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Dos Conselhos Comunitários e Populares aos Conselhos Gestores

3. CONSELHOS GESTORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS

3.1 Dos Conselhos Comunitários e Populares aos Conselhos Gestores

No capítulo anterior, vimos que o início da década de 1960 foi de grande efervescência social. O campo democrático popular vinha se desenvolvendo desde o governo Vargas, principalmente, através das organizações sindicais. Durante o governo Goulart, ocorreu a emersão das forças democráticas populares no cenário político formada por amplas camadas da classe trabalhadora, tanto urbana quanto rural, além de segmentos pequeno-burgueses com destaque para os intelectuais da época, e parcelas da Igreja Católica e das Forças Armadas. Era um movimento que defendiam as reformas de base e reivindicavam maior participação política da sociedade civil nas arenas decisórias para disputar projetos alternativos. Na

perspectiva de resolver os problemas sociais internos do país, o governo de João Goulart abriu espaços importantes dentro do aparelho do Estado para protagonistas políticos comprometidos com os interesses populares, propiciando uma nova experiência de democracia para o povo brasileiro, através da participação política das classes subalternas, dos movimentos sociais, sindicatos, estudantes e o PCB, numa tentativa de ampla reestruturação do padrão de desenvolvimento econômico e uma profunda democratização da sociedade e do Estado, apesar de não contestar a ordem capitalista. Entretanto, esta participação política das classes subalternas e as propostas de reformas socais no governo de Goulart não agradaram a burguesia brasileira que estabeleceram a sua autocracia burguesa através da ditadura militar em abril de 1964 (FERNANDES, 1974; NETTO, 2015).

Apesar desta derrota das forças democráticas nacionais e populares, o período pré- 1964 demonstrou o anseio da sociedade civil organizada em participar dos espaços de decisão política em busca de melhoria das condições de vida no país. A partir do golpe, a sociedade civil foi perdendo cada vez mais o seu potencial revolucionário diante da forte repressão sofrida, através do AI-5, como analisado. Entretanto, o governo militar ao final da década de 1960, permitiu que vários conselhos comunitários fossem criados para atuarem junto à administração municipal com o objetivo de incorporar ao seu governo reinvindicações populares. Para Tatagiba (2002), os conselhos comunitários se caracterizavam por serem espaços em que as comunidades apresentavam suas demandas às elites políticas locais que as tratavam a partir de práticas clientelistas.

No decorrer dos anos de 1970, o debate sobre conselhos começou a ter destaque no Brasil e os conselhos populares propostos pelos setores de resistência ao regime militar e de esquerda se multiplicaram no país.

Os conselhos populares foram propostos por setores da esquerda ou de oposição ao regime militar e surgiram com papéis diversos, tais como: organismos do movimento popular atuando com parcelas de poder junto ao executivo (tendo a possibilidade de decidir sobre determinadas questões de governo); como organismos superiores de luta e organização popular, gerando situações de duplo poder; ou como organismos de administração municipal, criados pelo governo, para incorporar o movimento popular ao governo no sentido de que fossem assumidas tarefas de aconselhamento, de deliberação e/ou execução (GOHN, 2000, p.176, 3ºpar.).

Gohn observa que foram produzidos vários entendimentos sobre os significados dos conselhos populares na época. Ela exemplifica através de um trecho de um artigo publicado em 1988, escrito por Suzana Moura “Conselhos populares: remédio para todos os males?”, que traz um entendimento que estes conselhos não deveriam ser caracterizados como um “duplo poder”, um poder paralelo ao poder burguês:

Entendemos a participação popular na gestão da cidade como elemento central da luta pelo acesso e melhoria da qualidade da infra-estrutura e serviços urbanos, por melhores condições de vida e, portanto, pelo direito à cidade. Se coloca nos marcos da luta pela democratização da gestão e dos negócios públicos [...] Não podemos confundir essa luta pela participação, do ponto de vista do controle popular, com a construção de situações de estabelecimento de um poder paralelo ao poder burguês (duplo poder). Também não pode ser entendida como uma estratégia de alargamento da democratização do estado até a conquista do socialismo. E nem significa a conquista do poder municipal pelos trabalhadores. A conquista de mecanismos de democratização da gestão da cidade pode alterar apenas um governo e não o estado enquanto tal. Pode significar uma alteração na correlação de forças política municipal, mas as regras do jogo e o comando da sociedade continuam com as classes dominantes” (MOURA, 1998: p. 16-17 apud GOHN, 2000, grifos nossos).

Se por um lado, tínhamos o entendimento de Suzana Moura sobre os conselhos numa perspectiva de manutenção da hegemonia da classe dominante através destes espaços, por outro lado, tínhamos ainda as forças democráticas populares atuando através de diversos movimentos sociais – os quais não deixaram de existir apesar de terem suas ações limitadas diante do regime ditatorial – que acreditavam que a participação deste conselhos poderiam intervir na administração pública e promover mudanças através de políticas públicas.

Na década de 1980, a questão da participação popular apareceu como central e reivindicada pela sociedade civil brasileira.

A participação popular foi definida, naquele período, como esforços organizados para aumentar o controle sobre os recursos e as instituições que controlam a vida em sociedade. Esses esforços deveriam partir fundamentalmente da sociedade civil organizada em movimentos e associações comunitárias. O povo, os excluídos dos círculos do poder dominante eram os agentes e os atores básicos da participação popular (GOHN, 2002, p. 7).

Durante o processo de abertura política, o Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte, divulgou a Carta dos Brasileiros ao Presidente da República e ao Congresso Nacional, que propunha a criação de mecanismos de participação popular nos municípios para atuar junto ao Estado nas políticas públicas, a partir do controle da execução e do monitoramento das ações governamentais (CUNHA & PINHEIRO, 2009).

Isto contribuiu para o surgimento dos conselhos gestores de políticas públicas a partir da Constituição Federal de 1988. Estes conselhos de caráter interinstitucional formado pelo Estado e a sociedade civil, baseados no princípio da participação cidadã, se tornaram mecanismos legais e institucionais do exercício de controle social nos três níveis governamentais na década de 1990. Após a promulgação da referida Constituição, leis específicas foram criadas para regulamentar as políticas setoriais e a participação nos conselhos via a democracia participativa. Diferentemente dos conselhos comunitários e populares que eram formados apenas pela sociedade civil, os conselhos gestores surgem como

parte da esfera pública, com a composição paritária entre membros representantes do Estado e da sociedade civil.

Os conselhos estão inscritos na Constituição de 1988 na qualidade de instrumentos de expressão, representação e participação da população. As novas estruturas inserem-se, portanto, na esfera pública e, por força de lei, integram-se com os órgãos públicos vinculados ao poder executivo, voltados para políticas públicas específicas; sendo responsáveis pela assessoria e suporte ao funcionamento das áreas onde atuam. Eles são compostos por representantes do poder público e da sociedade civil organizada e integram-se aos órgãos públicos vinculados ao Executivo (GOHN, 2000, 1ºpar. p.178, grifos nossos).

Ao serem inseridos na esfera pública, os conselhos gestores adquirem assentos institucionais junto ao poder público dentro de um espaço de decisão da gestão urbana, diferentemente dos conselhos comunitários, populares ou fóruns civis não governamentais que estavam limitados à mobilização e pressão popular. Gohn (2000, p.178) identifica que surge uma nova institucionalidade pública a partir dos conselhos gestores, o que a autora chama de uma nova esfera social pública ou pública não-estatal. Essa nova institucionalidade resulta em um novo padrão de relações entre o Estado e a sociedade civil, a partir da participação da população nas decisões políticas e na formulação de políticas sociais.

Os conselhos entendidos como espaços públicos de gestão participativa só começam a ser criados em 1991 de forma bastante tímida. De acordo com Gohn (2000), o aumento dos conselhos é promovido pela legislação específica de 1996 que traz a obrigatoriedade dos municípios criarem seus conselhos para receberem os recursos financeiros das áreas sociais. A autora constata que, em 1991 foram criados 71 conselhos, entre 1994 a 1996 temos 305, após 1997 sobe para 488, esse número aumenta para 1.167 conselhos nas áreas da educação, assistência social e saúde em 1998 (GOHN, 2000, p.178). Em 2001, o IBGE realizou uma pesquisa nos municípios brasileiros e identificou que em mais de 90% deles se tinha o registro dos conselhos nas áreas da Saúde, Assistência, Criança e Adolescente, o que evidenciou a magnitude que essas instâncias adquiriram ao longo das últimas décadas (ALMEIDA &TATAGIBA, 2012).

Os conselhos gestores municipais se tornaram essenciais para o processo de descentralização do país promovido pela CF de 1988, principalmente da esfera federal para a esfera municipal, em que os governos municipais tiveram suas ações e recursos ampliados (CORTES, 1998). A descentralização no Brasil, para Souza (2004) se desenrolou em dois campos: no aumento dos recursos financeiros para os municípios garantidos pela Constituição, e, no aumento progressivo das transferências federais, a partir dos anos 1990 para a implementação de alguns programas sociais universais. Entretanto, a descentralização

consolidou as políticas voltadas para a implementação de políticas sociais e não para o aumento da capacidade de decidir sobre os recursos. A autora ressalta que as regras aplicadas aos governos locais não levam em consideração a complexidade dos 5.561 municípios, os quais apresentam diferenças socioeconômicas e demográficas significantes, isto resulta em uma distribuição desigual dos recursos federais.

A participação da sociedade civil no sistema descentralizado não se concentrou, somente, nos conselhos gestores, outras instituições participativas (IP’s) tiveram destaque nesse período. Segundo Leonardo Avritzer (2008, p. 45), as IP’s são “formas diferenciadas de incorporação de cidadãos e associações da sociedade civil na deliberação sobre políticas”. Ele identificou três tipos de constituição de IP’s no Brasil: (1) por um desenho participativo de baixo pra cima; (2) por um processo de partilha de poder entre representantes do Estado e da sociedade civil que participam simultaneamente em uma instituição; (3) por um processo de ratificação pública em que a sociedade civil é chamada para referendá-lo. Dessa forma, são exemplos de IP’s: os Orçamentos Participativos, os Conselhos de Políticas ou gestores e os Planos Diretores Municipais. O autor realizou uma vasta pesquisa em diferentes cidades brasileiras e identificou que essas IP’s expressam desenhos institucionais que variam em três aspectos importantes: “[...] na maneira como a participação se organiza; na maneira como o Estado se relaciona com a participação e na maneira como a legislação exige do governo a implementação ou não da participação” (AVRITZER, 2008, p. 44).

Diante destas experiências participativas, o Brasil se apresentou como um importante campo de estudo sobre a governança local e a participação cidadã (CKAGNAZAROFF, 2009). De acordo com AVRITZER (2008), o princípio constitucional da participação propiciou que o Brasil no século XX passasse de um país com poucas formas participativas para um dos países com o maior número dessas práticas, contrariando as expectativas exposta na literatura internacional, que não consideravam possível a criação de mecanismos de participação nos países em desenvolvimento devido o histórico de suas instituições políticas. As experiências participativas abundantes nos territórios locais brasileiros desde a década de 1980 expressam a tentativa de conciliação de duas visões distintas sobre o papel dos governos locais: o governo local como o principal provedor de serviços sociais universais em contraponto ao governo local como lócus privilegiado para a prática da democracia deliberativa, em busca do equilíbrio entre quem decide e quem é afetado pelas decisões. Nesse contexto de municipalização de alguns serviços sociais universais é possível identificar novas institucionalidades na governança local que tem significado o envolvimento de novos

sujeitos no processo decisório e no controle da implementação de políticas sociais em formatos diferenciados, com menor ou maior grau de participação (SOUZA, 2004). Nos Conselhos Gestores de Assistência Social tivemos o destaque do protagonismo das assistentes sociais organizadas em suas entidades de classe e acadêmicas. Vejamos a especificidade destes conselhos a partir da importância da atuação destas profissionais no Conselho Nacional da Assistência Social.