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Dos estudos de mulheres à categoria gênero: entre movimento e teoria

QUANDO AS MULHERES ENTRAM EM CENA: LUTAS, RESISTÊNCIA E MOVIMENTOS SOCIAIS

2.3 Dos estudos de mulheres à categoria gênero: entre movimento e teoria

Antes de ser analisada a construção do gênero enquanto uma categoria analítica torna-se necessária uma retomada de conceitos anteriormente utilizados para tratar as questões referentes à situação da mulher na sociedade contemporânea. Sendo assim, anteriormente a eclosão do feminismo na década de 1970, era adotada como categoria primária. No início dos movimentos feministas os “estudos sobre mulheres” como supramencionados por Scavone (2008), essa abordagem recebeu críticas no sentido de se compreender as desigualdades entre os sexos. As investigações não poderiam estar centradas apenas no estudo das mulheres, mas também teria que envolver os homens, enquanto objeto de estudo, pois é na relação entre estes que se estabelecem processos de desigualdades.

Viero (2005) retrata que para algumas feministas o conceito “mulher” serve para classificar as pessoas em termos de sexo-gênero naturalizados e dualistas e para manter a visão de uma classe inferior de seres humanos. Isso porque a divisão entre os sexos é classificada como natural, e como tal se torna universal, visto que é determinado pela natureza, logo, não é passível de mudança. Costa (1984) ao tratar dessa “naturalização” ou distinção biológica entre os sexos ressalta que o uso dessa abordagem reforça uma posição conservadora em relação à subordinação feminina.

Andrade (2007) discute a naturalização biológica como uma característica fundamentada no pensamento ocidental, que associava o maior envolvimento do corpo feminino com a função reprodutiva, entendendo as mulheres como menos propícias à cultura e menos capazes de transcender a sua natureza biológica do que os homens.

Machado (1998) faz uma análise de que os “estudos de mulheres” pareciam não ser capazes de responder aos desafios feministas, tendendo a ser descritivos e reiterativos, não objetivando um pensamento analítico e teórico, ou seja, “o equipamento biológico sexual inato não dá conta da explicação do comportamento diferenciado masculino e feminino observado na sociedade” (SORJ, 1992, p. 15). Contudo, o uso do conceito de gênero ocorrido nas décadas de 1980 e 1990 surge com a

proposta de romper com a naturalização biológica das categorias de homem e mulher, para dar ênfase às relações construídas ao papel de cada um na sociedade.

Sob essa perspectiva, Alves e Pitanguy (1991), Sarti (2004), Álvares (1990), Scavone (2008) analisam que o marco para essa abertura política mais radical e o fortalecimento das matrizes teóricas de um novo feminismo se inicia bem antes desse período, ainda no debate traçado por Simone de Beauvoir em seu livro o Segundo Sexo, em 1949, no qual ela contesta todo o determinismo biológico ou desígnio divino pré- destinado a mulher ao afirmar que “não se nasce mulher, mas torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1970, p.7), logo, o “feminino” parte de uma construção social e cultural, apreendido no processo de socialização que condiciona os sexos a cumprirem funções sociais específicas e diversas. Aprende-se “(...) a ser homens e mulheres e aceitar como „naturais‟ as relações de poder entre os sexos” (ALVES e PITANGUY, 1981, p. 55).

Esse debate e reflexão acerca da desnaturalização da condição biológica da mulher permitiram discussões em torno de novas análises do feminismo, caracterizando-o não apenas como um movimento de práticas políticas militantes, porém, paralelamente a isso, tornou-se instigante ao crescimento de novos estudos e teorias capazes de explicar as especificidades da relação assimétrica entre os sexos e passou-se a abordar a categoria gênero no lugar de estudos de mulheres.

Gênero, segundo as pesquisas de Scavone (2008), foi um conceito iniciado por estudiosas da língua inglesa, dentre elas, a antropóloga e feminista Gayle Rubin, que designou esse termo para tratar da divisão dos sexos imposta socialmente e produzida nas relações sociais da sexualidade, as quais compõem o que ela denominou de sistemas de sexo/gênero, ou seja, “(...) reconhecendo a construção social do gênero como construção social de dominação, [propondo], o fim da diferenciação de gênero” (MACHADO, 1998, p. s/n).

De modo que para Scoott (1995) o gênero começou a ser usado pelas feministas para designar a maneira de referir-se à organização social da relação entre os sexos, todavia, “as preocupações teóricas relativas ao gênero como categoria de análise só apareceram no final do século XX” (SCOTT, 1995, p. 13), visando contemplar uma legitimidade acadêmica dos estudos feministas nos anos 1980, que precisavam de um campo de definição que fundamentasse “o caráter inadequado das teorias existentes em explicar desigualdades persistentes entre mulheres e homens” (idem).

Para essa autora as diferenças entre os sexos constituem um aspecto primário de organização social fundamentalmente cultural. Então, a especificação de sexo é um

dado biológico, enquanto o gênero é a definição cultural do comportamento definido como apropriado aos sexos em uma dada sociedade e em um dado tempo, demonstrando que gênero constitui por um conjunto de papéis culturais, isto é, “(...) um produto social, apreendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações” (SORJ, 1992, p. 15).

Nesse âmbito, o gênero é uma construção centrada na atribuição de papéis e relações entre mulheres e homens, não determinados pelo sexo e sim pelo contexto social, político e econômico em que as pessoas crescem e são educadas. De modo que algo construído pode ser passível de mudança em determinado tempo e sociedade.

Nessa perspectiva, Andrade (2007) também reforça, por meio de sua análise, o termo gênero, como um instrumento de desconstrução dos significados atribuídos ao sexo biológico, capaz de comunicar com exatidão, que para além das diferenciações anátomo-biológicas, as diferenças sexuais adquirem um significado cultural. Deste modo, Machado (1998) afirma que quando se reflete sobre o “construtivismo social do gênero” percebe-se que não é algo inerte, nem eterno, mas mutável, podendo ser reconstruído.

Scott (1995) define o gênero enquanto categoria analítica, isto é, “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar relações de poder” (p.14). Nesse aspecto, Andrade (2007) reforça essa afirmação ao explicar que este termo surge para identificar e aclarar um sistema de poder, decorrente de um conflito social, que historicamente tem relegado às mulheres, condições desfavoráveis em praticamente todos os indicadores de desenvolvimento e qualidade de vida em relação aos homens.

Machado (1998) traz a tona que apesar de toda influência Norte americana, as pesquisadoras brasileiras não se contentaram apenas na aceitação de novos paradigmas metodológicos, mas ao contrário construíram seus próprios paradigmas de conhecimento, em um contexto social, universitário, político e institucionalmente, mas afetado pelos movimentos feministas e pelos movimentos de minorias raciais. Esse avanço foi possível devido à inserção de várias pesquisadoras em grupos de estudos de mulheres e depois de gênero de caráter multidisciplinar.

Assim, a utilização do gênero enquanto análise contribuiu para abrir discussões em torno de uma sociedade mais igualitária, desde que haja preocupação em complexificá-la histórica e politicamente, considerando-a como uma forma de apreender as relações de opressão “(...) numa sociedade capitalista, racista e colonialista”

(AZERÊDO, 1994, p.207). Nesse sentido, a compreensão das relações de gênero na sociedade implica em uma compreensão política e social mais ampla, isto é, “o gênero tem que ser definido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e social que inclui não só o sexo, mas também classe e raça” (SCOTT, 1995, p. 21).

2.4 Resistência e empoderamento feminino: novas abordagens na agricultura