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As doenças ao longo dos tempos

O s h isto ria d o re s (n ão só d a m edicina) sab em m u ito bem q u e d e te rm in a d a s doenças estã o ligadas, e q u ase soldadas, a certo s perío d o s históricos; elas to rn aram -se o sím bolo d e u m século ou de u m pe­ ríodo da h istó ria. A m alária com o a principal doença da A n tig u id ad e grega e do Im p ério R om ano. A lepra e o tifo, d a Idade M édia. A p este, do século XVII. A tu b e rcu lo se e a sífilis q u e d o m in a m a c u ltu ra do sé­ culo XIX. O câncer e a aids com o os gran d es m edos do século XX. D e c erta form a, cada u m a d essas é p o ­ cas to rn o u -se im pensável sem tais doenças. E xistem ta m b ém doen ças aco m p an h ad as p o r u m a espécie de au réo la q u e - n a au sên cia de algo m elh o r - po d em o s ch am ar de positiva. A gota causou m u ito sofrim ento, e há u m re tra to de C arlos V, a cavalo, n o qual a p ern a do im p e ra d o r e s tá a m a rra d a à b a rrig u e ira d a sela para evitar q u e o p é p o ssa sofrer solavancos d o lo ro ­ sos. Porém , algum as gravuras do século XVIII q ue re p re se n ta m o rei lib ertin o a to rm e n ta d o p e la gota,

co m u m a p e rn a le v a n ta d a e u m p é d e s c a n s a n d o so b re u m a alm ofada, n ã o se d e stin a m a re p re se n ­ ta r a d o r e o so frim en to . A face d o lib ertin o indica satisfação. A g o ta é a do en ça típ ica e específica dos sen h o re s, dos p o u co s q u e com iam m u ito b em n u m m u n d o em q u e a gran d e m a io ria com ia m u ito p o u co e m u ito m al. Ter g o ta ta m b é m significava (in sisto no também) p e rte n c e r a u m a elite privilegiada. A tu b e r­ culose era u m a d o en ça s o b re tu d o dos p o b res. M as os locais o n d e se curava d e sta d o en ça a d q u irira m u m a e sp écie d e fascínio, q u a n d o , n o s s a n a tó rio s, se re u n ia m p e s s o a s q u e p e rte n c ia m às c a m a d a s m ais altas d a população. N e sses lugares conviviam h o m e n s e m u lh ere s, forçadas d e c e rta m an eira a p a s­ sar m u ito te m p o lendo, escrev en d o o u co n versando. A c u ltu r a p e s s o a l se e x p a n d e , a in te lig ê n c ia se aguça, se d e sp e rta m sensações, se n tim e n to s e e m o ­ ções p articu lares, são estab elecid as relações q u e não seriam po ssív eis (ou q u e p o d e ria m parece r “falsas”) n o m u n d o m o v im e n ta d o d a s p e s s o a s s a u d á v e is . Tam bém se d ifu n d e a te se d e q u e u m a d o se elevada de to x e m ia tu b e rc u lo sa serve p a ra e stim u la r as h a b i­ lidades e o d e se m p e n h o sexual. A designação de mal sutil n ão é ap e n as u m a m etáfo ra, e N ovalis achava que esse m al su til tin h a a p ro p ried ad e de su b lim a r as ex p eriên cias da vida, p e rm itin d o “co m p reen d ê-la em su a to ta lid a d e ”. C oncluindo: n in g u ém g o staria de qualificar u m lep ro sário co m o u m lu g ar e n c a n ta ­ dor, m as a m o n ta n h a n o to p o da qual se situ av a um gran d e sa n a tó rio p o d ia se r c o m p re e n d id a e vivida com o u m a “m o n ta n h a m ágica” .

A sífilis, em seu início, a p re se n to u -se de fo rm a aguda e m ortal. M ais tarde, assu m iu u m a form a su- b a g u d a e s u b c r ô n ic a . T e rm in o u in c o r p o r a n d o a

im agem , n ão is e n ta de asp e cto s in q u ie ta n te s e ao m e s m o te m p o f a s c in a n te s , d o fa m o s o b in ô m io “gênio e lo u c u ra”. B asta c ita r alguns n o m es d e p e s­ soas reais e do perso n a g em de u m dram a: B envenuto C ellini, S ch u b ert, M au p assan t, B audelaire, N ietzs- che, O svaldo (que d o m in a a cena em Os espectros de Ib se n ). N ão falta q u e m te n h a v isto n e s s a d o en ç a alg u m tip o de traço d istin tiv o do h o m e m genial ou d o h o m e m p o ético o u do h o m e m “fora do c o m u m ”.

A e p ile p s ia , q u e p a re c e p e r m itir u m a s a íd a c la m o ro s a d o m u n d o p a ra e m se g u id a v o lta r d e r e p e n te , foi c o n s id e r a d a d u r a n te m u ito te m p o u m a espécie de viagem ao a lé m ,1 ligada à p o ssib i­ lidade de alg u m a revelação. Platão, n o Fedro, fala de u m a m an ia divina ou de u m delírio divino com o u m a d ádiva d ivina d o s d e u ses, e q u e caracterizo u a exaltação da Sibila, d a p ro fe tisa de D elfos e das sacerd o tisas de D odona. A ilu são n ão é, sem p re ou n e c e ssa ria m en te , u m a coisa ru im . E x iste u m a in ­ v estig ação do fu tu ro feita p o r p e sso a s em e sta d o n o rm al, m as a mântica é su p e rio r a ela (oionística) p o rq u e o e sta d o de d elírio in sp irad o p e lo s d eu ses é m a io r do q u e a razão h u m a n a . Ao lado d o d elí­ rio profético h á o u tra fo rm a d e exaltação ligada às M usas. Q u a n d o “se d e fro n ta com u m a alm a te rn a e p u ra ”, e sta exaltação

a incita e atrai com cantos e com qualquer outra forma de poesia-... mas quem chega ao lim iar da poesia sem o delírio das Musas, acreditando só na habilidade do poeta, será um poeta inacabado, e a poesia do sábio será suplantada pela dos poetas em delírio.

G io rd a n o B ru n o ch am av a d e “to lo s e lo u c o s ” os q u e tê m p ercep ç õ es d ife re n te s d o re s ta n te dos h o m e n s. M as e n te n d ia q u e a “ex trav ag ân cia” p a s ­ sava p o r dois cam inhos: ou co nduz p a ra baixo, p ara a “loucura, in sen satez e cegueira”, o n d e se en co n tram os q u e se d istan ciam do sen so e d a razão do h o m e m com um , o u co nduz p ara u m nível acim a d o q u e po ssa e saiba a m aio ria d o s h o m e n s.

Q u a n d o caem p o r te rra as e s tru tu ra s q u e s u s te n ­ ta m o eu e q u e g aran tem a d istin ção e n tre o e u e o m u n d o , esta m o s falando d e u m eu dividido o u d e es­ q uizofrenia. N a in stab ilid ad e a n g u stia n te q u e em erge d a “crise d a p resen ça” e da q u ed a d essas estru tu ra s, cria-se, n o te a tro d e Pirandello, a p o ssib ilid ad e de u m a revelação. Pelo m e n o s alguns con seg u em se dis­ tinguir “daqueles qu e se enganam ”, “descobrir o jogo”, pôr-se acim a do plano das “sim ples aparências”, vis­ lu m b ran d o - m esm o q u e "aos po u co s” - a inefável e chocante verdade da vida. Segundo alguns, q u e se to rn ariam m ais tard e os teóricos d a excepcional di­ m e n são d a loucura, n esses m o m e n to s - ta m b é m para P irandello - era possível ver "a vida em si m e sm a ”. N o m u n d o da p siq u ia tria (ou m elhor, n o m u n d o d a cha­ m a d a an tip siq u iatria) h o u v e avanços, n e ste terren o , m u ito além de Pirandello. R onald Laing2 ap resen to u o x am a n ism o ou a viagem “ao te m p o m ítico e etern o d a lo u cu ra” com o u m a n tíd o to à in su sten tab ilid ad e d o p re se n te e com o u m a via p ara o ser, p ara a a u te n ­ ticidade e p a ra a verdade.

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