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A DOMINAÇÃO MASCULINA E SUAS IMPLICAÇÕES NO CORPO E NO DESEJO DA MULHER

2 HISTÓRIA DAS PROFISSIONAIS DO SEXO

4.1 A DOMINAÇÃO MASCULINA E SUAS IMPLICAÇÕES NO CORPO E NO DESEJO DA MULHER

Bourdieu (2002) apresenta essa repressão como um modo de pensamento incorporado à esquemas inconscientes de percepção e apreciação das estruturas históricas da ordem masculina, como anteriormente apresentado. São “modos de pensamento que são eles próprios produto da dominação” (BOURDIEU, 2002, p.13), onde as diferenças sexuais permanecem imersas em um conjunto de oposições que organizam todo o cosmos, os atributos e atos sexuais sobrecarregados de determinações antropológicas e cosmológicas.

O senso de cosmologia sexualizada “se enraíza em uma topologia sexual do corpo socializado, de seus movimentos e seus deslocamentos, imediatamente revestidos de significação social” (BOURDIEU, 2002 p.16) impondo características próprias de cada gênero, diferenciando o forte do fraco, o alto do baixo, o duro do mole, o público do privado, ou seja, o paradoxismo próprio daquilo que pertence ou não ao masculino e ao feminino, contribuindo para a formação do habitus, naturalizando tais processos de diferenciação socialmente construídas entre os sexos, como naturais, evidentes, adquiriando assim, um reconhecimento de legitimação social.

“A força de ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõem-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la” (BOURDIEU, 2002, p. 18). O autor esclarece que há uma imensa máquina simbólica que tem como objetivo impôr uma ordem social, sendo esta ratificada pela divisão social do trabalho, onde a distribuição das atividades se dá conforme o sexo, e é bastante restrita atribuindo a cada um dos dois sexos tarefas bastantes distintas, segundo sua ordem local, seu momento e instrumentos peculiares. De toda forma, ao homem é reservado posições mais nobres, como o lugar na assembléia, enquanto à mulher cabe os cuidados domésticos, alicerçando a dominação masculina. Assim, “o mundo social constrói o

corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes” (BOURDIEU, 2002, p. 18).

O autor apresenta o mundo social através de um programa social de percepção incorporado, instituído à todas as coisas do mundo

e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, como a divisão do trabalho na realidade da ordem social. A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho (BOURDIEU, 2002, p. 18, 20).

Sabendo que o princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas, é possível compreender que até o Renascimento não houvesse terminologia anatômica para descrever o sexo da mulher, que é representado como o inverso do homem, onde são vistas duas variantes, uma superior, outra inferior. Há uma tentativa de “encontrar no corpo da mulher a justificativa do estatuto social que lhes é imposto, apelando para oposições tradicionais entre o interior e o exterior, a sensibilidade e a razão, a passividade e a atividade” (BOURDIEU, 2002, p. 24).

Bourdieu (2002) apresenta os signos que formam fronteiras delimitadoras do corpo feminino, como a cintura por exemplo e todos os laços e amarras à ela colocada como signo de clausura, barreira que fecha o corpo feminino – como os braços cruzados sobre o peito, pernas unidas, vestes amarradas – e constitui uma barreira sagrada que protege a vagina, socialmente constituída como objeto sagrado. O interessante é que as mulheres que reproduzem esses signos deixando ver apenas suas partes públicas e nobres, – face, fronte, boca –, escondendo as partes privadas e vergonhosas, e possuem a postura correta do corpo – carregadas de significação moral -, são consideradas as mais virtuosas, puras e castas, estando mais aptas ao matrimônio, tido como a base de toda ordem social, cuja função é a perpetuação ou

o aumento do capital simbólico em poder dos homens.

A incorporação da dominação faz-se também através do consentimento das mulheres, já que simbolicamente voltadas à resignação e à discrição, elas alimentam sua própria situação de dominadas, como por exemplo através da busca de um homem que ateste socialmente de fato sua dignidade e superioridade sobre ela, apresentando assim uma submissão voluntária, livre, deliberada, ou até mesmo calculada (BOURDIEU, 2002).

Nesse sentido, aquelas que buscam uma linha de fuga, através da profissão por exemplo, são consideradas homens inferiores e só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua própria força, ou aceitando se apagar ou, pelo menos, negando o poder que só se pode exercer por procuração. De tal maneira, o autor expõe que “as armas do fraco são sempre fracas” (BOURDIEU, 2002, p. 43), e insuficientes para subverter realmente a relação de dominação. Por isso, as mulheres recorrem a estratégias míticas – que vão da magia, da astúcia, da mentira ou da passividade, ao amor possessivo que culpabiliza e vitimiza-a – estabelecendo um ciclo de retroalimentação da lógica da maldição, onde, façam o que fizerem, as mulheres são vistas como seres diabólicos, condenadas a dar provas de sua malignidade, e que acabam por confirmar as representações que ela invoca a seu favor.

Assim, a lógica paradoxal da dominação masculina e da submissão feminina, que se pode dizer, ao mesmo tempo e sem contradição,

espontânea e extorquida, só pode ser compreendida se nos mativermos

atentos aos efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impõe (BOURDIEU, 2002, p. 50).

Esses efeitos duradouros que a ordem masculina exerce sobre os corpos e que se constitui como uma violência simbólica, não estão circunscritos apenas no imaginário ou na consciência, não sendo uma questão de consentimento, persuasão, sedução ou acordo explícito entre os dominados (mulheres) e dominantes (homens). A dominação se dá através de um sistema de estruturas

duradouramente inscritas nas coisas e nos corpos e que ganha aderência a partir das “limitações das possibilidades de pensamento e ação que a dominação impõe aos oprimidos e da invasão de sua consciência pelo poder onipresente dos homens” (BOURDIEU, 2002, p. 54).

O autor apresenta que o movimento feminista que convoca uma revolução simbólica rompendo assim, tais habitus, não pode ser reduzido a uma simples conversão das consciências e vontades:

Pelo fato de o fundamento da volência simbólica residir não nas consciências mistificadas que bastaria esclarecer, e sim nas disposições modeladas pelas estruturas de dominação que as produzem, só se pode chegar a uma ruptura da relação de cumplicidade que as vítimas da dominação simbólica têm com os dominantes com uma trnsformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os dominados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes. A violência simbólica não se processa através de um ato de conhecimento e de desconhecimento prático, ato este que se efetiva aquém da consciência e da vontade e que confere seu “poder hipnótico” a todas as suas manifestações, injunções, sugestões, seduções, ameaças, censuras, ordens ou chamadas à ordem. Mas uma relação de dominação que só funciona por meio dessa cumplicidade de tendências depende, profundamente, para sua perpetuação e para sua transformação, da perpetuação ou da transformação das estruturas de que tais disposições são resultantes (particularmente da estrutura de um mercado de bens simbólicos cuja lei fundamental é que as mulheres nele são tratadas como objetos que circulam de baixo pra cima) (BOURDIEU, 2002, p. 54-55).

O princípio de inferioridade e da exclusão da mulher é amplificado e ratificado pelo sistema mítico-ritual que divide todo o universo, criando a lógica “do sujeito e do objeto, do agente e do instrumento, instaurada entre o homem e a mulher no terreno das trocas simbólicas, das relações de produção e reprodução do capital simbólico, cujo dispositivo central é o mercado matrimonial” (BOURDIEU, 2002, p. 55). Nesse sentido, o corpo feminino é reduzido à instrumento simbólico da política masculina, sendo “literalmente, um objeto que pode ser avaliado e intercambiado, circulando entre os homens ao mesmo título que uma moeda” (BOURDIEU, 2002, p. 56).

suspeita; valores que, investidos nas trocas [matrimoniais], se podem produzir alianças , isto é, capital social e aliados prestigiosos” (BOURDIEU, 2002, p. 58), é preciso preservar seu valor simbólico para troca, ou seja, preservar sua reputação, sobretudo sua castidade (o que preservaria assim, toda a honra dos irmãos e pais e a linhagem dos esposos, através da prole).

Tavez seja a prostituição e todo o mercado que a cerca, incluindo nesse caso a não regulamentação, e acima de tudo, o não reconhecimento legítimo das prostitutas - mas a sua manutenção social marginalizada – uma estratégia de perpetuação do capital simbólico masculino, uma vez que os homens são testados a afirmar sua virilidade diante dos demais, estando em depêndencia com relação ao julgamento do grupo viril. Além disso, a prostituição seria eficaz no sentido de preservar as “mulheres legítimas” castas (BOURDIEU, 2002), uma vez que oferece ao erotismo masculino, através do dinheiro, a realização do gozo através do exercício brutal de poder sobre os corpos reduzidos a objetos.