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Dogmática, Zetética e “Topos”: A Caixa Vazia

No documento TEORIA DO DIREITO CONSTITUCIONAL (páginas 110-116)

Bloco IV: Mudança constitucional

Aula 19: Dogmática, Zetética e “Topos”: A Caixa Vazia

NOTA AO ALUNO

A INTRODUÇÃO

Leia com atenção a ementa abaixo:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. CONDUÇÃO DO RÉU “DEBAIXO DE VARA”. Discrepa, a não mais poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibi- lidade do corpo humano, do império da lei (...) – provimento judicial que (...) implique determinação no sentido de o Réu ser conduzido “debaixo de vara”, para a coleta do material indispensável à feitura do exame de DNA20.

De um modo geral, quando lemos a ementa de um acórdão pela primeira vez, não temos o hábito de imaginar que haja votos em sentido contrário àquele exposto no texto – os chamados “votos vencidos”, ou “dissidentes” na tradição norte-americana. Mas há. Sempre que, ao final do acórdão, não encontramos referência a “unanimidade de votos”, estamos diante da vitória de uma interpretação específica da norma sobre outra(s) interpretação(ões) concorrente(s). Na ementa acima, sob a veemente e indig- nada redação do Ministro Marco Aurélio, há uma série de interpretações diferentes e igualmente possíveis dos mesmos dispositivos constitucionais.

Do processo de interpretação participam pelo menos três elementos: o sujeito que interpreta, o objeto que é interpretado e o método com que o sujeito apreende o objeto. Nesta aula, enfocaremos e exploraremos o que seria o “objeto” da inter- pretação jurídica, que, na verdade, tem pelo menos duas dimensões – a norma e o fato.

Extrair o significado das normas jurídicas em um caso concreto (determinar não apenas se são aplicáveis, como também as conseqüências de sua aplicação) não é um processo exato, preciso ou “científico”. Além de partir de uma série de fatores apenas implícitos na decisão – preferências políticas ou culturais do juiz, necessidade de se atingir ou evitar determinadas conseqüências sociais ou econômicas etc. –, a inter- pretação das normas jurídicas lida com elementos muito fluidos. Sendo construído com palavras, o objeto da interpretação – a Constituição ou outras normas jurídicas – apresenta todo tipo de ambigüidades e vaguidades quando tentamos fixar de uma vez por todas o seu significado. “Separação de Poderes”, “Igualdade”, “Dignidade da Pessoa Humana” e “Democracia” são expressões polissêmicas. Dentro delas, podemos “encaixar” diversos significados. Mais: mesmo que concordemos com um determinado significado, com um determinado “conceito” de Democracia ou de Igualdade, por

20 Acórdão no HC 71373-4,

Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio.

exemplo, isso não implica que concordaremos sempre acerca das conseqüências da aplicação de um desses princípios em um caso concreto. O meu conceito de igualdade pode ser “tratar desigualmente os desiguais”, e você pode estar de acordo com isso. Mas será que, diante de um caso concreto – o das cotas para estudantes negros, por exemplo – estaremos de acordo acerca do que deve ser levado em conta para determinar quais tratamentos desiguais são permitidos ou proibidos em cada caso? O mérito? A cor da pele? A beleza? O dinheiro? A virtude? A posição política? A necessidade?

É difícil determinar de antemão este tipo de coisa. Só podemos realmente ter idéia de qual interpretação consideramos a mais correta diante de cada caso concreto, e, vale dizer, uma mesma interpretação de um mesmo dispositivo pode ser válida em um caso, mas não em outro. É nesse sentido que dizemos que a interpretação jurídica precisa estabelecer em algum momento um “ponto fixo” para se fundar – um ponto a partir do qual a argumentação pode se abrir em diversas direções distintas.

Um ponto-chave na exploração deste caso é mostrar como, apesar de o raciocínio judicial ser dogmático, e não zetético ou especulativo, a argumentação que surge a partir dos “pontos fixos” é livre para se desenvolver em muitas outras direções. Como observa Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

Como deve haver um princípio básico dogmático que impeça o recuo ao infinito (pois uma interpretação cujos princípios fossem sempre em aberto impediria a obtenção de uma decisão), ao mesmo tempo em que a sua identificação é materialmente aberta (...), notamos, então, que o ato interpretativo tem um sentido problemático localizado nas múltiplas vias que podem ser escolhidas, o que manifesta a liberdade do intérprete como outro pressuposto básico da hermenêutica jurídica. A correlação entre esses dois pressupostos, um atendendo a aspectos objetivos e o outro a aspectos subjetivos da in- terpretação, portanto, a correlação entre dogma e liberdade é, na verdade, uma tensão entre a instauração de um critério objetivo e o arbítrio do intérprete.21

Na argumentação constitucional, os dispositivos constitucionais funcionam como os nossos “pontos fixos”, nossos pontos de partida. São “topoi”, lugares-comuns plausí- veis de onde a argumentação pode partir, desde que aceitos como válidos pelo auditó- rio. Limitam o espaço de discussão, definindo quais tipos de argumentos serão válidos, e quais não serão, mas não determina a decisão. São um pressuposto para a decisão, pois não podem ser negados; caso contrário, a discussão não teria fim. Mas não nos dizem qual a conseqüência de sua aplicação em cada caso. A questão, portanto, é como realizar essa extração de significado e de conseqüências da norma jurídica de forma compatível com a Constituição e com os interesses em jogo em cada caso.

B O CASO22

Tatiana Medeiros Rosa e Laura Medeiros Rosa, filhas de Helena Medeiros Rosa, irmãs gêmeas nascidas em 19 de novembro de 1999, não conhecem seu pai verdadeiro. No início de 1990, quando as gêmeas foram concebidas, Helena estava se separando

21 FERRAZ JR., Tércio Sam-

paio. “Reforma do Ensino Jurídico: Reformar o Ensino ou Reformar o Modelo?”.

22 Os fatos narrados a se-

guir são adaptações livres daqueles que deram ori- gem ao HC 71.373-4 RS.

de João Alberto Pereira Machado, com quem não chegou a ser casada oficialmente. Ela tem certeza de que ele é o pai das crianças, mas por muitos anos preferiu não procurá- lo. Embora as gêmeas tenham sido criadas junto ao atual marido da mãe, como se fossem filhas do casal, a situação da família não é inteiramente confortável para a He- lena. Ela não se sente bem com o fato de sua péssima relação com João – os dois só se falaram uma vez desde a separação, justamente para discutir a paternidade das gêmeas, que João recusara a reconhecer – ser um empecilho para que Tatiana e Laura conheçam ser verdadeiro pai.

A versão de João, contudo, é bastante diferente. Helena mantinha relações com outros homens além dele e, além disso, na data da provável concepção, os contatos íntimos entre o casal já tinham diminuído muito, tendo em vista o desentendimento que levou à separação algumas semanas depois. Embora não tenha nada contra as me- ninas, considera um oportunismo da parte de Helena exigir o exame de DNA, pois é uma pessoa pública que terá a imagem prejudicada pelo escândalo da imputação de paternidade, ainda que falsa.

Nesse contexto, fracassaram todas as tentativas de resolução amigável da questão. Em 2003, representando Tatiana e Laura, Helena ajuizou ação de Investigação de Paternidade contra João Alberto Pereira Machado, na 2ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central da Comarca de Porto Alegre.

Ao final da audiência de conciliação e julgamento, diante da recusa de João em se submeter à coleta do material para realização do teste de DNA, a Juíza de Direito decidiu forçá-lo a colaborar com a produção da prova da paternidade, nos seguintes termos:

No presente caso, estão em jogo interesses de duas menores. Outrossim, pelo que está nos autos, uma das partes está faltando com a verdade e o exame dirime dúvida estabelecendo, praticamente em definitivo, com quem está a verdade, desmascarando-se ou a oportunista ou o que tenta eximir-se da responsabilidade da paternidade.

Não há motivo para que o réu se negue ao exame, a menos que esteja com receio do resultado. Hoje, com o avanço das pesquisas genéticas, é inconcebível que não seja feito tal exame neste tipo de ação.

Assim, determino a realização do exame, a ser realizado pelo perito já designado e compromissado. Oficie-se para a marcação de data. Deverá o réu comparecer, assim que intimado, sob pena de condução sob vara, eis que, no caso, seu corpo é “objeto de direitos”, não sendo cabível invocar “direito personalíssimo de disponibilidade do próprio corpo”.

Para se defender da possível violência estatal (a “condução sob vara”), João impetra

habeas corpus preventivo, a fim de preservar sua liberdade de locomoção. Recurso após

recurso, instância após instância, a questão chega ao Supremo Tribunal Federal. Confira os principais trechos do Relatório e dos votos dos Ministros:

A ordem [de habeas corpus] antecipadamente programada constitui ameaça de coa- ção, porque a condução representará violência contra a liberdade de locomoção do im-

petrante, cuja recusa foi manifestamente expressa nos autos. (...) Importa alertar para o inusitado da indeterminação, porque no ordenamento processual brasileiro a condução da parte só se concebe com o sentido de prisão.23

(...) Na matéria suscitada, sem pronunciamento conhecido do Supremo Tribunal Federal, vigoram preceitos que permitem a recusa de, na ação de que se trata, o inves- tigado fornecer seu corpo ao exame. Na Constituição Federal existem as matizes mais eficientes: o inciso II reafirma a tradição de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (...); o inciso X consagrou que são invioláveis a intimidade e a vida privada.24

O que temos agora em mesa é a questão de saber qual o direito que deve preponderar nas demandas de verificação de paternidade: o da criança à sua real (e não apenas presu- mida) identidade, ou do indigitado pai à sua intangibilidade física.25

(...) Vale destacar que o direito ao próprio corpo não é absoluto ou ilimitado. Por ve- zes, a incolumidade corporal deve ceder espaço a um interesse preponderante, como no caso da vacinação, em nome da saúde pública. (...) Estou em que o princípio da intangi- bilidade do corpo humano, que protege um interesse privado, deve dar lugar ao direito à identidade, que salvaguarda, em última análise, um interesse também público.26

É certo que compete aos cidadãos em geral colaborar com o Judiciário (...) e que o sacrifício – na espécie, uma simples espetadela – não é tão grande assim. Todavia, prin- cípios constitucionais obstaculizam a solução dada à recusa. Refiro-me, em primeiro lugar, ao da legalidade, no que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. (...) A Carta Política da República (...) consigna que são invioláveis a intimidade, a honra e a imagem das pessoas – inciso X do rol das garantias constitucionais (artigo 5º). Onde ficam a intangibilidade do corpo humano, a dignida- de da pessoa, uma vez agasalhada a esdrúxula forma de proporcionar a uma das partes, em demanda civil a feitura de uma certa prova? (...) É irrecusável o direito do paciente de não permitir que se lhe retire, das próprias veias, porção de sangue, por menor que seja, para a realização do exame.27

[A confissão ficta] não é bastante e suficiente quando estamos diante de interesses morais, como o direito à dignidade que a Constituição assegura à criança e ao adoles- cente (...). Ora, Sr. Presidente, não há no mundo interesse maior do que este: o do filho conhecer ou saber quem é o seu pai biológico.28

Convenceu-me o Sr. Ministro Relator, Francisco Rezek, e os que o acompanharam de que não se pode opor o mínimo (...) sacrifício imposto à inviolabilidade corporal à eminên- cia dos interesses constitucionalmente tutelados à investigação da própria paternidade.29

O paciente considera constrangimento ilegal ser obrigado ao exame aludido. Em favor desse posicionamento, invoca-se o disposto no inciso X do art. 5º da Constituição

23 HC 71.373-4 RS, Rela-

tório do Min. Francisco

24

25 HC 71.373-4 RS, Voto

do Min. Francisco Rezek,

26 27 HC 71.373-4 RS, Voto do Min. Marco A 419/420. 28 HC 71.373-4 RS, Voto do Min. C 422. 29 HC 71.373-4 RS, Voto do

que assegura a inviolabilidade da intimidade, e aqui cabe ver compreendida, também a inviolabilidade do corpo.30

Após a leitura dos votos selecionados (que se encontram no anexo ao material di- dático), reflita:

t Quais os “pontos fixos” da argumentação de cada uma das partes envolvidas – auto-

ras, réu, juíza e Ministros do Supremo? Quais os artigos ou expressões da Constitui- ção que, em conjunto ou separadamente, explicitam esses mesmos “pontos fixos”?

t Quais os “pontos fixos” comuns à argumentação de todos os Ministros? Existe

acordo sobre algum “topos”?

t À primeira leitura desses artigos, parece ser compatível com a ordem jurídica

nacional alguém ser conduzido à força para um exame de DNA? Parece ser compatível com a ordem jurídica nacional uma pessoa não poder saber qual a sua verdadeira origem biológica?

t Quais as diferentes concepções que cada Ministro extrai dos “topoi” que você

identificou em cada voto?

t O texto dos “pontos fixos” comporta todas as interpretações possíveis para

estas palavras e expressões? Todos os significados atribuídos aos “topoi” são igualmente plausíveis, se levarmos em conta o texto constitucional? Você consegue pensar em alguma interpretação que estes dispositivos não compor- tariam?

t Como Tribunal realizou a “escolha” dentre essas interpretações de um mesmo

“topos”? Você concorda com a escolha realizada pelo STF? Tente pensar em um critério estritamente jurídico que permita dizer quem está com razão.

t Qual você consideraria a solução mais “justa” para o caso? Você consegue funda-

mentá-la a partir da Constituição?

C MATERIAL DE APOIO c1) Textos

I) OBRIGATÓRIOS

HC 71.373-4/RS (exame forçado de DNA para investigação de paternidade), in- teiro teor, constante no anexo do curso.

II) ACESSÓRIOS

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 2001. (Trechos selecionados pelo Professor).

VIEHWEG Tópica e Jurisprudência. Brasília: Departamento de Impren-

sa Nacional, 1979. Tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr.

MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A Tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio

de Janeiro: Renovar, 2002.

30 HC 71.373-4 RS, Voto

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. “Reforma do Ensino Jurídico: Reformar o currículo ou o modelo?” in Cadernos FGV DIREITO RIO. Textos para discussão nº 02. Rio de Janeiro, Set/2006.

AULA 20: INSTRUMENTOS INTERPRETATIVOS I: UNIDADE, SUPREMACIA E

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