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As festas e demais manifestações populares, embora cerceadas pelo poder público e religioso durante todo o período colonial e imperial, respeitando as particularidades e proporções de cada momento específico, sofrerão mudanças, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, em função da nova relação da Igreja Católica com a sociedade brasileira. Essa nova relação terá como maiores expoentes o fortalecimento de uma Igreja ultramontana e conservadora e a separação entre ela e o Estado, no final do século XIX, o que resultou em novos posicionamentos e práticas por parte da Igreja Católica. Em Pirenópolis, esse processo foi dinamicamente vivenciado pela sociedade local.

Se o século XIX é o ponto alto para essas festas, esse processo vai ser amplamente modificado no final deste período. A questão é que já na segunda metade do século XIX a Igreja Católica irá modificar as suas prática, o que vai também alterar sua relação de tolerância com as diversas manifestações festivas existentes no Brasil, calcadas na religiosidade popular. Algumas orientações vindas do alto clero católico determinaram essas mudanças.

Depois de um início liberalizante, o pontificado de Pio XI (1846- 1878) a partir de 1848, tomou novos rumos, reatando o fio de uma tradição por um momento interrompida e que se ligava à orientação de seu antecessor Gregório XVI (1831- 1846), conservador por excelência, que condenava a participação de eclesiásticos na vida pública, assim como a interferência de monarcas nas questões religiosas.117 A expressão doutrinária fundamental deste estado de espírito é a encíclica Quanta Cura (1864), tendo

como anexo o famoso “Syllabus”, logo seguido pelo Concílio Vaticano I (1869), que definiu a infalibilidade pontifícia. As duas reações julgavam combater males extremos, como o liberalismo e o padroado. Dado o caráter extremista dessas iniciativas foram elas consideradas “ultramontanas” pelos seus adversários.118Entre diversos aspectos, defendia a retomada da preponderância da autoridade espiritual da Igreja sobre a sociedade civil, e esta será a orientação do Vaticano, a partir deste período.

Durante as épocas colonial e imperial, a união entre Igreja e Estado, mediante o padroado119,garantiu à Igreja uma significativa parcela de poder, ainda

que estivesse numa posição submissa. Em troca de manter a unidade e coesão social do Império luso, a Igreja recebia do Estado português não só o direito de monopolizar a prática religiosa, como também o suporte material e financeiro para sua sustentação e propagação no Brasil. Na segunda metade do século XIX, essa relação vai mudar em função de uma maior vinculação da Igreja com Roma.

Para Fragoso, o pensamento da Igreja se dividia: de um lado, os ultramontanos120, que seguiam fielmente a orientação do magistério da Igreja, e de outro,

os liberais, segundo os quais a Igreja devia desvincular-se da intolerância da sede romana, sem ser, tampouco, tutora do Estado. A partir do que se chamou de consolidação do segundo reinado (1840-1848), a posição ultramontana irá experimentar mais comodidade por causa da harmonia dos objetivos da Igreja com os interesses imperiais, uma vez que é

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BARROS, Roque Spencer. Vida Religiosa In O Brasil Monárquico tomo II. (Org) HOLANDA, Sérgio Buarque de. Rio de janeiro, Bertrand do Brasil/. 1997 p. 326

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SANTOS, Miguel Archângelo Nogueira dos. Missionários Redentoristas Alemães em Goiás, uma

participação nos movimentos de reforma e restauração católicas (1984-1944) . Vol I, São Paulo , USP, Tese

de doutoramento, 1984 p. 190-191

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O padroado régio era um acordo entre a Igreja Católica e O Império Português, no qual o monarca possuía direitos de conferir benefícios eclesiásticos. Durou, no Brasil, todo o período colonial e imperial só

desaparecendo com a separação Estado-Igreja ,no final do século XIX com a República (1889)

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Defensores de uma Doutrina ou sistema dos que são favoráveis ao poder absoluto do papa, quer espiritual, quer temporal.

nesse momento que o imperador assume, enfim, as rédeas do governo, e o centralismo será completado com a subida do partido conservador favorável à monarquia centralizadora.121

Durante o apogeu do Império, assinalado por Fragoso entre os anos de 1848 e 1868, irá ocorrer uma maior hibridização entre as correntes de pensamento clerical. Se, de um lado, esse período é marcado pela consolidação de uma “unidade nacional”, de outro, a segunda metade do século XIX será um campo fértil para as idéias liberais. Revoluções liberais da França e Itália, princípio efetivo da industrialização brasileira, ferrovias, telégrafos, proibição do tráfico, política do café e corrente imigratória serão os principais fatores que vão proporcionar as mudanças desse período.

Esse momento, apontado acima, será de profunda fermentação para a Igreja, em que se desenvolvia, progressivamente, sobretudo no episcopado, a consciência da missão específica da Igreja, bem como de sua autonomia face ao governo temporal. O momento, marcado pelo apogeu do Império, bem como da idéia de um governo forte e centralizado, irá provocar alterações no campo espiritual. A Igreja irá reagir contra a idéia antagônica que assumia grande expressão: o liberalismo. Embora estivesse a favor de um governo forte e centralizante e também estivesse convencida das comodidades da união sagrada entre o “altar e o trono”, recusava-se a continuar numa posição de subserviência diante do poder temporal.122

A explosão do conflito entre a Igreja e o Estado, que culminou com a separação entre ambos no final do século XIX, mais conhecido pela historiografia como “questão religiosa”,123 na verdade foi a gota d’água para uma situação de tensão e conflitos que vinham se desenrolado por várias décadas. Para Fragoso, a interferência do

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FRAGOSO, Hugo. A Igreja na Formação do Estado Liberal. (1840-1875) In: História da Igreja no Brasil Tomo II/2 Segunda Época – Século XIX. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 149.

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FRAGOSO, Hugo, op. cit., p. 151.

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Ver BARROS, Roque Spencer M. de Barros. Vida Religiosa e Questão Religiosa In: História Geral da civilização Brasileira. Org. HOLANDA, Sérgio Buarque. O Brasil Monárquico. Tomo II 4 º volume p. 317 à 365.

Império nas divergências entre Igreja Católica e maçonaria foi uma transplantação para o Brasil da controvérsia liberal e ultramontana que agitava os partidos católicos da Europa, além de ser uma união híbrida entre uma Igreja ultramontana e um Estado liberal.

Essa maior vinculação do episcopado brasileiro com Roma, na segunda metade do século XIX, refletia os anseios de reforma que nasciam de uma situação crítica que atingia a vida sacerdotal, como, por exemplo, a deficiência de formação sacerdotal e a “falta” de evangelização do povo.124 A situação, de fato, não era favorável, pois, de um modo geral, o clero brasileiro sofria as conseqüências dessa crise estrutural. Diminuía o número de padres, ao passo que as diferenças intelectuais desses párocos, de uma região para outra, eram muito grandes. Eram constantes a violação do celibato e as queixas pela falta de zelo de tantos sacerdotes em suas paróquias.

As reformas, na contrapartida, também eram almejadas pelos segmentos liberais da Igreja Católica. Um dos maiores expoentes desta tendência foi o Padre Diogo Feijó125. Defensor da criação de uma Igreja nacional, inteiramente livre de Roma, liderava o projeto de uma reforma religiosa que desse melhores condições ao clero de exercer suas atividades. Propunha o moralismo e a austeridade através de várias medidas: a preparação dos sacerdotes para serem educadores, formadores e moralizadores do povo, dentro de uma perspectiva de educação iluminista, tanto no aspecto das letras como no da inovação técnica; a expulsão dos frades estrangeiros, vistos como “inimigos das luzes do século” e o fim do celibato, visando adaptar o clero à realidade do país. Era uma concepção de Catolicismo que procurava se integrar às “modernas” concepções iluministas.

A medida que se aproximava o final do século XIX, as posições ultramontanas dentro da elite eclesiástica tornaram-se dominantes e cada vez mais se

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radicalizaram, acompanhando o movimento católico romano antiliberal. Isso seria apenas aparentemente contraditório, pois os princípios conservadores do Catolicismo ultramontano serviriam de melhor fundamentação e justificativa para a ordem vigente do que os princípios liberais e as idéias do Catolicismo à altura do século das luzes.

Fragoso interpretou que a alta hierarquia da Igreja também simpatizava muito mais com a “centralização pretendida pela monarquia do que com o “autonomismo” da regência, embora se recusasse a uma total subordinação ao poder temporal.

Num período de ambigüidades, as festas vão ser vistas também ambigüamente: de um lado, serão expressão da unidade e identidade nacional, de outro, as festas e as procissões católicas serão consideradas pelos defensores das “novas” idéias como registros do “atraso” do país e do grau de superstição de sua população. Por isso recebiam muitos ataques por parte das autoridades municipais e eclesiásticas.126

Esse movimento reformador da prática católica no século XIX, principalmente na segunda metade, liderado pelos segmentos ultramontanos, pode ser chamado de romanização. Entre outras questões, buscava retomar as determinações tridentinas,127 sacralizar os locais de culto, moralizar o clero, reforçar a estrutura hierárquica da Igreja e diminuir o poder dos leigos organizados. As principais ações foram junto aos seminários, com o objetivo de implementar uma teologia a serviço da formação pastoral, a partir da melhora e ampliação da formação do clero brasileiro, do incentivo à vinda de ordens estrangeiras para suprir as carências nacionais bem como de iniciativas para conseguir mais fundos, uma vez que, com a separação do Estado, muitas doações públicas deixaram de ser feitas.

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Regente do Brasil no anos de 1835 a 1837.

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ABREU, Marta. Op. cit

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As festas e os festeiros iriam sentir bastante os efeitos dessas mudanças. E, em Goiás, esse processo vai instituir inúmeras normas e regulamentos para estes festejos.