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“Pesquisa, salvamento, exaltação da memória coletiva não mais nos acontecimentos mas ao longo do tempo, busca dessa memória menos nos textos do que nas palavras, nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; é uma conversão do olhar histórico...”

(Jacques Le Goff, História & Memória)

A festa do Divino em Pirenópolis foi modificando-se, ao longo do tempo recortado neste trabalho, recriando os seus símbolos, personagens e eventos. Por um lado, essa recriação demonstrou que toda manifestação coletiva é tão dinâmica quanto a própria sociedade que a organiza e dela participa. Por outro lado, estas festas revelaram possuir elementos que mudam mais lentamente e como parte de uma “tradição” local perpassam épocas e se transformam em lugares de memória assim como Pierre Nora242 conceituou. Os lugares de memória seriam aqueles elementos que a imaginação coletiva dos grupos investe de uma aura simbólica, de modo que adquirem diversos significados para eles. Aproximando esta definição de Nora aos festejos de Pirenópolis, em torno do culto ao Espírito Santo, procuramos estabelecer uma íntima relação entre a construção de uma memória local em torno dessas festas e seus respectivos símbolos e eventos eleitos por essa sociedade. Esta concepção de história de Nora é compartilhada por Le Goff, que atribui isso a uma revolução da memória, que prima por renunciar a uma temporalidade linear em proveito dos tempos vividos múltiplos, nos quais o individual e o coletivo estão enraizados e fazem diferentes usos dessa memória.243

Alguns eventos das festas mudam lentamente, outros mudam de acordo com a dinâmica da sociedade. Neste capítulo, dialogaremos com alguns autores que

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NORA, Pierre. Entre Memória e História : A Problemática dos lugares. In; Projeto-História

perceberam como a dinâmica da cultura de determinadas sociedades lida com a tradição. O primeiro autor é Hobsbawm, que, a partir do conceito de tradições inventadas, acredita que as tradições não se referem a um passado longínquo. Elas fazem parte de acordos e definições entre os grupos sociais envolvidos e são modificadas e recriadas de modo que ofereçam algum sentido para eles, além de serem indícios de mudanças importantes na sociedade em questão.244 Giddéns245 também defende a idéia de que as tradições são dinâmicas e acredita que elas estão ligadas ao ritual e que têm suas conexões com a solidariedade social; dessa forma, não aceita mecanicamente a continuidade de preceitos. Este autor nos possibilita a aproximação de Halbwachs, que considera que a memória é reconstruída, tendo como base o presente, estabelecendo com o passado uma relação dinâmica e seletiva. Esta concepção de Halbwachs reforça nossas premissas, uma vez que as tradições estão intimamente ligadas com a memória coletiva. Canclini,246 vem para somar nessa discussão, uma vez que acredita que as culturas tradicionais se desenvolveram, transformando-se.

Em Pirenópolis, a festa do Divino será organizada de modo que consiga sintetizar uma amálgama de interesses diversos envolvendo grupos familiares, políticos e eclesiásticos e, ao mesmo tempo, simbolizar a identidade cultural da cidade, redefinida principalmente a partir das primeiras décadas do século XX, quando o cenário regional sofrerá uma nova configuração de grupos e estratégias políticas. A memória da festa pulverizou-se nos mais diferentes eventos que compõem a programação dos festejos. Assim, temos a impressão de uma festa calcada em muitas outras festas particularizadas,

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LE GOFF, Jacques. História & Memória. Tradução Bernardo Leitão, 3ª edição. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1994. p. 473.

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HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. São Paulo, Paz e Terra/História, 1984. p. 20

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GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: Modernização Reflexiva. Política,

Tradição e Estética na Ordem Social Moderna. BECK, Ulrich et alli. Tradução de Magda Lopes. São

Paulo: UNESP, 1994.

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CANCLINI, Néstor GarciaCulturas Híbridas. Tradução de Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa, 2ª ed. São Paulo: Edusp,1998.

umas até com vida própria, como se tornou o caso da Cavalhada. Por outro lado, estes eventos estiveram e estão totalmente imbricados numa simbiose tornando-se complexo estabelecer fronteiras entre o sagrado e o profano, o moderno e o tradicional, o público e o privado.

Neste capítulo propomo-nos a analisar algumas dessas mudanças ocorridas na festa do Divino de Pirenópolis principalmente a partir dos anos de 1970, período em que a festa sofre grandes reconfigurações, em função de novas características assumidas, algumas já mencionadas neste trabalho. Este momento de mudanças provocou a redefinição de algumas características rituais e simbólicas da festa, indicando que esse evento precisava adaptar-se ao novo contexto de Pirenópolis. Essas alterações na festa foram articuladas pelos próprios grupos envolvidos, famílias locais, Igreja e poder público, uma vez que para eles, a festa tinha sido tão dinâmica como a sua própria vida.

Um recurso, entre outras fontes das quais já fizemos uso, serão as fontes orais. Em nosso caso, elaboramos as entrevistas, tentando vislumbrar os elementos que permaneceram nos discursos locais entre pessoas de uma mesma família ou não. Observamos claramente que vários elementos, conceitos e opiniões sobre a festa foram gestados em períodos anteriores ao depoente, que se encarregou de sua reelaboração através do “filtro” da memória. Procuramos direcionar os questionamentos para a experiência individual do depoente, pois dessa forma ele também estaria depondo sobre a sua experiência social, uma vez que a memória, segundo Halbwacs,247 embora talhada de experiências individuais, é sempre coletiva, pois o indivíduo no processo de rememoração prioriza os aspectos vivenciados coletivamente, pela sua natureza social. Evidenciando esses propósitos e procurando apreender noções e percepções da festa em tempos mais remotos, valorizamos o depoimento dos velhos em nosso trabalho. Em grande parte das

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entrevistas que realizamos priorizamos depoentes com mais de 60 anos. Isto nos permitiu compor outras temporalidades para a festa do Divino Espírito Santo que estiveram entrelaçadas com as memórias individuais dessas pessoas.

Neste capítulo, optamos, inicialmente, por identificar alguns guardiães da memória local e as formas através das quais a festa do Divino tem sido lembrada e reelaborada por esta sociedade e identificamos aí alguns elementos dessa tradição oral local em torno dos festejos do Divino Espírito Santo. Em seguida, analisamos parte dessa dinâmica cultural festiva e como a memória coletiva local se encarregou de reelaborar diversos sentidos para ela. Por fim enfocamos a cavalhada por ter sido um dos eventos da festa que mais se recriaram.