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DOLO ANUNCIADO: A COR COMO SIGNO DE SUSPEIÇÃO

(...) porque cordão de ouro dá pra esconder, quando você vê. o policial, bota pra dentro da blusa, mas a cor da pele... você não tem como esconder a cor da pele. (Adolescente da zona oeste – RJ)50

50 Fala de um adolescente negro do Rio de Janeiro a uma entrevista sobre ―Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro‖. (RAMOS E MUSUMECI, 2005, p.80)

81 A cor vigiada é uma afirmativa que nos remete a discursos e práticas discursivas que, no contexto histórico e estrutural das relações raciais brasileiras, têm na cor – negra – um signo estruturante de suspeição. Enquanto parte da imagem fenotípica dos indivíduos, a cor se inscreve nos corpos constituindo uma marca que informa posições e lugares sociais. Nas relações que envolvem risco e busca por segurança, essas marcas acionam significados construídos historicamente na trajetória colonial e de construção da nação brasileira, localizando os sujeitos, dentre outras posições na de vítimas e suspeitos.

Nos capítulos anteriores, fiz a análise de três situações com características de ações preventivas. Esse empreendimento analítico me levou a elaborar algumas afirmações, qual seja, a de que a prevenção é um termo ambivalente e produtor. Ela não deve ser vista somente em seu caráter reativo e positivado, mas como um termo que produz exclusão social, na medida em que parte da premissa do evitamento de algo. Evita-se algo ou alguém que é encarado como risco, desordem e perigo. Todos esses elementos são construtos sociais e históricos pejorativizados em discursos e postos para funcionar por mecanismos de poder, que objetivam também o controle social e a manutenção de relações hegemônicas.

Outra afirmação que fiz foi a de que existe uma metonímia de expansão da violência, a qual se inicia com a insegurança generalizada, principalmente, no meio urbano levando as pessoas a buscarem formas de se sentirem mais seguras. A prevenção aparece como uma forma eficaz e humana de promover essa segurança, sendo que se isso se constitui numa falácia, na medida em que a prevenção reatualiza as relações de poder existentes, ratificando a exclusão dos excluídos. Essas relações vão construir sujeitos, identidades e diferenças influindo diretamente no cotidiano dos indivíduos envolvidos.

Na análise das situações, observei que os corpos são importantes na viabilização dessa busca por segurança. Isso porque de um lado a responsabilidade pela segurança parece, na visão dos sujeitos, ser um atributo dos corpos de forma individualizada. De outro lado, são desenvolvidas técnicas e habilidades que proporcione a esses corpos sua auto defesa. Mas uma peculiaridade importante nesses cursos é o desenvolvimento da habilidade em ler e interpretar signos corporais e comportamentais, sendo este um passo crucial no processo de promoção da segurança, via evitação do perigo.

Dito isso, o meu esforço nesse capítulo é o de, através da descrição de um caso em que a cor negra foi determinante enquanto signo de suspeição, analisar as relações em que a promoção de segurança parece ser o cerne. É também pretensão deste texto apresentar o

82 quanto a cor negra, como signo estruturante, acionou reações violentas nas relações sociais e foi lida como significando risco e delinquência, promovendo prejuízo físico, psíquico e moral aos negros envolvidos. Pretendo também, observando esses signos como produtos e produtores de relações e estruturas históricas, discorrer sobre características dessas construções históricas das relações raciais brasileiras, com o objetivo de compreender melhor as formas de manifestação dos signos de suspeição e a relação deles com a estrutura social vigente. E por fim, pretendo entender que sujeito é produzido a partir dessas relações estigmatizadas. Como os negros se inserem nessa metonímia de expansão da violência? Que relação existe entre a noção de prevenção, como mecanismo de controle, e os negros brasileiros? Como percebem e são percebidos seus corpos e habilidades?

Apesar das críticas apontadas, no presente texto, sobre a produção de saberes, é necessário que se apresentem os esforços acadêmicos de pesquisa, relatando a cor como elemento de suspeição. São trabalhos que partem do Estado como agente de violência e de discriminação racial, mas também consideram as relações sociais e de contato entre polícia e sujeitos negros atravessados por uma estrutura histórica racializada. No entanto, são trabalhos específicos sobre a polícia que não nos dá a dimensão ampla e o alcance desse tipo de categorização – suspeição -, no cotidiano dos indivíduos.

Uma das pesquisas intitulada ―Elemento suspeito‖, das autoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci (2005), trata do contato entre polícia e população carioca no contexto de blitz. Quando perguntado ―o que levaria um policial a considerar uma pessoa suspeita?‖ Os mesmos apresentam dificuldade em responder, demonstrando algumas vezes reação defensiva que é manifestada por uma negação utilizando a velha premissa de que ―não existe pessoa suspeita, mas situação de suspeição‖, ou até mesmo usando a definição de que ―suspeita é a pessoa obviamente suspeita‖, ou seja, utilizando a metáfora do espelho.

Essa metáfora – do policial como espelho da sociedade - seria acionada no plano discursivo toda vez que o policial reconhece que as definições de “elemento suspeito” tendem a coincidir com estereótipos negativos relacionados à idade, gênero, classe social, raça/cor e local de moradia(...) (Ramos e Musumeci, 2005, p.39).

A cor foi uma das características mais citadas pelos jovens como preponderantes na seleção que faz o policial na hora da abordagem. Ela é mencionada como algo inevitável, uma vez que a cor você não pode mudar, tirar como a vestimenta, ou atitude etc.

83 Outro trabalho significativo sobre o tema é o de Geová da Silva Barros (2006). Trata-se de uma dissertação de mestrado intitulada ―Racismo institucional: a cor da pele como principal fator de suspeição‖. Neste trabalho, o autor empreende uma tentativa de estudo sobre discriminação racial na abordagem policial. Apresenta como objetivo verificar em que medida a cor da pele constitui fator de suspeição. Além disso, procura identificar se os policiais têm a percepção da prática do racismo institucional. O autor sistematiza, para isso, um banco de dados a partir da aplicação de questionários e da análise de boletins de ocorrências de sete unidades da Polícia Militar de Pernambuco. Como resultado, Barros (2006) verificou que 65,05% dos profissionais percebem que os pretos e pardos são priorizados nas abordagens, o que corrobora as percepções dos alunos do Curso de Formação de Oficiais e do Curso de Formação de Soldados, com 76,9% e 74%, respectivamente.

Estes não são os únicos trabalhos que abordam o tema, no entanto, cito-os aqui como uma contra-crítica e para enfatizar que a maior incidência de discussões e políticas com viés racial têm surtido o efeito também de aumentar, ainda que muito pouco, o interesse em se pesquisar a temática. Bem, sem mais elucubrações passemos para a apresentação do caso Januário.

3.1 - Raça/cor como elemento estruturante da suspeita: descrição do caso