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4. TEORIAS DOS DOCUMENTARISTAS

4.5 Documentário e intervenientes

Comumente se fala em personagens de filmes documentários, ainda que seja uma definição mais recente e que não está presente no pensamento dos iniciadores do cinema documentário. Parte-se da ideia de que de fato as pessoas que aparecem em um documentário são fruto da construção de um discurso – de caráter realista, mas um discurso – e que portanto podem ser entendidas como personagens. Além disso, podem ser entendidas como personagens históricas, ou de um ambiente, ou de uma instituição, etc.

Eduardo Coutinho explica que o personagem é algo que surge da interação com o documentarista.

Depois da filmagem, aquela pessoa vira um personagem quase de ficção; e eu tento fazer da voz dele a minha voz, e quando ele vê o filme e aprova, de certa forma, ele também faz dele a minha voz, que é o filme pronto. É por isso também que o personagem nunca está lá a priori. Ele só existe na relação com o documentarista. (COUTINHO, 2003:219-20)

Há um outro termo, que me parece mais adequado para definir as pessoas que aparecem em um documentários, é interveniente. Essa palavra permite entender que trata-se de alguém que se relaciona com o filme e com o documentarista, não é plenamente moldada por este, mas também não é um representação plena e fiel – até porque seria impossível.

Os intervenientes de um documentário podem ser pessoas comuns, como fazem a maior parte dos documentaristas aqui abordados, ou pessoas

reconhecidas, como fez em alguns de seus filmes Errol Morris. Esse já é um ponto de partida definidor das relações com intervenientes, porque, se por um lado Flaherty, Vertov, Grierson, Rouch e Wiseman definem mais seus intervenientes em função do lugar onde estão, Coutinho e Dvortsevoy buscam pessoas comuns em atividades comuns. “Eu acredito que essas pessoas são dignas de atenção precisamente porque suas vidas não estão em evidência, porque a sua existência não está sendo observada. São pessoas normais, que muitas vezes ficam surpresas porque eu quero fazer um filme sobre elas.”69 (DVORTSEVOY, 2013)

Já Salles variou muito suas opções quanto aos intervenientes, desde pessoas comuns, passando por personagens políticos, chegando a pessoas com proximidade familiar.

4.5.1 Durante as filmagens

Eduardo Coutinho é tido como um documentarista de grandes méritos relacionados ao tipo de relação que consegue construir com os intervenientes, por como consegue fazer documentários com pessoas comuns a partir de encontros.

Para mim, documentário é escavar. E esse limite te inibe os vôos ideológicos e ideias pré-concebidas. Quando você tipifica uma pessoa, quando você a objetiva, você mata a singularidade da pessoa. É a destruição moral e cívica do indivíduo e do personagem. (COUTINHO, 2002)

Coutinho afirma que é preciso que as diferenças entre o interveniente e o documentarista sejam aceitas mutuamente, assim, para ele, surge uma experiência de igualdade, “uma igualdade utópica e temporária”. Essa igualdade exige que o documentarista “não se sinta superior só por ter o controle da câmera, que representa o poder nessa situação. O que exige também que o documentarista não julgue o outro, colocando entre parênteses tudo o que ele é.” (COUTINHO, 2003:220). Para ele, o que interessa é o acaso e surpresa presentes nesse encontro. Cita como exemplo uma interveniente do filme Edifício Master (2002) que “diz que todo brasileiro é preguiçoso. É um discurso com o qual eu não concordo. Mas é um discurso extraordinário porque ela teve

69 No original: “I believe that these people are worthy of attention precisely because their

lives are not on show, because their existence isn’t predicated on being observed. They are normal people; they’re often very surprised that I want to make a film about them.”

condições de dizer aquilo para mim. E eu não estou lá para dizer ‘a senhora está errada’.” (COUTINHO, 2009:130)

Nem sempre é exatamente o conteúdo do que ela me diz o que importa, entende? É o ato verbal que é extraordinário. Um ato verbal que foi provocado, catalisado, pelo momento da filmagem, sem que houvesse uma deliberação consciente nem minha nem dela. Filmar, para mim, é provocar, é catalisar, esse momento. Na interação que se dá no processo de filmagem é que nasce um grande personagem. (COUTINHO, 2003:217)

Por outro lado, Coutinho entende que se a fala não se constitui em um ato interessante por seu aspecto de forma, de características da oralidade, então pode deixar de ser interessante mesmo que tenha um conteúdo forte. Ele relata o caso de uma interveniente do filme Santo Forte (1999), que considera marcante porque era uma mulher com experiências religiosas espantosas, “ela tinha vivido fortes perseguições e chegou até a ser submetida a tratamento psiquiátrico em função das experiências com a umbanda. Contudo, ela ficou fora do filme porque foi prolixa demais.” (COUTINHO, 2003:217)

Para Wiseman, não há alterações das reações das pessoas por estar filmando tão de perto, “normalmente a câmara está pelo menos a dois metros, dois metros e meio... por isso não é assim tão perto. O microfone é que está perto... (...) não acho realmente que a câmara afecte o comportamento.” (WISEMAN, 1994:53)

As relações com os intervenientes também passam por autorizações. Claro que em casos de entrevistas, como os de Coutinho, Morris e mesmo Salles, essas autorizações precisam ser previamente negociadas e há uma relação mais determinada. Coutinho chegou a expor em Santo Forte (1999) cenas em que aparecia pagando aos entrevistados.

Porém, documentaristas que focam ambientes, espaços ou grupos têm mais dificuldade porque não se trata de uma pessoa de cada vez, mas de muitas simultaneamente. “Se dizem que não, não uso, mas, de acordo com a minha experiência, é muito raro alguém dizer que não.” (WISEMAN, 2008:115). Wiseman afirma que a sinceridade é fundamental.

Não lhes conto histórias, nunca minto, digo-lhes exactamente o que estou a fazer, como o estou a fazer e onde é que o filme vai ser usado. Não me quero colocar numa situação de alguém me dizer, quando o filme estiver pronto, ‘bem, disse-me que ia usar o filme para x e está a usá-lo para y’. A honestidade é a melhor táctica.” (WISEMAN,

2008:116-117)

Sergei Dvortsevoy preocupa-se com essa honestidade para com os intervenientes em outro nível. Como filmou em lugares pobre, especialmente no Cazaquistão, ele preocupa-se em não gerar nos intervenientes a ilusão de que suas vidas vão melhorar com o filme. “Quando faço um filme, eu não faço isso para ajudar as pessoas. Eu ajudo enquanto estou filmando, mas o filme em si não pode ajudá-los, e de fato, às vezes, prejudica-os, torna a situação ainda pior.”70 (DVORTSEVOY, 2005). Dvortsevoy considera muito complicado “filmar a vida real” pelo nível de interferência que pode haver na vida dos intervenientes.

Porque para mim isto também é muito difícil, física e espiritualmente... temos que seguir as pessoas o tempo todo, pedir-lhes ‘Por favor, dêem- me a vossa permissão para os filmar’ e as pessoas dão e confiam em nós, mas elas não sabem quem nós somos, que somos como um vampiro, que vamos apanhar tudo, que sabemos como o fazer, o que apanhar, que temos todos os instrumentos para fazer isso... (DVORTSEVOY, 2002:50)

Segundo João Moreira Salles, o essencial é respeitar os intervenientes no processo de filmagem, sendo íntegro e “explicando o que significa aparecer diante de uma câmera. Mas não precisa ter um compromisso com ela depois que o filme estiver pronto; senão a vida do documentarista se torna impossível.” (SALLES, 2003)

4.5.2 Após as filmagens

Jean Rouch elogiava Robert Flaherty por este exibir seus documentários para os intervenientes. Rouch começou a fazer isso alguns anos depois do seu primeiro filme. (ROUCH, 1998:157). Passou a voltar para os locais onde filmava, normalmente na África, levando um equipamento 16mm para projetar os filmes aos que foram filmados, por vezes mesmo antes do filme estar terminado: “Algumas vezes eles diziam que aquilo não valia nada, e se de fato não valia nada, recomeçávamos.” (ROUCH, 2010, 49)

Já Dvortsevoy diz não mostrar os filmes para os intervenientes. “Em primeiro lugar é longe, e, em seguida, ao longo do tempo cheguei a uma decisão que, a menos que eles perguntem por ele, não vale a pena mostrar a eles

70 No original: “When I make a film I don’t make it to help people. I help them while I am

shooting, but the film itself cannot help them, and in fact sometimes it harms them, makes the situation even worse.”

especialmente.”71 (DVORTSEVOY, 2005) Ele cita o caso de uma mulher, da qual fez algumas imagens, tentando que fossem as mais bonitas possíveis, e que ao mostrar as imagens para ela, a mulher odiou.

Além de exibir ou não exibir os filmes para os intervenientes, as relações pós filmagens podem ser mais intensas. Salles, apesar de afirmar que não é uma obrigação do documentarista estabelecer tais relações, procurou ajudar dois garotos que eram traficantes e aparecem em Notícias de uma Guerra Particular (co-dirigido com Kátia Lund, 1999).

Mas esse é um problema de natureza ética, que cada um tem que resolver como puder. No caso específico desses meninos, eu e a Kátia (que tinha uma relação maior com eles) pagamos, através da Videofilmes, professores com o objetivo de alfabetizá-los para que, depois, eles pudessem entrar na escola. Deu certo? Para um, deu; para o outro, não: um deles infelizmente morreu no Vidigal, numa troca de tiros. É uma coisa ingênua, achar que você consegue mudar o destino das pessoas apenas com um bom gesto. (SALLES, 2003)