequenino e o Sacristão. Que Figural!

É a Dona da Ema, O Padre e o Fiscal, O Doutor Penico Brando E o Rabequeiro, Mané Batateiro Vão brincar o Carnaval.

Mestre Zumbi Bahia foi um dos artistas que a partir do Boi Castanho, teve grande relevância para a Capoeira do Recife. Colaborou para apresentá-la como possibilidade artística e foi um dos fundadores da dança afro pernambucana. No SESC de Santo Amaro promoveu grandes eventos junto com outros mestres e capoeiristas, que enfatizavam e estabeleciam relações entre as danças populares e seus brincantes com a Capoeira.

Mestre Zumbi Bahia fundou em 1982 o Balé Primitivo junto com Ubiracy Ferreira. O grupo tinha a participação dos seus alunos capoeiristas Branco e Meia Noite. Segundo Branco eles eram figuras centrais no balé, participavam de várias coreografias das danças africanas e da Capoeira. O Balé Primitivo fez várias apresentações na cidade e trouxe para os palcos uma representação das experiências e vivências corporais afro-brasileiras.

Depois de sair do Balé Primitivo, Branco e Meia Noite ficaram somente no corpo de dançarinos do Balé Popular do Recife. Nele se apresentavam em dupla na coreografia de Capoeira. Meia Noite também era responsável pelo solo de Capoeira. Com sua

109 expressão corporal singular enchia os olhos do público, que muitas vezes assistia pela primeira vez o gestual da Capoeira num palco. Esse solo, entretanto, era motivo de “chacota” entre alguns capoeiristas que diziam que Meia Noite não era mais capoeirista e sim bailarino. Isso porque essa face ligada à dança, ainda não era de todo aceita como uma importante tática para visibilidade da Capoeira entre os capoeiristas.

O referido solo do Mestre Meia Noite, encontra-se disponível no acervo de vídeos do site Retornança, que é um banco de dados da dança pernambucana, organizado por Roberta Marques Ramos, dançarina e professora do curso de dança da UFPE, que contém uma série de informações textuais e visuais dos dançarinos e grupos de dança do Recife. O referido solo também foi recriado e apresentado recentemente em palco, por Orumilá Santana, filho do Mestre Meia Noite.

Essa experiência dançada da Capoeira se desdobrou a partir do grupo de Capoeira, que o Mestre Meia Noite fundou em 1988, o reconhecido “quilombo urbano” Daruê Malungo, que fica situado na comunidade de Chão de Estrelas, na Campina do Barreto, parte norte da cidade do Recife. Nesse espaço, a Capoeira foi e ainda é mais do que uma expressão corporal, ela é tema e conteúdo de alfabetização das crianças envolvidas nos projetos sociais. Além disso, tornou-se parte obrigatória do aprendizado dos dançarinos do grupo cultural Daruê.

Aos poucos a Capoeira visibilizada nos palcos vai abrindo caminhos para seu reconhecimento como atividade artística, pertencente ao universo mais geral da cultura negra e de grandes possibilidades corporais, já que os capoeiristas aproveitavam também esse espaço para colocar às relações da Capoeira com outras danças locais em suas formas de expressão corporal.

Uma singularidade que identificamos, por exemplo, dos grupos de Capoeira nesse período em Recife e também em muitas partes do Brasil, foi introduzir nas suas apresentações artísticas, o maculelê, dança africana guerreira, recriada no Recôncavo Baiano, nas festas da colheita da cana de açúcar, pelo Mestre Popó de Santo Amaro. Os capoeiristas do Recife, entretanto, quando dançavam o maculelê incorporavam a sua expressão coreográfica passos do frevo, o que particularizava na cidade sua forma de expressão.

110 Severino Correia (Lepê Correia), poeta, educador, dançarino e militante do Movimento Negro em Pernambuco, traduz na poesia Tributo A Mestre Meia Noite um pouco da importância do Mestre Meia Noite para a cultura pernambucana.

Tem gestos largos

Um sorriso do tamanho da Campina O chão abençoa seus pés

Pelo carinho de seu andar A “meia lua”fica mais ligeira No compasso de sua ginga

No coração pulsa sua vida “Daruê”

Sua gargalhada do tamanho de “Chão de Estrelas” Ecoa favela a fora cirandando

Parindo coco, jongo, lundu, capoeira Tem a calma de Orisan’lá

A coragem de Ogum E seu viver com as crianças É um grande batucajé - Benção Mestre Meia-Noite!

- Capoeira, Salve! (CORREIA, 2006, p.45)

O Balé Popular do Recife que foi fundado em 1976, ainda como um grupo de teatro popular, também contribuiu muito com a visibilidade artística da Capoeira, abrindo espaço para os capoeiristas em seu corpo de artistas, que por seu envolvimento nessa arte, vinculavam-se à companhia e acabavam aprendendo outras danças e as encenando nos espetáculos. Nos encartes de seus espetáculos sempre aparecem figuras representando a Capoeira.

Roger de Renor capoeirista, participante do Balé na década de 1980, afirma o quanto suas referências artísticas se ampliaram ao participar desse grupo. Em entrevista ao NE 10 publicado em 02 de outubro de 2011, ele diz que nos espetáculos “Fazia Capoeira e Frevo, Caboclinho, Coco. Imitava embolador. Participei do espetáculo Prosopopeia - um Auto de Guerreiro.” (HOLANDA, 2011)

Raimundo Branco hoje responsável pela Compassos Companhia de Dança, situada na Rua da Moeda, no Centro do Recife, também protagonizou muitas atividades de Capoeira e dança na cidade. Em 1985 estreou o espetáculo Brasil com “S”, no qual a Capoeira tinha muito destaque.

Segundo Daniela Carneiro Gouveia de Melo (Contramestra Dani), em depoimento no livro A Mulher Entrou Na Roda, afirma que esse espetáculo Brasil com “S” foi responsável pelo seu ingresso na Capoeira.

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A capoeira veio ao meu encontro quando minha família decidiu abrir a Academia Espaço Novo. Mas meu primeiro contato visual aconteceu um ou dois anos antes, no espetáculo Brasil com S, do coreógrafo e capoeirista Raimundo Branco. Lembro que os movimentos, a dança corporal, me chamaram atenção. Sempre fui muito ligada a qualquer atividade que envolvesse expressão corporal. (CORDEIRO, 2010, p.42)

Hoje no trabalho como artista cênico, Branco utiliza a Capoeira para preparação dos atores bailarinos da Companhia Compassos de Dança. Muitas das suas produções têm recebido premiações e se apresentam em Pernambuco e outros estados do Brasil. Nos currículos dos cursos da Companhia sempre aparece à Capoeira como conteúdo, principalmente a Capoeira Angola.

Muitos grupos de danças populares foram se formando na cidade, no final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990. Em suas pautas não deixaram de incluir o conhecimento dos gestos da Capoeira para formação dos dançarinos e para preparação das coreografias. São exemplos destes: o Retornança, o Trapiá e o Brincantes. Nesses grupos os capoeiristas tinham uma participação importante, não só como dançarinos, mas como gestores dos mesmos.

Rivaldo, conhecido na Capoeira como Jacaré, já era professor de Capoeira, quando geriu junto com sua esposa, Dayse Caraciolo, o grupo Retornança. Outros capoeiristas da década de 1980 que viveram essas experiências, hoje mestres dessa arte, mantém em seus trabalhos desenvolvidos em outros países, apresentações artísticas das danças pernambucanas, como é o caso do Mestre André Luiz Vieira, Mestre E.T. e Mestre Marco Antonio do grupo Alto Astral, ambos moram e trabalham com Capoeira em Portugal.

Essa face da Capoeira como dança abriu importantes espaços para a participação feminina mais efetiva nos grupos de Capoeira e nos grupos de dança popular. O aspecto de luta, pelo preconceito ainda enaltecido na década de 1980, deixava sempre reservado as rodas e apresentações uma maior participação dos homens.

Ainda hoje é muito comum ver essas relações de proximidade da Capoeira com as danças populares. O espetáculo premiado e aprovado pelo FUNCULTURA “Preto no Branco” do Grupo Arte e Folia, encenado em 2007, no Teatro Armazém em Recife, que enaltecia o Frevo como expressão plural, teve sua pesquisa construída também na vivência da Capoeira, através de um trabalho realizado pelo Mestre Mago (Ricardo Dias de Sousa Pires) e o Professor Tiziu (Wilkinson Nascimento da Silva). Nesse trabalho, que foi um

112 desdobramento das experiências anteriores, nesse campo das relações Capoeira e dança, buscou-se elementos na Capoeira para preparação corporal e coreográfica dos bailarinos.

As pesquisas para Preto no Branco começaram em 2002: foram realizadas oficinas e laboratórios de criação onde os alunos puderam estudar equilíbrio, foco e intensidade do frevo (com Mendonça) e ainda a desconstrução do passo (com Célia Meira). Uma oficina de capoeira também foi realizada com o Mestre Mago e o professor Tiziu (MORAES, 2007)

A dança foi mais uma face, que os capoeiristas recifenses assumiram para dar visibilidade e afirmar a Capoeira, também como elemento artístico. Sem dúvidas não foi uma face assumida com facilidade, pelo preconceito que existia e ainda existe na relação do gênero masculino com a dança. Também pelo fato de que a Capoeira nos palcos fica restrita a sua espetacularidade, apresentando-se fragmentada e longe de suas ritualidades. Aparece muitas vezes apenas como gesto performático desencarnado de suas significações. Apesar disso, afirmava suas relações com outras expressões de nosso rico acervo da cultura corporal. Assim se assemelhava mais, como diz a cantiga, ao “...maculelê, maracatu”.