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A política de patrimonialização no Brasil é um longo processo, que tem início no século XX, a partir de uma série de iniciativas isoladas, que vão sendo amadurecidas e anos mais tarde integrarão uma proposta política nacional. Essa política insere-se em um complexo quadro político- social que vem ao encontro de novas idéias e concepções sobre políticas públicas e culturais. A própria concepção de patrimônio, que foi sendo modificada com o tempo, surgia em um momento no qual os

valores e identidades nacionais estavam em voga. As primeiras leis que visaram a proteção do patrimônio cultural do país partiram de Estados como Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, nos quais havia algum interesse em preservar monumentos e cidades ameaçados pelas transformações urbanas do período. No entanto, essas leis estaduais não foram suficientes para assegurar proteção aos monumentos históricos e artísticos nem mesmo em seus respectivos territórios uma vez que na legislação brasileira o direito de propriedade estava definido pela Constituição Federal e Ccódigo Civil, sem que a matéria pudesse ser modificada por iniciativa estadual.243 Isso gerava inconstitucionalidade, pois os projetos de leis estaduais atentavam contra a integridade do patrimônio, entendido ainda, na maioria dos casos, como propriedade privada.

A primeira lei federal sobre o patrimônio só foi promulgada três anos após a revolução de 1930 e, mesmo restrita, representou o ponto de partida de uma série de outras medidas que viriam a seguir, além de erigir Ouro Preto a monumento nacional.

“Considerando que é dever do poder público defender o patrimônio artístico da Nação e que fazem parte das tradições de um povo os lugares em que se realizaram os grandes feitos de sua história.”244

Um ano depois, um novo decreto autorizava o início da organização de um serviço de proteção aos monumentos históricos e às obras de arte tradicionais do país, aprovando um novo regulamento para o Museu Histórico Nacional. Após a retomada de seus trabalhos, a Assembléia Constituinte, em 1934, incluirá no texto da nova constituição artigo referente ao patrimônio. Gustavo

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SPHAN/PRO-MEMÓRIA. Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: Uma trajetória. MEC, Brasília: 1980 p.p. 14-15.

Capanema, Ministro da Educação de 1934 a 1945, será responsável em grande medida por novos projetos na área, visto que a questão do patrimônio estava vinculada ao seu ministério. Mário de Andrade, legítimo representante do movimento modernista nos anos 20 amplamente envolvido com as questões culturais em seu tempo, era diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, nos anos 30, quando foi solicitado a organizar projeto referente ao patrimônio nacional. O projeto elaborado por ele revelava a sua concepção de cultura e sociedade ao definir como patrimônio artístico nacional todas as obras de arte pura ou arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes a organismos públicos e particulares. Apresentava-se aí a forma como a cultura nacional será percebida no período, um mosaico que representava o Brasil. O espaço reservado aos aspectos da cultura entendida como popular era bastante amplo. O folclore, como expressão desta cultura, também compunha o projeto, sendo que deste eram considerados como parte a música popular, os contos, as histórias, lendas, superstições, a medicina, a culinária, os ditos e as danças dramáticas, entre outras manifestações. O projeto elaborado por Mário de Andrade245, que fixava definições preliminares sobre patrimônio e até um plano qüinqüenal de montagem e funcionamento do serviço, envolvendo os mais diversos aspectos burocráticos e organizacionais do patrimônio nacional constituiu grande parte das emendas constitucionais do Ministério da Educação que criava o SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), aprovado pelo presidente Getúlio Vargas, em 1936. Finalmente, em 1937 é promulgado Decreto-Lei organizando a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

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Decreto nº 22.928, de 12 de julho de 1933 In: SPHAN/PRO-MEMÓRIA op. cit p. 89

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Anteprojeto elaborado por Mário de Andrade a pedido do ministro da educação e saúde, Gustavo Capanema In: SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA, op. cit p.p 90-106.

Outros textos legislativos relacionaram-se com o Decreto nº 25, de 1937, que organizava o serviço do patrimônio nacional e de certa forma ampliava seus limites. Para citar alguns exemplos, nos anos 40 fora promulgado o novo Código Penal que estabelecia sanções para as infrações de normas da legislação de proteção ao patrimônio histórico e artístico. Também em 1940, um outro decreto-lei dispunha sobre a aceitação e aplicação de donativos particulares pelo serviço. Em 21 de junho de 1941, mais um decreto atualizava disposições legais sobre desapropriações, em casos de utilidade pública, contemplando entre esses casos “a preservação e conservação de monumentos isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais.246 Terminado o regime do Estado Novo, a nova Constituição, promulgada em 1946, estabelecia em seu capítulo II a continuidade da responsabilidade da proteção do poder público sobre as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico. E já no início deste ano citado outro decreto-lei transforma o SPHAN em diretoria ( DPHAN), criando quatro distritos com sedes em Recife, Salvador Belo Horizonte e São Paulo além de subordinar à diretoria o Museu da Inconfidência, o Museu das missões e o Museu do Ouro.247

É relevante o papel que os intelectuais modernistas tiveram na elaboração de textos legislativos e na administração inicial deste órgão, porquanto esse movimento buscava apreender e revalorizar os elementos constitutivos da identidade cultural do país. Porém é importante compreender o quadro no qual se inseria a criação e instituição do SPHAN, a partir de e para além do movimento modernista dos anos 20/30, pois existiam no contexto desse período muitos aspectos que influenciaram o seu surgimento. Assim, torna-se fundamental nos atermos a alguns aspectos da política varguista

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É justamente durante o governo de Getúlio Vargas, quem conduziu politicamente o Brasil na maior parte dos anos 30 e 40, que ocorre a implementação de políticas públicas e culturais que tinham a valorização do passado como meta. Ângela de Castro Gomes acredita que, especificamente no caso do Estado Novo, havia um esforço evidente para articular iniciativas estatais de política cultural com a conformação de uma cultura política nacional, na qual a leitura do passado ganharia espaços privilegiados. No entanto, o passado aparecia mais como um fantasma a ser enfrentado, como condição para deixar de assombrar e poluir o “espírito nacional”, constructo ao mesmo tempo buscado e criado por nossa intelectualidade, encontrado e criado nos costumes da tradição, da religião, da raça, da língua e da memória do passado do povo.

O Estado Novo assume uma perspectiva historicista, impondo uma valorização do passado, numa perspectiva de interpretar uma realidade social. Nesta postulação de “passado “, afirma Gomes, concepções estavam sendo propostas e convivendo no discurso da época. A primeira seria a de um passado ligado à cultura popular e que, manifestando-se em um conjunto de tradições, convivia com o presente, sendo a-histórico, reafirmando-se uma idéia de tempo não-datado. A segunda seria a de um passado histórico, ligado a uma idéia de tempo linear, cronológico, datado e referido à memória de fatos e personagens únicos, existentes numa sucessão, à qual é vedado conviver com o presente. Assim, se o presente permanecia ancorado no passado como tradição, durante os anos do Estado Novo fazia-se um esforço consciente para redescobrir o passado histórico enquanto realidade antecedente e passível de compreensão. Um passado histórico que não podia, como tradição, coexistir com o presente, mas que era uma fonte de explicação

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para o novo.248 Para Cunha, poder-se-ia entender que a separação entre história (eventos) e folclore (tradição), efetuada neste período, acompanhou ou adequou-se a um modelo “técnico” de gestão ou concepção dos conflitos e problemas, que caracterizou a intervenção do Estado Novo no âmbito das relações de trabalho e de outras instâncias da vida social.249

Nesse sentido podemos entender a criação e institucionalização do SPHAN como parte de uma política que tinha no passado, na memória, e no patrimônio elementos importantes para a construção de novas diretrizes governamentais.

A política patrimonialista vai experimentar outras fases, principalmente a partir dos anos 60, e, em termos legislativos, o Decreto nº 66.967, de 27 de julho de 1970, que transforma a DPHAN em Instituto (IPHAN), é representativo dessa política patrimonialista.250Inicia-se também uma nova política de tombamentos, dirigida mais para a preservação de conjuntos, seriamente comprometidos pelo desenvolvimento urbanístico e viário do país, com a industrialização e sobretudo com a valorização imobiliária. A construção de estradas para melhor acesso a lugares antes desconhecidos irá impulsionar o turismo em várias dessas regiões. Exemplos podem ser dados como é o caso de núcleos litorâneas do Nordeste, de Outro Preto (MG), de Paraty (RJ), de Porto Seguro (BA) e também de Pirenópolis (GO) tal como analisaremos neste capítulo.

Por todas essas questões, técnicos do patrimônio solicitarão auxílio e orientação de técnicos internacionais dado que, em relação ao turismo, o

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GOMES, Angela de Castro. A “Cultura Histórica” do Estado Novo. Mesa Redonda: Cidadania e projetos culturais: historiadores e folcloristas no Brasil (XIX simpósio nacional da ANPUH, Belo Horizonte, 1997. In:

Projeto História, São Paulo: nº 16, Fev/98, p.121-141.

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CUNHA, Maria Clementina Pereira. Folcloristas e Historiadores no Brasil: Pontos para um debate. Mesa Redonda : Cidadania e projetos culturais; Historiadores e folcloristas no Brasil. In: Projeto História, São Paulo: nº16, Fev 1998 p. 167-176.

Brasil ainda não possuía experiências consolidadas. A partir daí, vários grupos estarão articulados com a questão do patrimônio como a SUDENE251e a EMBRATUR252, com a finalidade de ampliar a concepção de preservação para possibilitar também a geração de renda como fruto de benefícios a partir do incremento de atividades sócioeconômicas dinamizadas com o tombamento e restauração de monumentos e conjuntos. Em 1973, foi criado o programa integrado de reconstrução das cidades históricas do Nordeste, com sua utilização para fins turísticos. Em 1975, a proposta de expansão do programa estende-se para o Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Com a finalidade de obter melhor integração entre o ato de preservar e o de utilizar o bem cultural passou-se a exigir a apresentação prévia do programa de restauração e preservação, o rol dos monumentos a serem restaurados, o cronograma de execução, os roteiros turísticos e as fontes de recursos. Caminhava-se no sentido da formação humana, da geração de renda a partir do uso dos monumentos históricos encarado como elementos dinâmicos de uma ativa e presente trajetória histórica.

Em 1975, será criado o CNRC ( Centro Nacional de Referência Cultural), um sistema referencial básico a ser empregado na descrição e análise da dinâmica cultural brasileira. Esse órgão projetou vários trabalhos que visavam valorizar comunidades e pequenos grupos, envolvendo-os no processo de pesquisa. Os programas de estudo basicamente se dividiram entre o artesanato, levantamentos sócio- culturais, a história da ciência e da tecnologia do Brasil e levantamentos de documentação sobre o Brasil. 253 Em 1978, o CNRC será incorporado ao IPHAN, e a partir daí as atividades serão somadas, sendo que o instituto do patrimônio, além das questões básicas com as quais já se ocupava, passou a desenvolver uma série de

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SPHAN/PRO-MEMÓRIA op. cit p.p. 31

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Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste.

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projetos de valorização do artesanato e de preservação de tecnologias patrimoniais e endógenas, entre outros, além do PCH ( Programa de Cidades Históricas ) que objetivava a revitalização de núcleos históricos urbanos.

Contudo, a política de patrimonialização esbarrou em vários limites, como a falta de verbas e as dificuldades próprias do sistema burocrático, com o qual muito se envolveu.

Discutiremos a seguir como esse processo aconteceu em Pirenópolis.