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1.3 Evitação/exclusão e as construções identitárias

Na segurança esse algo a ser evitado são situações, contexto, espaços ou pessoas que representem ameaças à segurança de ―pessoas de bem‖. Comportamentos ideais de como evitar o perigo é, na maior parte dos casos, sinônimo de evitar pessoas perigosas ou locais onde essas pessoas se encontrem24. Fundamentada em perfis traçados de pessoas que cometem crime (estatísticas), de situações que geralmente oferecem riscos, na experiência daqueles que trabalham diretamente com violência e em teorias ainda utilizadas por muitos cursos de formação de especialistas em segurança como base bibliográfica, a saber, a criminologia e a vitimologia dentre outros saberes, várias técnicas são desenvolvidas sob o pretexto da defesa de pessoas ―inocentes‖.

O suspeito e a sua provável vítima podem ser lidos como o impuro e o puro, respectivamente. Para Mary Douglas (1976), estas noções vão além do biológico e constituem marcas que organizam uma coerência cultural, naturalizando e impondo posturas. A impureza estaria ligada a desordem. Refletir sobre ela não é possível sem que se analise sobre a ordem e a desordem. A pessoa suja, impura pode ser entendida como aquela que representa ameaça. Ameaça de contaminação, por exemplo, ou da possibilidade de desordem que se torna um perigo em razão da sua ambigüidade. Desse modo, deve-se concentrar esforços para que os impuros sejam controlados e a ordem instituída.

A impureza pode ser identificada através de sinais ou marcas sociais denominados por Goffman (1975) de estigmas. Como sinais identificadores que podem estar relacionados aos aspectos físicos, mas também à imagem social que se faz de alguém,

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No capítulo três as categorias e afirmações aqui trabalhadas estão esmiuçadas na análise da descrição dos casos de suspeição

24 O curso online que informa técnicas comportamentais de como evitar o perigo descreve a correlação entre comportamento ideal e processo de evitação de lugares e/ou pessoas perigosas.

32 o estigma é fonte geradora de profundo descrédito, ou entendido como um defeito, fraqueza e desvantagem, sendo definido por Goffman como

[um] atributo profundamente depreciativo, um status proativo desfavorável, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo. Criando a partir daí a noção de normais e estigmatizados, ou seja, no estigma um indivíduo que poderia ser aceito na relação social cotidiana é afastado e não aceito em função de um atributo. (GOFFMAN, 1975, p.13)

Kristeva (1986) entende o sujeito estigmatizado e sujo em meio às relações com o outro. Denomina-o sujeito abjeto e afirma que sua construção se faz através da exclusão e da evitação. A rechaça do indivíduo concretiza identidades na medida em que estabelece o Outro mediante a segregação e o subjugo. O que está em jogo no processo de construção de identidades são as relações e suas assimetrias, sendo que a exclusão de um ―Outro abjeto” corrobora como elemento na definição do ―Eu hegemônico‖. Dito de outra forma, classifica-se e afasta sujeitos considerados sujos, desviantes, desordeiros, afastando assim o perigo. Assim, constitui-se o processo de segregação e estigmatização dos ditos ―indivíduos risco‖, já que expõem ao perigo os ditos ―normais‖. Tanto Kristeva quanto Douglas partem das relações sociais sob o princípio da diferenciação, na qual a identidade emerge a partir da exclusão criadora do Outro – o abjeto e o impuro. Taylor (1993) aponta na mesma direção quando trabalha com a importância do reconhecimento social na construção da identidade. Para ele

Existe uma relação entre o reconhecimento social e a identidade, uma vez que a identidade se relaciona com a interpretação da pessoa de quem ela é e suas características enquanto ser humano. Essa identidade se modela em parte pelo reconhecimento ou falta dele. (TAYLOR, 1993 p.43,44)25

Para entender melhor a relação entre identidade e reconhecimento social recorro à noção de identidade em Taylor, ao qual se constituiria numa relação dialógica com outros indivíduos ou grupos. Dessa forma, a construção da identidade pressupõe a existência de um ―nós‖ que representaria elementos objetivos e subjetivos e que estão por trás da formação de uma identidade. Nesse sentido, o indivíduo possui uma identidade ainda que fragmentada e conflitual, muitas vezes contraditória e não resolvida (REIS, 2001, p.61,62). O reconhecimento social negativo poderia ser um princípio construtor da identidade depreciada, do indivíduo impuro e abjeto. O reconhecimento social negativo, não só

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33 produz o Outro abjeto, mas expõe esses indivíduos a um quadro depreciativo da própria imagem, cultivando sentimentos extremamente negativos de si.

Quando esse reconhecimento social negativo se sedimenta historicamente, fazendo parte do quadro de representações de uma sociedade, ela se constitui numa rede de sentidos que naturaliza o que se pensa a respeito do grupo tornando assim muito difícil, até mesmo por meio de lutas sociais, esses grupos conseguirem mudanças na legislação, ou nas políticas sociais. Em outras palavras, diminuídos os obstáculos, esses grupos ainda sentem dificuldade em saírem de uma situação de imagem depreciativa de si mesmos (TAYLOR, 1993).

Dois aspectos se apresentam, portanto, como importantes, segundo Pereira (2004), na dinâmica de construção da identidade, a saber, a auto-imagem e o desejo de instauração da ordem. A construção do marginal, sinônimo de violência, que contagia não é algo que se dá unilateralmente e de fora. Consiste também do doloroso, lento e contínuo processo de se considerar abjeto e de naturalizar em si o contágio.

É, então, que me reporto à teia metonímica anunciada, já no início do trabalho. Esta sugere uma ligação contínua entre violência, medo, prevenção, estigmatização, afastamento, exclusão e construção de identidades/auto e alter caracterizações. Cada termo remetendo ao outro, em cadeia como parte e todo em determinado contexto.

1.4 - A expansão metonímica da violência e a configuração de identidades