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3.3 – Percepções à flor da pele: auto e alter caracterizações a partir da cor da pele

Proponho finalizar este capítulo fazendo uma reflexão sobre o elemento final da metonímia utilizada nos capítulos anteriores. Para tanto, retomo discussões do primeiro capítulo e relaciono às noções de cor/raça como signo, empreendidas com mais ênfase neste capítulo. Afirmei outrora que as ações que atendem sob a rubrica de preventivas são produtoras de, dentre outras coisas, exclusões e evitamentos sociais. Um dos desdobramentos dessa evitação é a formação de identidades e auto-percepções deterioradas e pejorativas.

Uma ressalva deve ser feita: a de que em não se tratando de realidades estanques, engessadas, e sim de situações dinâmicas construídas no âmbito das relações, essas auto identificações não são imóveis e a postura dos sujeitos não é a de debilidade e total aceitação do subjugo. Ao contrário, há resistências a esses mecanismos de poder e à exclusão social imposta. Esse é um dos motivos, como dito na outra seção, porque os conflitos emergem. É justamente na tentativa de gerar outros tipos de relação que não se baseiem na estrutura racializada que elas emergem com mais violência e objetividade, retirando suas máscaras. As falas seguintes retiradas das notícias de jornal sobre o caso Januário vão nortear nossa discussão sobre resistência, mas, principalmente, sobre auto- imagem e identidades.

“ele procurou a Afropress, junto com a mulher – a também funcionária do Museu de Arte Contemporânea da USP, Maria dos Remédios do Nascimento Santana, 41 anos - para falar sobre as cenas de terror e medo que viveu.”

Em dois momentos, nessa situação, percebe-se a resistência por parte de Januário, a saber, quando em seu cotidiano não aceita passivamente o lugar social identitário atribuído a ele discursivamente como o de alguém que não pode comprar um carro que represente posição social de elite, por exemplo. Ao sair da posição em que lhe é imposto ocupar, logo sofre reações diversas e violentas, no entanto, Januário, ainda assim, procura organismos de apoio a sua questão. Não se pode deixar de atribuir mérito individual e coletivo a essas resitências. O mérito coletivo se dá após anos de resistência de grupos militantes negros; de ações e reações tentando evidenciar e obter reconhecimento público da existência de relação e ações racistas na sociedade e do ganho institucional e coletivo de políticas e

100 ações como a legislação criminalizando o racismo; o reconhecimento oficial do governo de que o Brasil é um país racista; a implantação do sistema de cotas em muitas Universidades Públicas etc. Apesar do ainda incipiente alcance desses ganhos coletivos, eles, por um lado, estão disponibilizados socialmente para uso individual e, de outro, trouxeram discussões sobre racismo que outrora não se davam nos mesmos termos, incomodando e trazendo risco aos signos estruturais.

Após esse breve parêntese, necessário e importante, sobre resistência às estruturas sociais, significados signatários, mecanismos de poder etc voltemos a auto-identificação pela cor da pele. A fim de evitar a desordem e as impurezas advindas do contato social (DOUGLAS, 1976) a cor da pele é instituída como uma marca da impureza tendo como desdobramento a criminalização não só da cor, mas do ser que a carrega como significante. Percepções à flor da pele – título da seção - têm um sentido duplo, a saber, o de auto- percepções sentidas, vivenciadas e incorporadas a partir da experiência da pele e suas relações, mas também a do caráter tenso e cotidiano dessas percepções sentidas e vividas na maior parte do tempo no campo da hostilidade mascarada. Essa hostilidade mascarada marca diferenças e desigualdades, mas de forma dúbia e fluida. A noção de democracia racial e as ações preventivas vistas a partir da perspectiva adotada nesse texto, possuem um caráter ambivalente, ambíguo podendo até mesmo ser atribuída a elas a noção de duplo vínculo cunhada por Bateson (2000).

Baseada no caráter relacional, esse vínculo se constitui num padrão contraditório, cotidianamente reafirmado, produzindo sujeitos esquizofrênicos e até mesmo promovendo a destruição da auto-identificação. Informações diárias de que todos temos os mesmos direitos e valor para a sociedade, ou que a prevenção é mais humanitária e evita confrontos e violência, junto a também diárias comprovações sutisde que vocês, negros, não podem, ou não têm direito a ocupar tal cargo, comprar tal carro, frequentar determinados locais, ou ainda que vocês podem a qualquer momento ser considerado criminosos, expõem essas pessoas e as leva a sofrerem na pele a confusão psíquica de um double binde batesoniano. Correm o risco de terem afetadas profundamente sua auto-imagem. A auto imagem é importante para definir identidade. A marginalidade traz a idéia de culpa, de vítima social culpada e depreciação como forma de autoconstrução e auto-imagem.

“Toda vez que ele sai a Polícia vem atrás de mim. Esse carro é seu? Até no serviço a Polícia já me abordaram. Meu Deus, é porque ele é preto que não pode ter um carro EcoSport?”, se pergunta.

101 A exclusão solidifica identidades produzidas, por constituir o Outro pela evitação e subjugo. A identidade do grupo hegemônico é construída a partir da rejeição do Outro, e tal instituição se faz ao mesmo tempo em que se produz as identidades deterioradas. Em outras palavras, a construção de uma identidade deteriorada ou hegemônica dá-se de forma relacional, uma dependendo da outra para se solidificar, estabilizar. Esse processo se dá na classificação e afastamento das partes impuras do corpo social, afastando o perigo, o que implica excluir os indivíduos impuros, por colocar em risco o grupo hegemônico.

Segundo Douglas (1976), é preciso colocar limites, separar, castigar os sujeitos impuros, pois estes provocam perigo pela possibilidade de desordem. Kristeva (1986) afirma que é esse afastamento, exclusão que vai produzir o Outro, o distinto, o abjeto. O processo de construção das identidades tem relação, portanto, nesse caso, com o estabelecimento de limites sociais que podem ser visíveis, claros, mas também invisíveis, silenciosos e disfarçados em discursos, como o da democracia social e racial, por exemplo. Com isso, podemos afirmar que a construção das identidades se dá a partir da instituição de diferenças, no ato de construir o Outro a partir da exclusão.

“Acho que pela dor, ele se deitou no chão. Estava muito machucado, isso tudo na frente do meu filho”, conta Maria dos Remédios. “estava roubando o EcoSport e puxando moto, né? Começou aí a sessão de tortura, com cabeçadas, coronhadas e testadas", continuou”.

A diferenciação marcada entre o eu e o outro no processo de construção do Outro distinto é tão delimitada que Januário nem sequer é ouvido, e mesmo fazendo parte da mesma classe profissional, mencionando ser um ―igual‖, Januário é desacreditado, dominado, excluído e desconsiderado do grupo ao qual se identifica, qual seja, o grupo de seguranças. Em outras palavras, no processo de caracterização e identificação vários significantes concorrem na caracterização e identificação dos sujeitos. Um não exclui o outro, mas pode se sobressair. Neste caso, na caracterização da marginalidade, a cor, signo estruturante, sobressai para além de caracterizar, identificar e gerar descrédito.

"Eu podia ver os pés de várias pessoas enquanto estava no chão. É a segurança do Carrefour, alguém gritou. Eu falei: Graças a Deus, estou salvo. Tô em casa, graças a Deus. Foi então que um pisou na minha cabeça, e já foi me batendo com um soco. Eu dizia: houve um mal entendido. Eu também sou segurança.

A chegada da viatura com três policiais fez cessar os espancamentos, porém, não as humilhações. “Você tem cara de que tem pelo menos três passagens.

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Pode falar. Não nega. Confessa que não tem problema”, comentou um dos policiais militares, enquanto os seguranças desapareciam.

Concluo com a fala de Januário que resume o que ficou de sua experiência e o que fica daqui pra frente a contribuir na composição de sua imagem do que é “ser negro” na sociedade brasileira e com a afirmação de que o processo de se constituir não é unilateral e sim relacional. Consiste de um processo contínuo, lento e doloroso de naturalização do contágio, das hostilidades, da culpa etc.

“Eu estou com vários traumas. Se tem alguém atrás de mim, eu paro. Como se estivesse sendo perseguido. Durante a noite toda a hora acordo com pesadelo. Como é que não fazem com pessoas que fizeram alguma coisa. Acho que eles matam a pessoa batendo

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