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Paolo Rossi - Comer. Necessidade Desejo Obsessão

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Academic year: 2021

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Necessidade

Desejo

Obsessão

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v _ > / d o a l i m e n t o p e r m e i a o n o s s o d i a a d i a : a b u s c a p o r d i e t a s s a u d á ­ v e i s , a l u t a c o n t r a a s u b n u t r i ç ã o , o s p r o g r a m a s d e c u l i n á r i a q u e i n f e s ­ t a m a t e l e v i s ã o . M e n o s f r e q ü e n t e , p o r é m , s ã o a i n v e s t i g a ç ã o e a r e f l e ­ x ã o s o b r e t o d o o s u b s t r a t o c u l t u r a l q u e r e s i d e s o b o t r i v i a l a t o d e c o m e r . B a s t a p r e s t a r u m p o u c o d e a t e n ç ã o à m u l t i p l i c i d a d e d a s m e t á f o r a s a l i - m e n t a r e s q u e u s a m o s d i a r i a m e n t e p a r a p e r c e b e r o f o r t e c o m p o n e n t e a n t r o p o l ó g i c o e c u l t u r a l p r e s e n ­ t e n e s s e a t o p e r m e a d o d e d e s e j o s p r i m á r i o s e e m o ç õ e s p r o f u n d a s . P a o l o R o s s i p e r c o r r e o t e r r i t ó r i o d a h i s t ó r i a d a s i d e i a s , r a s t r e a n d o e l e ­ m e n t o s d e c o n t i n u i d a d e , e m o s t r a q u ã o p r o f u n d a s s ã o a s i m b r i c a ç õ e s d o c o m e r c o m a c o n d i ç ã o h u m a ­ n a , e s t a b e l e c e n d o - s e , p a r a a l é m d e s a t i s f a ç õ e s f i s i o l ó g i c a s , l i a m e s d e o r d e m p s í q u i c a q u e c h e g a m à f r o n t e i r a d o p l a n o m í t i c o . C o m o n ã o l e m b r a r - s e d e C r o n o s , q u e d e v o r a o s p r ó p r i o s f i l h o s , d o j e j u m d a S e x t a - f e i r a s a n t a , d a s g r a n d e s

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Presidente do Conselho Curador

Mário Sérgio Vasconcelos

Diretor-Presidente

José Castilho Marques Neto

Editor-Executivo

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Rogério Rosenfeld Ec//tores-Ass/stentes Anderson Nobara Jorge Pereira Filho Leandro Rodrigues

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Comer

Necessidade, desejo, obsessão

Tradução

Ivan Esperança Rocha

editora

unesp

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Título original: M angiare: b/sogno, desiderio, ossessione Direitos de publicação reservados à:

Fundação Editora da Unesp (FEU) Praça da Sé, 108 0100 1 -9 0 0 - São Paulo - SP Tel.: (O x x ll) 3242-7171 Fax: (O x x ll) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br www.livrariaunesp.com .br feu@ editora.unesp.br

C I P - Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

R743c

Rossi, Paolo,

1923-C o m e r: n ecessidade, desejo, obsessão / Paolo Rossi; tradução Ivan Esperança Rocha. — 1 .ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014.

Tradução de: M angiare: b/sogno, desiderio, ossessione ISBN 978-85-393-0534-6

1. Alimentos - História. 2. Hábitos alimentares - História. I. Título.

14-13044 C D D : 64 1 .3

C D U : 6 4 1 .5

Editora afiliada:

Asodación de Edttoriales Universitarias Associação Brasileira de de América Latina y d Caribe E ditoras U niversitárias

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Evocações 7

I. Sobre e ste livro 13 II. Ideias 17

III. N a tu re z a 19 IV. C u ltu ra 23

V. O com er: e n tre n a tu re z a e c u ltu ra 29 VI. O jeju m 35

VII. O jeju m e a sa n tid a d e 45 VIII. A fom e 53

IX. G reves de fom e 69 X. C anibais 75 XI. V am piros 91

XII. A o b se ssã o p e la co m id a 101 XIII. A p ocalípticos da globalização 107 XIV. P rim itiv ism o 115

XV. A co m id a foi g e n u ín a alg u m dia? 123 XVI. O cére b ro g u lo so e a o b esid ad e 131

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XVII. A s d o en ças ao lo n g o d o s te m p o s 139 XVIII. O c u lto de A n a 143

XIX. A m o d a e a m a g reza 153

R eferências b ibliográficas 163 ín d ice o n o m á stic o 171

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N o início d a década de 1930, q u an d o freq ü e n ­ tava a escola p rim ária, eu presenciava d iariam en te (en q u an to esperava m in h a irm ã) a saída de vários g ru p o s de c o le g a s. L e m b ro -m e de q u e e m cad a grupo havia do is o u trê s m e n in o s de b o a a p a rê n ­ cia. O s o u tro s eram , co m o se esperava, e sp e rto s, b a ru lh e n to s e vivazes, m as (para dizer a verdade) feinhos: b aixinhos, u m p o u co d e sn u trid o s, com jo e ­ lhos avantajados q u e se destacavam nas p ern as finas. N estes p rim eiro s an o s d o novo m ilênio, a s e te n ta anos de d istân cia (em finais de prim av era e já no verão, q u an d o m e e n c o n tro n a U m bria), deparo com grupos de crianças do jardim da infância que gentis professoras levam para passear pelas ruas de Trestina. Esses m om en to s m e fazem p en sa r que no curso da m inha vida, e de tan tas outras, essa situação m u dou com pletam ente. Hoje, esses grupos são com p o sto s geralm ente p o r apenas duas ou três crianças q u e não poderíam os definir com o “b o n ita s”. Todas as o u tras

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parecem triu n fa n te s ven ced o ras de u m co n c u rso de beleza infantil. E sse q u a d ro se deve ao fato de viver­ m os n u m lugar do m u n d o e n u m país no qual existe, p ara a m aio ria das p esso as, u m a a b u n d a n te d isp o n i­ bilidade de alim en to s.

A palavra comer, a p a re n te m e n te n e u tra, in o fen ­ siva e p ra z e ro sa (q u an d o tu d o vai b em ), en co n tra-se n o c e n tro d o p e n s a m e n to c o tid ia n o e d a v id a de to d o s a q u e le s q u e n ã o c o n se g u e m c o m e r o su fi­ ciente. A dificuldade de co n seg u ir o q u e co m er e de a lim e n ta r os p ró p rio s filhos tra n sfo rm o u e c o n tin u a a tra n sfo rm a r n u m in fern o a vida d e m u ita gente. M as m e sm o o n d e to d o s tê m o q u e c o m er e n c o n ­ tro p esso as q ue, p a ra co m er alg u m a coisa, precisam re m e x e r s a c o s d e lix o , e ta m b é m e n c o n tr a m o s jovens p ara q u e m o co m er to rn o u -se u m inim igo e u m a o b sessão d iu tu rn a , algo q u e se to rn a u m o b stá ­ culo e n ão u m apoio à vida, fazendo crescer d e n tro d e si u m a cega o b stin ação e u m infatigável e d e s tru ­ tivo d esejo de co n tro le to ta l. E n co n tram o s ta m b é m p esso as m ais v elhas e d esesp erad as q u e n ão co n se­ g u em p e rceb er q u e u m filho o p to u p o r m o rre r e não p o r u s u fru ir da vida.

M u ito s e u ro p e u s q u e fazem p a rte d a m in h a gera­ ção m o rre ra m de fom e, o u viveram p erío d o s m ais ou m e n o s p ro lo n g a d o s de fom e em lu g a re s o n d e se com ia p ra tic a m e n te ap e n as cascas d e b ata tas. Tam ­ b ém aq u eles q u e (com o eu) n ão p a ssa ra m p o r essas experiências se le m b ra m d e coisas q u e (raram en te) p erm an ecem n a m e m ó ria d o s q u e n asceram após os anos 1950. Tenho, p o r exem plo, u m a viva lem b ran ça d e m e u pai, que, d u ra n te a guerra, se levantava às q u a tro d a m a n h ã p a ra evitar as longas filas q u e se form avam d ia n te d o aço u g u e p a ra c o n seg u ir levar

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p ara casa m eio q uilo de fígado bovino ou de u b re de vaca. L em bro-m e ta m b é m dos selos d o s cu p o n s do pão e lem b ro -m e tam b é m de q u e eu e m in h as irm ãs assistíam os com to tal inconsciência à tran sfo rm ação de m in h a m ãe (que abria m ão da sua ração de pão p ara dá-las ao s filh o s), u m ta n to acim a d o peso, em u m a p esso a m u ito m agra. L em bro-m e especial­ m e n te de q u e to d a a m in h a fam ília viveu o fim de u m pesadelo ao deslocar-se p ara a Ú m bria, o n d e não era difícil e n c o n tra r frangos, ovos, queijo e o u tro s tipos de alim ento.

Sei que existe u m a retórica d a m em ória. Li “Funes, o M em orioso” de Jorge Luis Borges e sei q ue é u m a sorte não p o d er lem brar-se de tu d o . Sei tam b é m que lem brança e e sq u ecim en to estão in tim a m e n te liga­ dos e q ue n a m em ó ria p erm an ec em aqu eles traços in q u ietan tes que, h á m il e q u in h e n to s a n o s atrás, faziam A g o stin h o exclam ar: “E grande e pavorosa esta força da m em ória, ó m eu D eus, u m a p ro fu n d a e quase infinita m u ltip licid ad e” .1 Eu m esm o dediquei dois livros às artes d a m e m ó ria e ao vínculo en tre m em ória e esq u ecim en to . M as reconheço o risco de e m b re n h ar-m e n a e strad a , se m p re m u ito e sc o rre ­ gadia, da autobiografia, e p o r isso q u ero ju stificar o m eu in teresse pelo tem a q ue aqui tratarei.

N o início da década de 1970, m inha m ulher, eu e m e u s filh o s fre q ü e n tá v a m o s a e n tã o c h a m a d a villa D ragoni, nas im ediações da C ittà di C astello, assim c o m o o g ru p o r u m o ro s o (e p o litic a m e n te insuportável) de m in h as cinco adoráveis sobrinhas, com posto pelas irm ãs Flam inia, Sandra, Paola, Gio- vanna e C arla B izzarri. D o g ru p o ta m b é m faziam

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p a rte m in h a filha A n n a e L aura D alla Ragione, filha d e Livio (192 2 -2 0 0 7 ), q u e a tu o u com o partigiano n a Ú m b ria e d ep o is co m o v o lu n tá rio n a divisão C re- m ona, u m d o s fu n d ad o res d a arq u eo lo g ia arb ó rea,2 e q ue foi, d e sd e os a n o s d a g u erra, u m dos m eu s am ig o s m ais q u e rid o s. L au ra lia m u ito m ais q u e suas colegas de idade, e tin h a decidido d esd e aquele m o m e n to e s tu d a r m ed icin a e especializar-se em p si­ q u ia tria . T rab alh o u p o r m u ito s an o s n o s serviços p siq u átrico s d a Ú m b ria e criou, em 2004, n o palácio Francisci di Todi, a p rim e ira e s tru tu ra p ú b lica resi­ dencial e e x tra-h o sp itala r dedicada ao tra ta m e n to de tra n s to rn o s d o c o m p o rta m e n to alim entar. T ornou- -se u m a das m ais re sp eita d as e ouvidas especialistas so b re ta is tr a n s to r n o s e c rio u o u tr o s c e n tro s d e a te n d im e n to ta m b é m n a B asilicata e n a L om bardia. Ela m e p ed iu p a ra ler o m a n u sc rito d e seu p rim eiro livro, in titu la d o La casa delle bambine che non mangiano: identità e nuovi disturbi dei comportamento alimentare [A casa das m e n in a s q u e n ão com em : id en tid ad e e novos tra n s to rn o s d o c o m p o rta m e n to a lim e n ta r],3 e solicitou q u e eu escrevesse o prefácio. Escrevi em u m as v in te páginas a h istó ria das ideias so b re o tem a "c o m e r”. Inseri-as n o te x to q u e segue e n ão ate n u ei os to n s p o lêm icos ali p re se n te s. Isso eu havia te n ­ tad o fazer, p a rtic u la rm en te , em relação à teó lo g a e p o etisa A driana Z arri, m as recuei q u a n d o so u b e de sua m o rte , em n o v em b ro d e 2010. N essa ocasião, eu li seu s v ersos to c a n te s q u e excluíram essa tentação:

2 Dalla Ragione, L.; Dalla Ragione, I., Arboreal Archaeology. A diary of two fruit explorers.

3 Dalla Ragione, L., La casa delle bambine che non mangiano: iden­ tità e nuovi disturbi dei comportamento alimentare.

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Sobre o túmulo, não coloquem o frio mármore/ coberto com as mentiras de sempre/para consolo dos vivos./ Deixem ape­ nas a terra/ que escreva na primavera uma epígrafe de erva. D esde os tem p o s em q u e convivi com Enzo Paci e Franco Fornari, em M ilão, sem p re li m u ito s livros sobre psiquiatria, m as u m a coisa é ler livros, e o u tra, a p ro x im a r-se d as p e sso a s. E n tre as p e s s o a s q u e conheci, ou q u e vi crescer, en co n trei tam b é m q u em se deixou vencer pela tentação do dom ínio to tal de seu corpo e q ue não conseguiu se livrar da trágica expe­ riência da anorexia. Talvez fosse p o r isso, p o r te r sido roçado pela asa de u m a m o rte atraída p o r criaturas jovens e inconscientes, q ue concordei em desenvol­ ver o te m a d e ste livro e a escrever aquele prefácio. Talvez fosse p o r isso tam b ém q u e estive duas vezes no C e n tro P siq u iá tric o d e Todi. D ep arei ali com u m a m b ie n te cap az d e a c o lh e r u m a p e s s o a q u e reconhece e s ta r p ro fu n d a m e n te d eb ilitad a m esm o sem te r consciência disso. M uitos desses pacientes in terp retam as preocupações dos o u tro s com o u m a ing erên cia in d ev id a em relação a u m a opção q u e co n sid e ram válida, c o n sc ie n te e inegociável: com fre q u ê n c ia re a g e m d u r a m e n te , tr a n s f o rm a n d o o sofrim ento em agressividade, e escondem p o r trás de u m a a titu d e arro g a n te u m a p ro fu n d a in certeza sobre a sua identidade. N o e n tan to , m u ita s vezes, se dão co n ta d a ex istên cia de u m p ro b lem a e qu e precisam d e ajuda. A s vezes, chegam a solicitar essa ajuda, e p edem para n ão serem deixados sozinhos. O projeto terapêutico, q u e re q u e r o co m p ro m isso de m uitos e u m a colaboração c o n tín u a e efetiva en tre diversas com petências, se em b asa na ex istência de um tipo de pacto e n tre a in stitu ição e a (ou o) p a­ ciente. É um m u n d o o n d e tu d o é delicado e difícil,

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o n d e h á m u ita d o r o cu lta e o nde é necessário, para aqueles q ue se envolvem nisso, ap ren d er a lidar, no dia a dia, com a an g ú stia q u e em erge do co n tato com o so frim en to de p e sso as g e ra lm e n te m u ito - e eu diria excessivam ente - jovens.

D edico este livro à m e m ó ria d e Livio e a Laura e seus colaboradores da C ittà di C astello e de Todi.

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Sobre este livro

C om o já m encionei, h á vários significados p ara a • palavra, ou m elhor, p ara a ideia de comer. O s m e lh o ­ res d icio n ário s (aqui faço referên cia ao Dizionario italiano ed itad o p o r Tullio De M auro) elencam dife­ ren tes e variados sen tid o s. Ingerir elem en to s sólidos ou sem issó lid o s m a stig a n d o -o s ou en g o lin d o -o s, fazer u m a refeição, u tiliz ar com o alim ento, com er um p rato p rep arad o de certa m aneira, m astig ar ou roer (as traças com eram u m a blusa), corroer (a fer­ rugem com eu a grade), co n su m ir um com bustível (o carro “c o m e” p o u ca gasolina), dissip ar (com eu a h e ra n ç a d a tia ), re c e b e r ilic ita m e n te (co m er o d inheiro p ú b lic o ). A palavra comer tam b ém é usada em jogos com o d a m as o u x ad rez e ta m b é m p a ra indicar co n h ecim en to de algo.1

1 Algumas frases foram suprimidas, por não terem sentido em português. (N. T.)

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Se n ão p o d em o s ingerir líq u id o s ou alim en to s, esta m o s co ndenados a m orrer. O u so co n tín u o e p e r­ s iste n te das m etáforas alim en ta res foi co nsiderado p o r m u ito s com o u m sinal de q u e elas, seja q u an d o se referem a o b jeto s q u e am am o s ou a o bjetos q ue o d ia m o s, a lu d e m a desejo s a rraig a d o s e em oções p ro fu n d as. É im p o rta n te perceb er a m ultiplicidade e v ariedade de se n tim e n to s q u e estã o p o r trá s das expressões relacionadas com o ato de com er: com er com b e ijo s ,2 c o m e r com o s o lh o s, m a s tam b é m : não consigo tragá-lo, engoliu u m sapo, m astig a u m pouco de latim , com eu veneno, te m sede de c o n h e­ cim ento, te m fom e de cu ltu ra, o a lim e n to espiritual, o alim en to d a alm a, devorar u m livro, conceitos bem digeridos, o livro c o n tém relato s p icantes, e ste o u tro p o r su a vez é m u ito insípido, faz co m en tário s áci­ dos, u sa m etáfo ras deliciosas, os am a n te s su ssu rra m doces palavras, o a u to r faz am argas considerações, aquele cara bebe todas, g o staria de sab er qual é o caldo d a h istó ria, o seu artig o é u m p ra to re q u e n ­ tado, isto e u n ão engulo, ele levava em b an h o -m aria, saiu d o e s p e to e caiu n as b rasas, e sse cara é u m m aria-m o le, é u m a p e sso a d e sg o sto sa, ele v o m ita in su lto s, ele cospe n o p ra to q ue com e, o te x to é u m a sopa de le trin h a s, m u ita fum aça e p o u ca carne, ele é um pão, essa m en in a é u m doce, isto ficou e n talad o n a m in h a garganta, era u m a p ílu la am arga, beb eu um cálice am argo, ficou apenas com a cereja do bolo, ele vai co m e r poeira.

M u ita s d e s s a s m e tá fo ra s e e x p re ssõ e s p o u co tê m a v er com o p ra z e r de u m bo m p rato , m as sim com ju lg am e n to s, às vezes, m u ito ríspidos. A ideia

2 No sentido de cobrir de beijos. (N. T.)

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de co m er oscila e n tre a agradável obviedade co ti­ diana (que p ode ta m b ém ser e n te n d id a com o um gozo refinado ou refinadíssim o) e a trágica obsessão que a escassez ou a falta de alim entos causou e causa em m u ito s seres h u m a n o s. E h á alguns q u e deci­ diram ,, conscien tem en te, m o rre r de fom e. A n o ssa civilização p o ssu i u m a tradição cultural e artística que não inclui apenas Dioniso devorado pelos Titãs ou o q uadro de Francisco de Goya Saturno devorando seu filho. N osso p assad o é rep leto de fábulas povoadas por ogros canibais q ue am ed ro n ta ram e en can taram m uitas crianças.

N este p e q u en o livro ta m b é m m e m ovo no te rre ­ no da h istó ria d as ideias - m in h a g ra n d e se ara d e s­ de m eados do século XX. A h istó ria, ou m elhor, as m uitas h istó rias q ue p ro c u ro n a rra r aqui são rep le­ tas de coisas agradáveis, m as ta m b é m de h o rro res, às vezes, inim agináveis. R e su lta m de u m e m a ra ­ nhado de coisas q ue n ão deviam e sta r ju n ta s, que não q u erem o s ver relacionadas, m as q ue d esg raça­ d am en te se m istu ra m . N ão d ep a ra m o s ap e n as com os rostos de crian ças fa m in ta s que se assem elh am aos de e stra n h o s e trágicos v elh in h o s, m as ta m b é m com os serial killers que se n u tre m dos co rp o s de suas vítim as; com os jeju n s das sa n ta s q ue chegam ao p aro x ism o , e hoje, com o e x tra o rd in á rio ê x i­ to, e n tre os jovens, das h istó rias de vam piros; com os corpos dos obesos inchados de gordura e com os corpos m irrad o s e esqueléticos das m en in as (e das m odelos) ano réx icas. Ju n to com a filo so fia h e d o ­ nista do slowfood, q ue d ita as reg ras de u m a a lim e n ­ tação ideal, se a p re se n ta o o b sc u ra n tism o do culto de Ana, u m a divindade m o n stru o sa que a p re se n ta a anorexia com o sinal de u m a escolha heróica e com o

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u m a fo rm a su p e rio r de vida, aju d an d o a se d im e n ta r o m ito de u m a a lim en taçã o saudável a b so lu tam en te co rre ta q ue d istin g u e (de fo rm a exag erad a e o b se s­ siva) os a lim e n to s certos, saudáveis e p ositivos dos a lim e n to s perigosos.

A pro p ó sito d e sta m ald ita relação, lem bro-m e de que em 1998 fiquei m u ito im pressionado com u m a observação que encontrei n o livro sobre a árvore da co can h a de E leonora D e C onciliis:3 q u a n d o com e­ m os, a palavra “m a ta r” parece co m p letam en te fora de lugar, in o p o rtu n a e to ta lm e n te “e rra d a ”, com o se n ão tivesse ab so lu tam en te n a d a a ver com o que estam o s tra n q u ila m e n te fazendo to d a vez q ue com e­ m os carne. N esses m o m en to s - com o co rretam en te escreveu M arguerite Y ourcenar - digerim os seren a e p acatam en te "as agonias” dos seres viventes.

A gradeço m in h a esp o sa A ndreina, M ario M onti Rossi, S tefania N icasi, M irella Brini, G iorgio Barto- lozzi e M arco Segala pelas sugestões. U m agradeci­ m e n to especial a A lessia G raziano e R oberto Bondi

(antigos colegas q u e se form aram com igo, cum lau- de) p o r suas valiosas co n trib u içõ es p ara m e u texto.

3 De Conciliis, Nutrirsi delTaltro. Viaggio antropologico nell’in- conscio alimentare. In: Coppola; D ’Alconzo; De Conciliis,

L’albero delia cuccagna. II cibo e la mente, p.93-166.

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As ideias b ro ta m da vida, m as são capazes de distanciarem -se dela. A dquirem um a existência p ró ­ pria e au tô n o m a. Elas se desenvolvem a p a rtir de si m esm as, se d ifundem às vezes com grande velo­ cidade (com o nas ep id em ias), o u tra s vezes m u ito lentam ente, alte rn an d o períodos de dorm ência e de súbitas acelerações. D ificilm ente se extinguem sem deixar vestígios. E stão sujeitas a m utações e se inse­ rem nos processos evolutivos da cultura. As ideias têm su a força: to rn am -se form as de p e n sa m e n to e geram co m p o rtam en to s. Por m eio de processos às vezes m u ito lin eares, o u tra s vezes e x tre m a m e n te com plicados, afeta m a vida e o d e stin o d o s in d i­ víduos e os m o d ificam . N u m p rim e iro m o m e n to novas e até m esm o subversivas, m uitas ideias com o tem po se to rn a m corriqueiras. Elas se tra n sfo rm am tam bém em lugares-comuns, com u m a aceitação pací­ fica, e são rep etid as à exaustão, com u m a grande e quase inacreditável m on o to n ia.

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O c o n fo rm is m o d a s id e ia s - q u a n d o se to r ­ n am lu g ares-co m u n s - gan h a u m a viscosidade q ue se co m p ara àquela p re se n te nas in stitu içõ es (e na burocracia, q u e é a m ais viscosa das in stitu içõ es). A s arg u m en taçõ es c o n trap o stas às ideias n a m o d a n ão são levadas em con sid eração . São rech açad as com u m g esto de ab o rrecim en to . H á u m desprezo p o r q u e m se d is ta n c ia d o s lu g a re s -c o m u n s q u e prevalecem em u m a sociedade o u em u m g ru p o so ­ cial. O p e rte n c im e n to das ideias ao se to r das ideias "p ro g ressistas” ou ao se to r dos ch am ad o s “lugares- -co m u n s” n ã o é definido apriori n em pela fo rm a das ideias, e n e m m e sm o p o r seu c o n teú d o . P ortanto, não se exclui o fato de que, a n tes de se to rn a re m lu g ares-co m u n s ou m e sm o a n tes d e serem elim in a­ das com o su p erstiçõ es, d e te rm in ad as ideias ten h am exercido u m a função h isto ric a m e n te im p o rta n te e até m esm o , em m a is d e u m caso, h is to ric a m e n te p rogressista.

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Natureza

O te rm o natureza (para q u em gosta de jogos de palavras) n ão p erten ce ao gênero natural, m as ao gê­ nero cultural. Isto q u e r dizer q u e d e n o ta u m objeto que não p ode ser facilm ente d eterm inado. Falam os de um estudo da natureza e en te n d em o s u m co n ju n ­ to de fenôm enos o rdenados, u m a realidade p au tad a por leis; de defesa da natureza e en ten d em o s o a m ­ biente m odificado pelos seres h um anos; de natureza criadora e en ten d em o s u m a espécie de personificação como se n o s referíssem os a u m a d eu sa benéfica (ou maléfica). M as falam os tam b é m da n a tu re z a feroz dos tigres, d a n a tu reza a fetu o sa dos cães sam oiedos, de hom ens generosos p o r n a tu re z a ou de u m a p e s­ soa de n a tu reza contem plativa. A qui nos referim os a algo de inato, de in stin tiv o , n ão cultural ou pré-cul- tural. Aqui natureza parece con trap o r-se fo rte m en te a cultura. As oscilações lingüísticas são pavo ro sam en te amplas: o te rm o natureza foi u sad o com o eufem is­ m o para órgãos g en ita is (so b re tu d o fem in in o s) e

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fala-se em natureza-morta p ara referir-se a u m gênero de p in tu ra . N o dicionário Riguti Fanfani, natural te m o significado d e “h a b ita n te originário de u m p a ís”, com o n a expressão, q u e hoje n in g u ém m ais usaria, “os n a tu ra is do E gito”. Se p a ssa rm o s do dicionário de Tullio D e M auro p ara u m de filosofia, as coisas acabam se com plicando ainda m ais. N icola Abbag- n an o d istin g u e e n tre q u a tro conceitos. A n a tu re z a com o p rin cíp io d e vida e de m o v im en to (A ristó te­ les define a n a tu re z a com o a substância das coisas que possuem o princípio de movimento em si mesmas); a n a ­

tu re z a com o o rd em e n ecessid ad e v inculada à ideia de u m a lei n atu ral; a n a tu re z a com o esp írito d im i­ n u íd o ou im perfeito, com o espaço exterior, acidental e m ecânico; a n a tu re z a com o cam po das técnicas da percepção e d a observação à disposição d o saber. O Oxford Companion to Philosophy diz coisas b em dife­ ren tes. “N a tu re z a ” p o ssu i trê s significados: refere-se ao u n iv erso e o q u e ele contém ; refere-se ao m u n d o do vivente (passado e p re se n te ) em oposição ao não vivente; e refere-se ao q u e é in d e p e n d e n te da ativi­ dade dos seres h u m a n o s. O Cambridge Dictionary o f Philosophy traz os te rm o s “n a tu ra lism o ”, “lei n a tu ­ ral”, “e p istem o lo g ia n a tu ra lista ”, “filosofia n a tu ra l” e “religião n a tu ra l”, m as (não e n te n d o p o r quê) con­ sid ero u in ú til e filosoficam ente su p érflu o o te rm o “n a tu re z a ”. N a Filosofia d a ed ito ra G arzanti o te m a é desenvolvido em trê s parágrafos: n a tu re z a e o rd em do m u n d o ; n a tu re z a com o m áq u in a; e as relações en tre n atu rez a, e sp írito e h istória.

N ão h á sen tid o algum em p erco rrer este cam i­ nho. Por trás dos term o s escolhidos pelos au to res dos dicionários, h á u m a am pla literatu ra q ue re m o n ta à Grécia arcaica e q u e continua, com u m p erm an en te

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fervor, até a atualidade. A queles term os (com o m u i­ to s o u tro s ) q u a s e se m p re e s tã o im p re g n a d o s de significados em otivos. Rigor e precisão (m as tam b ém sobre isso h á discordâncias) perten cem ao m u n d o da m atem ática e da lógica sim bólica. A resp eito de coi­ sas m u ito im p o rta n tes para todos e para cada um de nós (vida, amor, m orte, progresso, decadência, valo­ res) tem os ideias m u ito confusas e (e para desagrado de q u em vive no m u n d o acadêm ico e político) dis­ pom os de definições aproxim adas ou, n a m elh o r das hipóteses, discutíveis. As visões gerais do m u n d o em que se situam os conceitos e as ideias são perm eadas por u m páthos m etafísico, de verve religiosa, som ado a m otivações psicológicas inconscientes. Sobre estas últim as, p o r definição, tem os p ouco conhecim ento.

U m a grande p arte da noção com um ou corrente de natureza é ainda hoje, com o era nas origens, resultado de projeções antropom órficas, entrem eadas por m itos e ligadas a instintos e im pulsos irracionais. A n a tu ­ reza continua a apresentar-se, por vezes, com o um a força criadora benéfica, com o u m a contínua e m aravi­ lhosa invenção de form as, e ao mesmo tempo com o u m a energia perigosa, capaz de gerar o mal, im piedosa, na iminência de nos aniquilar e de evocar os dem ônios da destruição. É m u ito provável que n en h u m a filosofia consiga erradicar das m en tes essa antiga e profunda am bivalência expressa n o grande poem a de Lucré- cio intitulado De rerum natura, que se inicia com um hino a Vênus, com a visão da prim avera e da luz do céu claro, com a m ultiplicação da vida, e q ue se con­ clui com o alento m ortal da p este que exterm ina os rebanhos, cobre de pragas os m em bros dos hom ens, contagia m ultidões, to rn a desertas suas casas e im pele os sobreviventes a lutarem selvagem ente en tre si.

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Cultura

Parece-nos, com c e rta razão, q u e os seres h u ­ m anos fazem se m p re as m e sm a s coisas: d o rm em , con stro em abrigos c o n tra o calor e o frio, p ro c u ra m alim entos, com em , se acasalam , riem e choram , criam seus filhos, estab elecem regras com re c o m p en sa s e punições p ara q u e m n ão as re sp e ita m , ag rid em e são agredidos, fazem g u e rras e e n te rra m seu s m o rto s, curvam -se d e várias m an e ira s a seres divinos e in ­ visíveis. N a realidade, cada u m a d essas coisas é fei­ ta de form as tão diversas q ue, às vezes, vão além de qualquer im aginação.

No âm ago do livro Good to Eat [Bom de com er], do grande a n tro p ó lo g o M arvin H arris, su rg e u m a p erg u n ta fu n d a m e n ta l, q u e se s itu a n o c e n tro da reflexão dos antropólogos: d ad o q ue to d o s os que pertencem à espécie h u m an a são onívoros e d o tad o s de um aparelho digestivo a b so lu ta m e n te idêntico, como é possível q u e em alguns lugares do m u n d o sejam consideradas iguarias coisas com o form igas,

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g afa n h o to s o u rato s, q u e em o u tro s lu g ares p a re ­ cem ser im undícies repulsivas? E m b o ra a tu a lm e n te se p o ssa c o m p ra r p e la i n te r n e t1 e m b a la g e n s com e sc o rp iõ e s frito s, fo rm ig as, s e rp e n te s e c a rn e de c ro c o d ilo , o s p r o c e s s o s d e s s a g lo b a liz a ç ã o n ã o p are cem (n e sta área) m u ito velozes. N o C am boja co m e m -se co le ó p te ro s, b a ra ta s d ’água, lag artix as, m orcegos. E m H anói co m em -se serp e n te s e ex istem sete receitas p a ra co zin h ar u m cão. N a N ova G uiné apreciam -se os v erm es do saguzeiro, grandes e car- n o so s, q u e p o s s u e m u m a p e le d u r a re c o b e rta d e pelos e p o r d e n tro u m a m a ssa crem o sa am arelada. N a C h in a e n o C am boja, co m o é sabido, se com e m io lo de m acaco (inclusive d ire ta m e n te n o anim al re c é m -a b a tid o ). N as ilhas do arq u ip élag o in d o n é ­ sio se beb e u m tip o d e café p ro d u z id o com grãos p arcialm en te d igeridos e defecados pelo civeta-das- -p alm eiras.2 A ta râ n tu la é com ida n o C am boja. N as Filipinas - inclusive na s ru as - se co m em ovos fecun­ dados de p a to ou de g alin h a q u e c o n têm em b riõ es q u ase c o m p le ta m e n te form ados. N a C oreia põem - -se filh o tes de ra to s vivos n u m a garrafa de licor de arroz, q u e é beb id o após ferm entar. N o M éxico, os escamoles são p ra to s feitos com ovos de form iga. E p o d eríam o s e n u m e ra r ta n to s o u tro s casos.3

A s d iferen ças são g rita n te s e, p o r vezes, in s u ­ peráveis. P or q u e o boi sim e o cão não? Por q ue u m a m e n in a nascida e crescida n o s E stad o s U nidos n o s o lh a e sta rre c id a e h o rro riza d a se lhe disserm o s

1 w w w.edible.com /stockists.

2 Considerado o café mais caro do mundo. (N. T.)

3 h ttp ://v ia g g i.lib er o .it/n e w s/a -c a cc ia -d i-c ib i-d isg u sto si- -nel470.phtm l.

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que já com em os u m coelho? Por que a trip a fascina os flo re n tin o s e o s m ila n e se s (q u e a c h a m a m de busecca) e é consid erad a com d esdém e h o rro r pela m aioria dos am ericanos? Isso n ão deve ser m otivo de espanto. C om o o ap arelh o digestivo, tam b ém o genital é co m u m a to d o s os m e m b ro s da espécie h u m an a e, n o e n ta n to , m u ito s sabem q u e a d e n o ­ m inada posição do missionário é consid erad a e stra n h a para q u a lq u er m em b ro de u m a co m u n id ad e do Pací­ fico sul-ocidental.

D esde os tem p o s m ais rem o to s, existe u m m odo m uito sim ples e m u ito a d o tad o para reso lv er este tipo de problem a: negar a qualificação de seres h u m a ­ nos e qualificar com o anim ais ou com o n ão h u m an o s aqueles q ue se co m p o rtam de form a m u ito diversa da n o ssa ou q u e p o ssu e m c o stu m e s q u e c o n sid e ­ ram os estra n h o s ou inaceitáveis. A distinção e n tre sociedades civis e sociedades prim itivas baseou-se durante certo te m p o n a a n títe se e n tre a civilização ocidental e a “b a rb á rie ” d o s n ã o e u ro p e u s . E sse posicionam ento foi aban d o n ad o , pela an tro p o lo g ia co n te m p o rân ea, p o r n ã o p o s s u ir se n tid o . C o m o term o cultura, a a n tro p o lo g ia d esig n a as técnicas de adaptação ao am b ien te e o m o d o de vida de q u a l­ quer grupo social. Para a an tropologia, com o afirm a Ruth Benedict em seu conhecido livro de 1934,4 “as norm as q u e o u tra so cied a d e d efin iu p a ra o c a sa ­ m ento são tão significativas q u a n to as n o ssa s”; p ara um antropólogo, “os n o sso s c o stu m es e os da N ova Guiné c o n stitu em dois esq u em a s sociais possíveis para resolver u m p ro b lem a c o m u m ”.

4 Benedict, Modelli di cultura, p.7.

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O re la tiv ism o c u ltu ra l, d u r a n te o sé c u lo XX, co in c id e com u m a te s e m u ito d is c u tid a e m u ito controversa: seg u n d o e sta tese, d ad o q u e to d a cul­ tu ra a s s u m e su a s p ró p ria s fo rm as e se a p re se n ta com o su p e rio r às o u tras, n ão ex istem form as m ais ou m e n o s a u tê n tic a s d e h u m a n id a d e e, p o rta n to , n ão é possível d istin g u ir e n tre form as d e h u m a n i­ dade e form as d e d esu m a n id a d e e estabelecer, sobre esta basè, q u a lq u e r tip o de h ierarq u ia. A esses p ro ­ b lem as, E rn e sto d e M a rtin o , g ra n d e e stu d io so do m u n d o d a m agia, n a scid o em N áp o les em 1908 e m o rto em R om a em 1965, forneceu resp o sta s ainda h oje atu ais. Será q u e o e n c o n tro com a diversidade deve se d a r n u m p lan o d e to tal au sên cia d e valores? U m a vez a b a n d o n a d a a convicção d e q u e a n a tu rez a h u m a n a coincide com os m o d elo s a ssu m id o s com o válidos pela p ró p ria c u ltu ra , é p reciso d efen d er um a to d e abdicação? E v e rd a d e q u e to d a e q u a lq u e r in terv en ção n o s a ssu n to s d o s o u tro s c o n stitu i u m a fo rm a de rep ressão ? É v erdade q u e a p u ra e sim ples re n ú n c ia a q u a lq u e r m o d elo c o n stitu i e m si m esm a o prin c íp io n ecessário e su ficien te p a ra a solução dos pro b lem a s d a h istó ria h u m an a?

O q u e q u e r dizer, ex atam e n te, o co n fro n to inter- cu ltu ra l com q u e m c o n sid era óbvio e certo q u e as m u lh e re s são p o r n a tu re z a in fe rio re s e p o rta n to su b m issa s aos h o m en s, e co n sid era ju s to q u e u m a a d ú lte ra seja e n te rr a d a a té a cab eça e a p e d rejad a até a m o rte com p e d ras p e q u e n a s p a ra a u m e n ta r o te m p o d e seu suplício? E possível p e n sa r n u m a rela­ ção in te rc u ltu ra l com q u e m co n sid era os negros e os h e b re u s m ais sem e lh a n te s aos an im ais q u e aos h o m e n s, com q u e m defen d e a g u erra tribal, o d om í­ n io de u m a e tn ia e o d ire ito ao ex te rm ín io do inim igo

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racial? U m a co isa é o e sfo rço d e c o m p re e n sã o e o u tra o co n fro n to in te rc u ltu ra l. P luralism o, to le râ n ­ cia, re sp eito pelas m inorias, defesa de seu s d ireito s não po d em se r o b jeto de negociações. Só se p ode exercer p ressão (as m ais fortes e decididas e m esm o as m ais chantagistas possíveis) n a au sên cia de re s­ peito a tais valores.

N ão é a b so lu ta m e n te verdade q u e isso coincide (com o parece crer Francesco R em otti n a su a Prima lezione di antropologia) com a convicção “de te r d e s­ co b erto , p o r rev elação d iv in a e /o u p o r rev elação n atu ral, a fo rm a m ais a u tê n tic a de h u m a n id a d e ”. E n tre as c u ltu ra s , se g u n d o o m e s m o a u to r, n ão haveria diferenças qualitativas e seria ilícito e im p o ssí­ vel estab elecer e sc a lo n am en to s.5 E n tre 1993 e 2007, 45 países re n u n c ia ram à p rática da p e n a de m o rte. A que se deve e sta renúncia? O u, em d eferência aos professores de an tropologia, será que ela n ão deveria ser avaliada d e alg u m a form a? Em Bamako, capital de Mali, foi realizad a u m a C o n feren ce o n Fem ale Genital M u tilatio n , q u e concluiu seus tra b alh o s com a adoção da Bamako Declaration fo r the Abandonment o f FGM, ou seja, d a female genital mutilation [m u ti­ lação g e n ita l fe m in in a ]. D e sd e 2 0 0 7 , a E ritré ia , u m país n o qual a m u tilação genital abran g ia 90% das m u lh eres, p asso u a co n sid e rar essa p rática um delito. Será q u e ta m b é m e ste s seriam exem plos de p re te n sõ e s o c id e n ta is ind ev id as? Será q u e E m m a Bonino fez m al em preocupar-se com esse a ssu n to ou deveria te r g aran tid o o p len o resp eito às d iferen ­ ças culturais?

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D e n tro d a c u ltu ra ocidental, n u m e ro so s in telec­ tu a is p o d em rechaçar, c o n testar, criticar e co n d en ar su a p ró p ria c u ltu ra e ta m b é m e n v erg o n h ar-se das in stitu içõ es e ideias em m eio às q u ais vivem e p u b li­ cam artig o s e livros. P odem te r sim p a tia p o r o u tras e d iferen tes c u ltu ra s, m as isso n ão p ode se r co n sid e­ rad o u m p ro b lem a . Tais críticas p o d em se r tam b ém co n sid erad as com o e stím u lo p a ra u m c rescim en to e u m a p e rfe iç o a m e n to da so c ie d a d e e ao m e sm o te m p o co m o u m a p ro v a ind iscu tív el d a p le n a p e r­ te n ç a d e ta is in te le c tu a is ao O c id en te. D e fato, é ú n ic a e ex c lu siv a m e n te n e s s a c riticad a civilização o cid en tal q u e ta is a titu d e s são n ão ap en as toleradas, m as valorizadas e c o n s e q u e n te m e n te aceitas com o sinais positivos.

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O comer: entre natureza e cultura

C o m er n ão envolve ap en as a n a tu re z a e a cul- • tura. S itua-se e n tre a n a tu re z a e a cultura. Participa de am bas. Tem m u ito a ver com a p rim eira e ta m b é m com a se g u n d a .1

Q u an d o foi publicado, em 1964,2 O cru e o cozido de Claude Lévi-Strauss, os estudiosos da m in h a ge­ ração (hoje octogenários) se deram conta não apenas do fato de q u e as cham adas qualidades sensíveis - p o r exemplo, cru e cozido, ou fresco e podre - p ossuem um a lógica e u m a h istó ria , m as ta m b é m d o fato de que a com ida (e su a preparação) não é u m e le m e n to m arginal e irrelevante; p erceb e ram q u e e stas a lter­ nativas tê m a ver com o ato de com er em g ru p o ou sozinho, com a p assag em d a n a tu re z a à c u ltu ra e

1 Um site dedicado ao tema "alimentação”: http://www.trec cani.it/enciclopedia/alim entazione/.

2 Lévi-Strauss, Le Cru et le cuit. Ver também Müller, Piccola etno­

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com o m u n d o dos siste m a s sim bólicos. A s form as d e a lim e n ta ç ã o p o d e m d iz e r algo im p o rta n te não ap en as so b re as form as de vida, m as ta m b é m sobre a e s tru tu ra de u m a sociedade e so b re as regras q ue lhe p e rm ite m p e rs is tir e d esafiar o tem p o .

O livro Cannibals and Kings. The Origin o f Cultures [C anibais e reis. A orig em das c u ltu ras] de M arvin H arris foi p u b lica d o em N ova York, e m 1977, e foi tra d u z id o p a ra o italian o pela F eltrinelli, d o is anos m ais ta rd e .3 V ariáveis s e m e lh a n te s , e m co n d içõ es s e m e lh a n te s , p r o d u z e m re s u lta d o s s e m e lh a n te s : c o n sid e ra n d o e s te p re s s u p o s to , foi p o ssív el co m ­ p a ra r é p o c a s d if e r e n te s e d if e r e n te s c o s tu m e s e e stilo s d e vida, e se p ô d e tam b é m defender a exis­ tên cia de certo tip o de d e te rm in is m o (se m e lh a n te àq u ele q u e age n a evolução) q u e caracteriza os fenô­ m e n o s sociais. N a d écada d e 1980 e 1990 su rg iram os livros, b rilh a n te s e in te lig e n te s, de P iero C am po- resi, p ro fe sso r de lite ra tu ra italian a n a U n iversidade d e B olonha, q u e foi o m a is im p o rta n te e stu d io so das relações e n tre m ito s p o p u la res, lite ra tu ra e ali­ m en tação : II paese delia fam e [O país d a fom e], II pane selvaggio [O pão selvagem ], officine dei sensi [A oficina dos sen tid o s], La terra e la luna [A te rra e a lua]. Em cada u m d e ste s livros, a h is tó ria d a alim en tação e a c o rre sp o n d e n te h istó ria da fom e se e n trelaçam com a alta lite ra tu ra e a popular, com o folclore e a c u ltu ra cam ponesa, e com eçam a fazer p a rte d e u m a h istó ria das ideias q u e u tiliza m ito s e n arraçõ es tra n sm itid o s o ra lm e n te , fazem re ferên cia à co can h a e ao C arn a­ val, às com ilanças q u e n o rm a lm e n te se seg u iam aos p e río d o s d e u m a fom e d e se sp e ra d a , e x te n u a n te e

3 Na edição brasileira, A natureza das coisas culturais. (N. T.) %

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crônica. V agabundos, m endigos, cam p o n eses pobres em ergiam d o m u n d o d o esq u e c im e n to e to rn av am - -se p ro ta g o n ista s de u m a h istó ria q ue utilizava sem e scrú p u lo s (com o d e fe n d ia G ia m b a ttista Vico) os m ais variados m ateriais. A h istó ria das ideias e d a m e n ta lid a d e a p ro x im a v a -se fo rte m e n te da a n tr o ­ p o lo g ia c u ltu ra l. U m a c o n trib u iç ã o im p o r ta n te é oferecida ta m b é m p elo s vários livros de M assim o M o n tan ari,4 q u e tra to u d o s tip o s e o b jeto s d e ali­ m e n ta ç ã o n a Id ad e M édia, d o s p ra z e re s d a m e sa n a idade m o d e rn a e co n te m p o râ n e a e q u e escreveu u m a h istó ria da alim e n ta ç ã o n a E u ro p a tra d u z id a em m u ito s p aíses. A filosofia aproxim a-se da a n tro ­ pologia ta m b é m n o livro d e Leon R. K ass5 dedicado à alim entação com o ap erfeiço am en to da n o ssa n a tu ­ reza. O ce n tro d e ste s tra b a lh o s é co n stitu íd o pelos p o s ic io n a m e n to s em re la ç ã o ao a lim e n to e, p o r ­ tanto, à relação e n tre alim e n to e cultura.

C o m o m u ito s - h á m u ito te m p o - tê m e n fa ­ tizado, as ações p a ra se livrar d a fom e e d a sed e e m p ree n d id as p elo s m e m b ro s d a espécie h u m a n a são “n a tu r a is ” a p e n a s n a a p a rê n c ia . N a v e rd a d e estão e stre ita m e n te ligadas à artificialidade das téc­ nicas cu lin árias, aos in s tru m e n to s u tiliz a d o s p a ra cozinhar e p a ra com er, às cerim ônias e aos rito s nos quais h o m e n s e m u lh e re s (m as às vezes ap en as os

4 Montanari, Nuovo convivio. Storia e cultura dei piacere delia tavola

nelVetà moderna-, Montanari, Convivio oggi. Storia e cultura dei piaceri delia tavola neWetà contemporanea; Montanari, La fame e l'abbondanza. Storia deWalimentazione in Europa; Montanari;

Capatti, La cucina italiana. Storia de uma cultura.

5 Kass, The Hungry Soul. Eating and the perfection of our nature. Ver

também Livi Bacci, Popolazione e alimentazione. Saggio sulla sto­

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h o m e n s, com u m a fo rte exclusão das m u lh e re s que co z in h am e p õ em a m esa) se re ú n e m em to rn o de u m lugar on d e são servidos os alim en to s. O alim ento n ão é ap en as ingerido. A n tes d e chegar à boca, ele é p rep arad o e p en sa d o d e talh ad am en te. A dquire o que g eralm e n te se ch am a de valor sim bólico. O preparo d o alim e n to m arca u m m o m e n to central da passagem d a n a tu re z a à cu ltu ra. O p rep aro d o alim ento, com o m o stro u C laude Fischler,6 to rn a-se u m a m an eira de exorcizar o perigo sem p re p re se n te n o q u e estam o s in tro d u zin d o , pela boca, n o n o sso corpo. A relação e n tre n u triç ã o e co n tam in a ção p o d e parecer, nesse sen tid o , m u ito am b íg u a e com plicada.

A e x p re s s ã o maccheroni (s o b re tu d o n a F ran ça e n o s E s ta d o s U n id o s) foi, d u r a n te c e rto tem p o , u m a fo rm a d e p reciativ a d e referir-se aos italianos. A id eia d e q u e “os o u tro s ” co m em coisas estra n h a s o u re p u g n a n te s era (e c o n tin u a se n d o em algum as p a rte s d o m u n d o ) m u ito d ifu n d id a. A acusação de canibalism o, e n tre o s sécu lo s XVI e XVIII, foi feita a m u ita s p o p u la ç õ e s q u e n a d a tin h a m a v e r com e sta p rá tic a tã o polêm ica. A lg u n s in sistira m (Pierre B o u rd ieu ,7 P eter S cholliers,8 C arole M. C o u n ih a n 9) n a d e fe sa d a a lim e n ta ç ã o co m o m eio d e d e sta c a r as d ife re n ç as e n tre c u ltu ra s e classes so ciais p a ra refo rça r u m a d e te rm in a d a id e n tid a d e c u ltu ral. M as é c e rto ta m b é m q u e d e n tro d a n o ssa civilização a ali­ m e n ta ç ã o e a c u rio sid ad e em to rn o d e form as de se

6 Fischler, Lonnivoro. II piacere di mangiare nella storia e nella

scienza.

7 Bourdieu, Ladistinzione. Critica sociale dei gusto. 8 Scholliers (org.), Food, Drink and Identity.

9 Counihan, The Anthropology of Food and Body. Gender, meaning

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alim e n tar d ifere n tes das n o ssas c o n stitu e m u m dos m eios m u ito u tiliz a d o s p a ra e sta b e le c e r c o n ta to s en tre d iferen tes c u ltu ras, e p a ra m esclar co stu m e s, m odos de vida e civilizações. N a Itália, são m u ito s os q ue alte rn a m o m acarrão com p ra to s d a cozinha chinesa, jap o n esa, indiana, p aq u ista n esa.

N o livro Antropologia e simbolismo, M ary D ouglas fez u m a análise d e ta lh a d a d o s m o d o s de cozinhar, dispor e a p re se n ta r os p ra to s n u m ja n ta r p re p arad o por d o n as d e casa inglesas. P ro cu ro u id en tificar u m m apa q ue co n tiv esse o co n ju n to das co m binações e a lógica aí p re se n te s. Jack G oody,10 p o r su a vez, se in te re sso u p rin c ip a lm e n te p e lo s m o d o s d e tra n s ­ m issão da cu ltu ra culinária e pela distinção de gostos com o m eio de se definir u m a d e term in ad a identidade étnica. De q u alq u er form a, não se nega - e sobre isso quase todos estão de acordo - q ue a preparação d a com ida é u m a m ediação e n tre n a tu re z a e c u ltu ra. No e n ta n to , a artificialidade é sem p re p re ssio n ad a pela natu reza. E sta se evidencia e m o stra su a força quando h á falta d e alim e n to s e q u an d o h á u m a d ra ­ m ática n ecessid ad e de se evitar a fom e q u e leva a deixar de lado os rito s e os c o stu m es p a ra lançar-se sobre a com ida, sem q u a lq u e r cau tela (com o a a p r o ­ x im ação le n ta , o c h e ira r p rim e iro ), o q u e p a rec e v in c u la r-se a m u ita s fo rm a s d e v id a e q u e e s tá p r e s e n te ta m b é m n o m u n d o a n im a l. N o n o s s o m u n d o m o d e rn o - to d o s sa b e m o s, m a s fin g im o s que não - ex istem am p la zonas d a Terra nas q u ais a fome c o n stitu i u m a do en ça crônica, q u e tira a e sp e ­ rança de vida e leva, m u ito rap id am en te, à inanição e à m orte.

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O jejum

Religião e je ju m são te rm o s dificilm ente sepa- • ráveis. O je ju m é u m a fo rm a de a u to d isc ip lin a e faz p arte d a form ação esp iritu al dos b u d istas. Buda alcança a ilu m in açã o e as q u a tro n o b re s verd ad es após te r a b an d o n ad o o jeju m . O desejo c o n stitu i a origem do m al e o desejo da com ida é u m dos m ais enraizados e p ro fu n d o s. D istan ciar-se d o s d esejos faz p a rte do c a m in h o da salvação. N o Lankavatara Sutra1 lê-se:

Para m anter sua pureza, um a alm a ilum inada deve abster-se de comer carne, que deriva do esperma e do sangue. Quem segue a disciplina para atingir a compaixão deve abster-se de comer carne para não causar terror nos outros seres viventes.

1 Lankavatara Sutra: a Mahayana text. Translated for the first time from the original sanskrit by Daisetz Teityaro Suzuki, http://lirs.ru/do/Ianka_eng/Lankavatara_Suzuki,Mahayana, Routledge_l 956,161 pp.pdf.

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M u ito s h in d u s je ju a m n a n o ite de fevereiro, n a qual Shiva e x ec u ta a d an ça cósm ica d a criação e da d estru ição . Upvas, q u e em sâ n sc rito significa jejum , indica e star sen tad o ao lado de D eus. D u ran te o m ês de Ram adã, os m u çu lm an o s se a b stê m de com ida, de ág u a e d a relação sexual to d o s os dias do m ês: do a m a n h e c er ao p ô r do sol. N o D ia d a Expiação (ou Yom K ippur), os h e b re u s je ju a m d a ta rd e de u m dia a té a ta rd e d o d ia se g u in te: n ã o p o d e m com er, beber, lavar-se, calçar sap ato s de co u ro de an im ais e m a n ­ te r relações sexuais. M as je ju a m ta m b é m em m u itas o u tra s o casiõ es. O s m ó rm o n s je ju a m n o p rim e iro d o m in g o d e cada m ês, a b ste n d o -se de com ida e de líq u id o s p o r v in te e q u a tro horas.

J e s u s p ra tic o u o je ju m ap ó s seu b a tism o (M t 4,1-2; Lc 4 ,1 -2 ). E m M t 6,16-18, e n c o n tra m o s u m a passag em n a qual Je su s co n d e n a a h ip o crisia e con­ vida a u m a relação d ire ta com D eu s an u n c ia n d o a reco m p en sa q u e ele p ro m e te aos q u e jejuam :

Quando jejuardes não fiqueis tristes como os hi­ pócritas; pois eles desfiguram o rosto para m ostrar aos homens que estão jejuando. E m verdade, vos digo: já receberam sua recompensa. Tu, porém, quando jejuar­ des, unge tua cabeça e lava teu rosto, para que os ho­ mens não percebam que jejuas, mas apenas teu Pai que está oculto, e o teu Pai que vê no segredo te recom­ pensará.

A reflexão de A g o stin h o d e H ip o n a so b re a u ti­ lid a d e d o je ju m in ic ia com a c o n tra p o siç ã o e n tre os an jo s e as c ria tu ra s h u m a n a s. O p ão d o s anjos é D eus; n o céu n a d a falta, ali h á a b u n d ân cia e sacie- d ad e ete rn a s. A qui, os esp írito s racionais en c h e m de

v %

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D eus suas m e n te s. N a Terra, as alm as vestidas com um corpo te rre n o en ch em seu s v en tres com os fru ­ tos da terra. O n o sso a lim en to n o s falta n o m e sm o in stan te em q u e nos restau ra , dim in u i à m ed id a q ue nos sacia. O a lim en to celeste, ao contrário, m a n té m - -se ín teg ro m e sm o q u a n d o n o s sacia. Q u e m se curva sobre a terra, em b u sca de a lim e n to e de u m p razer ligado apenas à carne, p o d e se r com parado aos a n i­ mais. O s cristão s levam u m a vida d istin ta dos q ue não têm fé e alm ejam u n ir-se aos anjos. A in d a não som os ju sto s, m as estam o s a cam inho. Q ual é a v an­ tagem de n ão nos a b an d o n arm o s ao alim e n to e aos prazeres da carne?

A carne nos inclina para a terra, a mente se volta para o alto, é arrebatada pelo amor, mas é retardada por seu peso... Assim , se a carne inclinada para a terra é um peso para a alma, uma bagagem que impede seu voo, quanto mais colocamos nossas alegrias na vida superior, tanto mais se alivia seu peso terreno. E is o que fazemos quando jejuamos.2

Em m aio d e 1994, a C onferência Episcopal Ita­ liana resolveu

solicitar aos cristãos uma retomada convicta e vigo­ rosa das práticas penitenciais. Este apelo busca, antes de tudo [continuava o texto], a fidelidade às exigên­ cias evangélicas da penitência, mas também dar uma resposta coerente ao desafio do consum ism o e do hedonismo tão difundidos em nossa sociedade.

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N e ste te x to o cardeal R uini evocava as palavras p ro fe rid a s p o r P aulo VI n a c o n clu são d o C oncilio V aticano II, n a C o n stitu iç ã o A p o stó lica Paenitemini:

E n tre os graves e urgentes problem as que se impõem à nossa solicitude pastoral, está o apelo aos nossos filhos - e a todos os homens de fé do nosso tempo - para o significado e a importância do manda­ mento divino da penitência.3

Em d e ze m b ro de 2001, Jo ão Paulo II p ro p ô s u m a jo rn a d a d e oração e de je ju m q u e u n isse os fiéis de to d a s as religiões e os d efen so res d a paz c o n tra to d as as g u erras p a ra q u e “o a m o r prevaleça so b re o ódio, a p a z so b re a g u e rra , a v e rd a d e so b re a m e n tira , o p e rd ã o so b re a v in g a n ç a ” .4 E ste te x to su sc ito u aprovações, m as ta m b é m alg u m as críticas explícitas, e n tr e o s c a tó lic o s .5 N a s u a m e n s a g e m d e Q u a ­ resm a, B ento XVI afirm o u q u e o jeju m “n o s ajuda a v en cer o egoísm o, a ab rir o coração ao a m o r a D eus e ao p ró x im o ”.6 A tu a lm e n te os católicos jeju am (ou m elhor, deveriam jeju ar) ap en as dois dias p o r ano: n a Q u a rta-feira d e C inzas e n a Sexta-feira Santa.

N ão sei se é v erd ad e - co m o te m sido d ito 7 - que a tu a lm e n te , n as igrejas p ro te s ta n te s e evangélicas,

3 w w w .vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_constitutions/ documents/hf_p-vi_apc_19660217_paenitemini_it.html. 4 w w w .vatican .va/h oly_fath er/joh n _p au l_ii/an gelu s/2001/

d ocum ents/h fjp-ii_ang_20011209_it.html. 5 http://grandinotizie.eom /daz/l 129.htm.

6 w w w .vatican.va/h oly_father/benedict_xvi/m essages/lent/ docum ents/h f_ben-xvi_m es_2008121 l_lent-2009_it.htm l. Ver Gori, II digiuno e le religioni, L'Osservatore Romano, 6 mar. 2009.

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assiste-se a u m verd ad eiro ren ascim en to d o jejum . No e n tan to , acredito q u e n o m u n d o católico te n h a ocorrido o contrário. E sta avaliação é co m p artilh ad a pelo teólogo E nzo Bianchi, que, n u m artig o n o jornal Avvenire de 8 de m arço de 2009, escreveu o seguinte:

No Ocidente - diversamente do que ainda acon­ tece nas igrejas do O riente - pode-se dizer que a prática eclesial do jejum praticamente desapareceu: a abstinência de carne às sextas-feiras é livremente substituída por outros gestos sem qualquer relação com o alimento, o jejum ascético limita-se a apenas dois dias ao ano - a Quarta-feira de Cinzas e a Sexta- -feira Santa; na preparação para a primeira comunhão, foi reduzido a um a ho ra... Assim , uma prática que vem desde Israel, retomada por Cristo, presente na. grande tradição eclesial do Oriente e do Ocidente, torna-se cada vez menos presente e exigida.

Só u m cristian ism o insípido, co n tin u a Bianchi,

pode acabar com o jejum, considerando-o algo irrele­ vante, e pensar que uma privação de coisas supérfluas (portanto, não vitais com o o alim ento) possa ser substituída: esta é um a tendência que desdenha a importância do corpo e sua condição de templo do Espírito Santo. N a verdade, o jejum é a maneira com que o crente testemunha sua fé no Senhor com seu próprio corpo, e constitui um antídoto à redução in- telectualista da vida espiritual ou à sua confusão com o psicológico.8

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P enso q u e u m a gran d e p a rte da c u ltu ra laica e stá tã o envolvida n a po lêm ica com as crenças e su p e rs­ tições d o s católicos, q u e acabam n ão p erceb en d o as rach ad u ras, as diferenças e as v erd ad eiras gretas q ue ex istem n o s m u ro s seculares d a Igreja C atólica. N o en ta n to , a re s o lu ta red u ção da p rática do jeju m (que p ara alg u n s parece u m v erd ad eiro d esap arecim en to ) é c o n s id e r a d a p o r a lg u n s s e g m e n to s d o m u n d o católico a in d a m u ito parcial e insuficiente. Em um n ú m e ro d a rev ista MicroMega dedicado ao alim en to , a teó lo g a A d rian a Z arri (que p u b lico u m u ito s livros e c o la b o r o u e m m u ito s jo r n a is , d o Osservatore Romano ao II Manifesto) ex p resso u su a perplexidade d ian te d a clara p red o m in ân cia, n o s te x to s e n o s d i­ cionários, de d isc u rso s sobre o je ju m e de u m a quase in e x is te n te lite r a tu r a re lig io sa s o b re o a lim e n to . Z arri c o n sid era u m g a n h o o fato de o C oncilio de T ren to n ã o te r se p ro n u n c ia d o so b re o a lim e n to , pois se o tivesse feito “te ria talvez feito prevalecer o jeju m so b re o convívio e n tre as p e sso a s”. Zarri d e s­ taca a p red o m in â n c ia e im p o rtân cia d e sse convívio, e afirm a q u e o parco êx ito d o a lim e n to e d o sexo n a trad ição c ristã vincula-se à “theologia crucis ta n to re ssa lta d a ” e q u e foi in s is te n te m e n te p reg ad a pela Igreja C ató lica a té g e ra r u m “e x a sp e ra d o dorismo9 q u e te m n o jeju m d o a lim e n to e d a cam a seu m ais significativo ca p ítu lo ”.10

C o n fesso te r ficado e sta rre c id o com o fato de Adriana Zarri te r falado, nesse contexto, de “u m nosso som brio e obsessivo p u d o r”. G ostaria de perguntar:

9 Sentimento de dor acentuado. (N. T.)

10 Zarri, Cibo e cristianesimo, I quaderni di MicroMega, suple­ mento do n.5, 2004, p.38-40.

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nosso de quem ? D as freiras de clausura? D os n o sso s contem p o rân eo s? D os italianos? A psicossexóloga Valeria R andone escreve:

Durante muitos anos, após uma mudança radical do quadro cultural, a sexualidade também assumiu novos significados: deixou de ser vinculada à pro- criação, franqueou-se ao universo feminino o acesso à dim ensão do prazer, tornaram -se conhecidas e lícitas algumas perversões soft, e a m ídia e a inter­ net transmitiram uma sexualidade ginástica escassa de conotações emocionais. A luz destas mudanças de paradigmas com portamentais, a virgindade perdeu totalmente sua razão de ser e seu significado ances­ tral originário. Estudos recentes (Congresso Nacional de Sexologia C línica - Taormina, maio de 2009) de­ monstraram que a idade da primeira relação sexual dim inuiu muito e situa-se num raio que vai dos 13 aos 17 anos, com uma correspondente elevação do nível de desinformação sexual quanto à contracepção e às doenças sexualmente transm issíveis.11

Poderíam os p erg u n tar: será que A driana Zarri, p reocupada com n o b re s q u e stõ e s teológicas, n u n ­ ca ligou a televisão? Q u e n u n ca se deu co n ta da to tal m ercantilização do corpo das m u lh e re s e d o s h o ­ m ens im p o sta a m ilh õ es de espectadores? Q u e n ão se deu co n ta de q u e tam b é m jo rn alistas com fo rm a­ ção declarad am en te laica, q ue gostam de e u sa m um a linguagem só b ria e com edida, u tilizaram -se d a p o u ­ co científica e p ouco sociológica noção d e “orgia de bundas e te ta s ” com u m a clara referência à atual e

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e sp a n to sa invasão d o sexo n a televisão italiana? Os teólogos tam b ém , com o h á m u ito os filósofos, são capazes hoje de tudo: nos dias atu ais, p o d em o s falar q u e se tra ta d e u m fe n ô m en o co m um , de u m “so m ­ b rio e obsessivo p u d o r”? Será q u e ain d a podem os falar de u m jejum da cama com parável ao jejum do ali­ mento e falar ta m b é m d e u m d ifu n d id o e exasperado dorismo?

N ão sou capaz de ju lg ar se oprazeirismo ou o delei- tismo de A driana Zarri (com o poderíam o s den o m in ar o co n trário de dorismo?) te n h a ou n ão u m a relação com a trad ição cristã. C o n sid ero n o e n ta n to m u ito in te re ssa n te que, em 2004, em u m te x to in titu lad o “A lim e n to e c r is tia n is m o ”, e s ta in q u ie ta te ó lo g a te n h a escrito (logo abaixo do títu lo ) o seguinte:

O s evangelhos ensinam: Cristo quis estar entre nós por meio da comida e do ato de comer, m ultipli­ cou pães e peixes preocupado com a fome do povo. Todavia, textos e tratados de teologia m ística trazem m uitos discursos sobre o jejum e pouco se preocupam com a dimensão festiva da comida. Por quê?

A p resen ça de C risto p o r m eio d a co m id a estaria relacionada com fartos b a n q u e te s e com locais para com er? O u o alim e n tar-se e o c o m er c o n stitu e m um p o n to cen tral e decisivo n a teo lo g ia cristã? P essoal­ m en te , co n sid e ro -m e cristão ap en as n o se n tid o dado ao te rm o p o r B enedetto Croce, q u e dizia q u e nós oci­ d en tais n ão p o d em o s dizer qu e não som os cristãos. N ão o b sta n te , li q u a se com alívio, n o te x to Notas sobre algumas publicações do Prof. Dr. Reinhard Messner, p u b licad o e m 30 d e n o v e m b ro de 2 0 0 0 pela C o n ­ gregação p a ra a D o u trin a d a Fé e a ssin ad a pelo seu

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então prefeito (e atu al pontífice) Jo sep h Ratzinger, as seguintes linhas:

A Igreja está persuadida na fé de que o próprio C risto - como narram os Evangelhos (ver M t 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc 22, 15-20) e, por tradição apostólica, São Paulo (ver IC o r 11, 23-25) - entre­ gou aos discípulos na ceia antes da sua Paixão sob as espécies do pão e do vinho o seu corpo e o seu sangue, instituindo desta forma a Eucaristia, que é genuinamente o seu próprio dom à Igreja de todos os tem pos. Por conseguin te, não se deve supor que, no cenáculo, C risto - como continuação da sua comunhão à mesa - realizou uma análoga ação convival sim bólica, com perspectiva [da doutrina] escatológica. Segundo a fé da Igreja, na últim a ceia, Cristo ofereceu o seu corpo e o seu sangue - entregou- -se a Si mesmo - ao seu Pai e deu-se a Si próprio como alimento aos seus discípulos, sob as espécies do pão e do vinho.12

Entregar-se com o alim e n to aos seus discípulos sob os sinais do pão e do vinho. E ntre n a tu re z a e cul­ tura, na civilização d a qual som os filhos, a com ida e o comer ocupam certam en te u m lugar m u ito especial.

12 w w w .vatican.va/rom an_curia/congregations/cfaith/docu m e n ts/r cc o n c fa i th_doc_20001130_messner_it.html.

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O jejum e a santidade

Sobre a vida dos sa n to s, so b re seu jeju m , sobre sua re c u sa a lim e n ta r, s o b re s e u a s c e tis m o e x is ­ te um a a b u n d a n te e prolífica lite ra tu ra . A lgum as obras disponíveis em italiano: La santa anoressia. Di- giuno e misticismo dal Medioevo a oggi de R ud o lp h M. Bell; Sacro convivio, sacro digiuno: il significato religioso dei cibo per le dom e dei Medioevo de C aro lin a W alker Bynum; Dalle sante ascetiche alie ragazze anoressiche: il rifiuto dei cibo nella storia de W alter V andereycken Ron van D eth. D ois d e ste s livros co m p aram as for­ mas de jeju m da p rim e ira Idade M o d ern a com o q ue atualm ente se define com o anorexia. A re sp e ito d e s­ te tipo de lite ra tu ra deve-se levar em co n sideração a advertência ex p ressa com m u ita clareza pelo p si­ quiatra Paolo S an to n astaso : jejum , em ag recim en to exagerado, te n d ê n c ia ao sacrifício, fo rm as d e au- to p u n iç ã o , is o la m e n to c a ra c te riz a m fe n ô m e n o s m uito d ista n te s u m do o u tro , e ta m b é m são d e s ­ critos com lin g u ag en s m u ito d istin ta s. O p erig o de

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se m p re são as sim plificações gro sseiras e as id e n ti­ ficações errô n e a s.

O s significados n ão são fa cilm en te separáveis d o s c o n tex to s. A m agia do século XVI p e rte n c e à a lta c u ltu ra da E uropa. Ela é co n sid erad a u m a rea­ lidade positiva p o r C o rn eliu s A grippa, G iam b attista d elia Porta, G iordano Bruno, T om m aso C am panella, Paracelso. E xistiria alg u m a relação e n tre estes per­ son ag en s e o divino m ago O telm a, P rim eiro Teurgo d a Ig re ja d o s V iv e n te s, a lé m d e g r ã o -m e s tre d a O rd e m T eúrgica d e H elios (q u e é u m d o s m u ito s m agos q u e aparecem hoje n a televisão)? A m agia ex istia n o s séculos XVI e XVII, e existe ta m b é m no século XX. Por e sta razão, será q u e n in g u é m teria a ideia de escrever u m livro in titu la d o De Giordano Bruno ao mago Otelma?

N o livro d e B ynum , o c o n te x to da A lta Idade M édia - o n d e os significados de palavras com o "ali­ m e n to ” e "je ju m ” são d is tin to s d o s n o sso s - fica claro: n e sse m u n d o , cada devoto cristão jejuava an ­ te s da c o m u n h ã o e recebia seu D eus com o alim ento. U m alim e n to q u e se to rn a D eus. M ísticos e p reg a­ do re s “de A g o stin h o a João C risó sto m o e tam b ém B ernardo d e Claraval, T auler e G erso n fizeram do a lim e n to u m a m e tá fo ra d a in sp ira ç ã o re lig io sa e do jeju m u m sím bolo d e p en itên c ia e p rep aração ”.1 C ultivar o sofrim ento, no m u n d o a q u e p erten c em C a tarin a d e Siena e V erônica G iuliani, faz sentido. O so frim e n to não p erten ce , com o em n o sso m u n ­ do, ao p ato ló g ico ou ao te rre n o da doença. N esse m u n d o , u m a g a ro ta q u e jeju a com o b stin ação é u m

1 Bynum, Sacro convivio, sacro digiuno: il significato religioso dei cibo

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