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4. TEORIAS DOS DOCUMENTARISTAS

4.4 Abordagem documental

4.4.3 Estilos de Abordagem

Desde o princípio do documentarismo já existia essa necessidade de entender como abordar o mundo em um sentido de que tipo de discurso seria produzido. Grierson, citando Flaherty, dizia que “o documentário deve seguir em sua distinção entre a descrição e o drama.”57 (GRIERSON, 1998:143). Sugerindo um cinema documentário que aceita a dramatização, operada tanto nas filmagens como na edição, ao invés de um sentido mais descritvo. Aos filmes descritivos, noticiários e semanários, Grierson atribuía o termo instrutivos.

A estes filmes, desde já, não gostaria que lhes chamassem instrutivos, porém, apesar de todos os disfarces, isso é o que são. Não dramatizam, nem sequer dramatizam um fato; descrevem e expõem, mas em qualquer sentido estético raramente são reveladores. Ali está seu limite formal, e é improvável que possam fazer alguma contribuição considerável para a arte maior do documentário.58 (GRIERSON, 1998:141)

57 No original: “el documental debe seguirle en su distinción entre la descripción y el

drama.”

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No original: “A estos filmes, desde luego, no les gustaría que se les llamara instructivos, pero, a pesar de todos sus disfraces, eso es lo que son. No dramatizan, ni

A forte crítica ao condicionamento da imagem pelo comentário verbal vai perdurar até hoje, na intenção de valorizar o cinema como arte da imagem e dos sons captados no ambiente. Mas para ele também não era interessante o uso das imagens com sons em um processo de virtuose poética, como aponta na crítica ao filme Berlim: sinfonia da metrópole (Walter Rutman, 1927): “Os pequenos episódios cotidianos, por bem que foram sinfonizados, não são suficientes. É preciso crescer para além do que é feito e do processo, até a própria criação, antes de você começar a chegar nas alturas da arte.”59 (GRIERSON, 1998:146)

Trabalhar essencialmente com as imagens também era a proposta de abordagem do cinema direto e do cinema verdade60, ainda que este último também desse muito valor aos processos de interação com os intervenientes, que poderiam ser conversas ou entrevistas. Sobre Crônica de um Verão (co-diração de Edgar Morin, 1960) Rouch diz “Com o cine-olho e o cine-ouvido, gravávamos pela imagem e pelo som um cine-verdade, o Kinopravda de Vertov, que não quer dizer o cinema da verdade mas a verdade do cinema.” (ROUCH, 2011c:105)

O cinema directo, termo introduzido por Mario Ruspoli e por mim para substituir a expressão equívoca de cinema-verdade, reflecte uma forma de cinema em ligação directa com a realidade. É um cinema do olhar, logo, um cinema sobretudo de imagens. (ROUCH, 2011a:55)

E Rouch passou a considerar que o ideal era trabalhar com imagens em planos longos, ou mesmo planos-sequência, possibilitados por câmeras leves a partir dos anos 1960. Substituir os “planos muito curtos” por um “plano-sequência que dura dez minutos” é uma grande vantagem para o cinema dele. “O tempo é real”. (ROUCH, 2011c:124). Esse encantamento está relacionado à possibilidade de demonstração do tempo vivido, do paralelo cinematográfico com a vida em curso.

O nosso sonho com o cinema directo era conseguir a exigência do plano-sequencia, isto é, pôr em cena elementos da vida real, que siquiera dramatizan un episodio; describen y exponen, pero en cualquier sentido estético sólo rara vez son reveladores. Allí está su límite formal, y es improbable que puedan hacer alguna contribución considerable al arte mayor del documental.”

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No original: “Los pequeños episodios cotidianos, por bien que hayan sido sinfonizados, no son suficientes. Uno debe crecer, más allá de lo que se hace y de su proceso, hasta la creación misma, antes de llegar a golpear en las alturas del arte.”

60 Os termos cinema direto e cinema verdade são usados por Rouch em um sentido

evolutivo. Mas ficaram consagrados como termos que se referem, respectivamente, à “ética do recuo” e à “ética participativo-reflexiva” (RAMOS, 2005:174-177)

tivessem um princípio e um fim, passando-se isso em menos de dez minutos: a unidade de tempo imposta pela bobina!” (ROUCH, 2011a:55- 56)

Rouch propunha que o cinema poderia, em seu uso como descrito acima, fazer o espectador compreender um língua desconhecida, sentir-se presente em uma cerimônia estranha, ou reconhecer paisagens nunca vistas antes (ROUCH, 2011b:67). Isso porque entendia que o grau de presença possibilitado pelo “cinema direto”, com as filmagens in loco e com os longos planos, era enorme e sem precedentes.

Esse milagre só o cinema pode produzir, mas sem que qualquer estética particular possa fornecer o seu mecanismo, sem que qualquer técnica especial possa provocá-lo: nem o sábio contraponto de uma planificação nem o emprego de um cinerama estereofónico causam tais prodígios. (ROUCH, 2011b:67)

Rouch teve a experiência de filmar Crônica de um Verão com Richard Leacock, que fez a direção de fotografia, mas que é também um importante diretor do documentarismo em cinema direto norte-americano. Para Rouch o trabalho deles tinha similaridade, mas também uma profunda diferença quanto à abordagem, porque em Crônica de um Verão, Rouch e Morin estavam “na frente da câmera, falando com as pessoas, provocando todos que encontravam. Nos filmes de Leacock, ele segue seus temas, ao invés de envolvê-los. Assim, ele permanece fora.”61 (ROUCH, 2003a:144)

Essa comparação nos leva ao método de abordagem de Frederick Wiseman, que é, em parte um seguidor do cinema direto norte-americano.

Os que foram pioneiros dessa técnica, como Leacock ou Pennebaker, mostraram-me o que se poderia fazer com equipamento portátil leve. Do ponto de vista tecnológico, o que eu faço é a mesma coisa. Onde sou diferente é na escolha de assuntos e na montagem. E suponho que o que eu fazia era em parte uma reacção contra algum documentário anterior, e contra o estilo desse documentário, na medida em que era um documentário sobre gente famosa – políticos, estrelas de cinema, criminosos... – e que o que me interessava a mim era fazer filmes em que a estrela era o lugar e onde teria um cast muito mais alargado. Queria ter a oportunidade de olhar para uma gama de comportamentos mais vasta. (WISEMAN, 1994:60)

61 No original: “in front of the camera, speaking to the people, provoking everyone he met.

In Leacock’s films, he follows his subjects, rather than engaging them. So he remains outside.”

Wiseman faz menção ao fato de que os filmes típicos do grupo cinema direto utilizavam uma abordagem muito próxima da que ele passou a usar, mas optavam, na maioria dos casos, por dar atenção a temas como personalidades da música ou da política, que os tornavam mais restritos. Já Wiseman vai abordar da mesma forma, mas focando especialmente instituições e a pluralidade de pessoas que circulam por elas.

Porém, ambos – o grupo do cinema direto norte-americano e Wiseman – negam estratégias que acreditavam interferir negativamente na abordagem. Em outra palavras, evitam fazer entrevistas ou conversas com os intervenientes, evitam uso de músicas não-diegéticas, e, principalmente, evitam o uso de narrações em voz over. “Meu ponto de vista é expresso indiretamente por meio da estrutura, e não diretamente por meio da narração, o que é uma técnica novelística.” (WISEMAN, 2001)

O conceito de abordagem usado pelos realizadores do chamado cinema direto, e também por Wiseman, ainda é um paradigma, mas também enfrenta oposições:

A teoria por trás desta escola é muito frágil: os americanos supunham ser possível fazer um documentário objetivo, que fosse um espelho autêntico da realidade. Para isso, eles eliminaram tudo aquilo que era interferência direta do documentarista: narração, entrevistas, trilha sonora; você só coloca no filme aquilo que foi dito diante da câmera, em som direto. É claro que isso é uma imensa ingenuidade, já que, a partir do momento em que você entra numa ilha de edição, está reconstruindo o mundo. (SALLES, 2003)

Errol Morris, ao contrário de Wiseman, vê, justamente na interação via entrevista a melhor forma de abordar. Entretanto, segundo ele, é a maneira como ele faz a entrevista, colocando o entrevistado olhando diretamente para a câmera, que lhe interessa, pois da “ênfase na relação entre entrevistador e entrevistado, e foca atenção no entrevistado – como ele ou ela vê a si mesmos, em vez de como nós os vemos.”62 (MORRIS, 2000:13). Morris se baseia nas entrevistas para abordar seus assuntos, mas reforça que é a forma como as faz que lhe interessa particularmente. Sobre a ideia de como as coisas podem acontecer, fluir, em uma entrevista, Morris diz que o espontaneidade é pouco conhecida e que diante da

62 No original: “de-emphasizes the relationship between interviewer and interviewee and

focuses attention on the interviewee – how he or she sees themselves, rather than on how we see them.”

câmera, as pessoas são surpreendentes. “Eu tinha essa regra de três minutos que, se você calar a boca e deixar as pessoas falarem, dentro de três minutos eles vão mostrar quão loucos são.”63 (MORRIS, 2008)

Outro documentarista que se baseia fundamentalmente em entrevistas, Eduardo Coutinho, para ele a palavra é essencial, superior até mesmo à imagem, pois considera que “fazer um documentário é provocar a fala. O ato de falar é extraordinário porque é, sobretudo, um ato da palavra. É essa palavra o que valorizo é dessa palavra que são produzidas as imagens.” (COUTINHO, 2003:217-8). Ele faz a ressalva de que o que considera como essencial é o ato da palavra, e não esta isoladamente. Segundo Coutinho, o ato da palavra é composto também por elementos visuais, como os gestos. “É preciso saber ler um movimento de ombro, um jeito de jogar o cabelo. É a boca que fala integrada ao resto do corpo que também fala sob determinadas condições.” (COUTINHO, 2003:221)

Coutinho, assim como Morris, diz que para ele as entrevistas funcionam como estratégia principal de seu modo de abordar, mas que isso parte de certas premissas quanto ao modo como conduz as entrevistas – ele muitas vezes nem chama de entrevista, mas de conversa ou encontro. Uma dessas premissas é estar pronto para ouvir o que os outros têm a dizer, estar aberto. Ele cita como exemplo o documentário Boca do Lixo (1993). “No negócio do lixo, se você vai com a ideia do inferno, você se fodeu. Tem de ir na dúvida se é bom ou ruim. Pensa bem: se você acha que é um inferno, você desqualifica quem vive lá.” (COUTINHO, 2002). Outro ponto que Coutinho destaca é que não são falas rigorosas e bem compostas que mais lhe chamam a atenção, mas a vivacidade do falar. “O que interessa são as digressões, hesitações, retomadas de texto, gaguejadas, lapsos extraordinários.” (COUTINHO, 2009:129)

Mudando mais uma vez de estilo, chegamos ao que propõe Sergei Dvortsevoy, que é algo que se aproxima do recuo de Wiseman quanto ao modo como se dedica às imagens e sons para a sua forma de abordagem, mas que tem em seu conceito algo menos preciso e mais poético.

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No original: “I had this three-minute rule that if you just shut up and let someone talk, within three minutes they will show you how crazy they really are.”

Se você é capaz de descobrir a singularidade na vida, e você é capaz de mostrar isso, você deve, mesmo que seja uma singularidade simples. Em seguida, você pode se relacionar com isso sem palavras, você pode mostrar, e isso vai diretamente para a alma e o coração do público, sem necessidade de explicações. 64 (DVORTSEVOY, 2011:1266)

Dvortsevoy fala dessa singularidade da vida, que só tem quem se dedica a observar a vida com gosto e dedicação. “Meus filmes documentários são observações sobre a vida. Obviamente, eles são editados, mas eu amo observar a vida mais do que qualquer coisa, é um dos meus prazeres.”65 (DVORTSEVOY, 2013). Há um sentido de contemplação no conceito de contato com a vida descrito pelo diretor e ele procura passar isso para os filmes. “Eu gosto quando sinto que não está sendo feito para a câmera, ou para alguém, é apenas a vida real, a vida interior das pessoas.”66 (DVORTSEVOY, 2013)

Por essa contemplação da vida do outro, Dvortsevoy muitas vezes questiona o próprio documentário, que seria invasor e injusto. “O documentário para mim é essencialmente uma coisa terrível.”67 Mas por outro lado ele reconhece que essa abordagem da vida também pode ser positiva para os intervenientes. “Mas por outro lado você dá às pessoas uma contemplação das suas próprias vidas, o que pode ser positivo também. Não se pode ver-se do lado de fora, e isso é o que o filme pode fazer por você.”68 (DVORTSEVOY, 2005)

Há ainda uma última forma, ou estilo, de entender a abordagem documental dentre os documentaristas aqui analisados. Pedro Costa considera que o fundamental é entender esse cinema como um cinema de princípio realista e quais as consequências disso. (COSTA, 2010:147). Ele diz que o primeiro filme do cinema era uma inquietação, e assim tinha o princípio realista essencial.

64 No original: “If you are able to discover uniqueness in life, and you are able to show

this, you should, even if it's a simple uniqueness. Then you can relate something without telling; you show it, and it goes directly to the soul and heart of the audience without need for explanations.”

65 No original: “My documentary films are observations on life. Obviously they are edited,

but I love observing life more than anything, it’s one of my pleasures.”

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No original: “I like it when I feel that it’s not being done for the camera, or for someone, it’s just real life, people’s inner life.”

67 No original: “The documentary film for me is essentially a terrible thing.”

68 No original: “But on the other hand you give people a contemplation of their life, and

that can be positive, too. One cannot see oneself from the outside, and that’s what film can do for you.”

O problema veio depois, porque depois desse primeiro filme, depois de A saída dos operários da fábrica Lumière (La sortie des usines Lumière, 1895), realizado pelos Lumière, houve um segundo filme, novamente trabalhadores deixando a fábrica, realizado pelos mesmos irmãos Lumière. É aqui que as coisas se degeneram, saem do controle, tornam-se complicadas, porque os Lumière não ficaram satisfeitos com a forma como os trabalhadores saíram de sua fábrica (eram donos da fábrica). Disseram aos trabalhadores: ‘Tentem agir de uma maneira mais natural’. Eles dirigiram os trabalhadores. (COSTA, 2010:148) O que Costa procura demonstrar é que para ele o essencial do realismo cinematográfico que lhe interessa como abordagem está no frescor do ato filmado, naquilo que é original enquanto ação e que foi registrado pela câmera. É um sentido de pureza, que valoriza pouco o que está dito, quanto informa, mas que tem em sua raiz a ideia ontológica da imagem do cinema.