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253 DREW, Elizabeth, 1947, p 71.

254 SMITH, Grover, 1956, p. 76. 

255 “Comunicar-se com Marte, conversar com espíritos, / Historiar a conduta do monstro marinho, / Traçar o horóscopo, aruspicar ou bisbilhotar o astral, / Observar anomalias grafológicas, evocar / Biografias pelas linhas da mão / Ou tragédias pelos dedos, lançar presságios / Através de sortilégios, ou folhas de chá, adivinhar o inevitável / Com cartas de baralho, embaralhar pentagramas / Ou ácidos barbitúricos, ou dissecar / A trôpega imagem dos terrores pré-conscientes / – Sondar o fundo, a tumba, ou os sonhos: tais coisas são apenas / Passatempos e drogas usuais, ou manchetes de imprensa”.

256 TITUS, T. K. Critical Study of T. S. Eliot's Works. New Delhi: Atlantic Publishers, 2001, p. 64.

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desprovidos de seu encantamento anterior, ao passo que em The Waste

Land a fórmula não é tão simples. Madame Sosostris pode muito bem

ser uma vidente cômica – sua gripe e o cuidado que tem para com o horóscopo assim denotam –, mas ali o baralho de Tarot parece preservar algumas de suas propriedades passadas. Se isso é verdade, seria de fato possível pensar em cartas sagradas nas mãos de uma charlatã, porém Eliot tem o cuidado de fazer com que as duas coisas se toquem, contaminando-se mutuamente.

Segundo Brooker e Bentley, os cometaristas cometem um erro quando reduzem Madame Sosostris a uma “vulgarização contemporânea dos videntes e oráculos [...], dos quais a Sibila e Tirésias seriam os exemplos mais imediatos”.258 Para eles, tal leitura decorre da dificuldade de vislumbrar de que modo o jogo de cartas é estruturado em The Waste

Land. Em sua hipótese, Brooker e Bentley defendem que os três versos

iniciais (43 – 45) e os três versos finais (57 – 59) da passagem compõem uma espécie de moldura cômica para um jogo de cartas que, no final das contas, revela-se extremamente correto em suas previsões: “a vidente moderna é apresentada de modo zombeteiro, mas o que ela vê na parte

central do episódio é, de certa forma, o poema inteiro”.259 O problema

dessa análise é claro: os críticos localizam e afastam o “próprio” do “impróprio” a fim de evitar que as duas coisas se confundam, pois um tal choque comprometeria qualquer formulação conclusiva sobre o caráter da previsão. Ora, fica muito difícil, contudo, conceber uma margem cômica que em nada toque seu interior, ou melhor, uma moldura que simplesmente se anula diante da gravidade daquilo que abriga. Nesse caso, como em tantos outros, testemunhamos a resistência de um resíduo inclassificável, expresso na permanência do conteúdo “impróprio” na suposta retidão do baralho.

Não resta dúvida de que as cartas tiradas por Madame Sosostris incidem sobre as demais seções de The Waste Land. O verso 65, por exemplo, contém a advertência “Fear death by water”, precisamente o título da quarta seção do poema, “Death by Water”. Na nota dirigida à passagem, Eliot amplia ainda mais as relações entre o jogo e as demais “cenas” do poema: a figura do enforcado (The Hanged Man) associa-se “em meu espírito [...] à personagem encapuzada da passagem dos discípulos de Emaús, na Seção V”; ademais, “quanto ao homem dos

      

258 BROOKER, Jewel Spears & BENTLEY, Joseph, 1990, p. 77. 259 Ibid., p. 77.

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Três Bastões (um membro autêntico do baralho do Tarot), associo-o, de forma bastante arbitrária, ao próprio Rei-Pescador”. Assim, seja por meio da nota ou através de vínculos mais explícitos, The Waste Land não raro faz com que o leitor retorne à figura da Madame Sosostris, um ponto de partida que, longe de ser um porto seguro, nos coloca diante de um paradoxo fundador, i.e., a indecidibilidade entre o autêntico e o ilegítimo. Eis mais um dos embaraços da crítica – perceber que a interpretação do poema está atrelada a um jogo de Tarot que, curiosamente, é colocado em xeque. O diagnóstico de Donald J. Childs é exato: “embora, por um lado, Madame Sosostris represente a falta de uma presença espiritual verdadeira no mundo moderno, por outro, a vidente preserva um rastro de potência espiritual genuína, pois Eliot permite que ela acerte suas previsões”.260

Tudo isso nos leva a crer que os versos 43 – 59 dizem respeito, antes de mais nada, não à precisão ou ao desvio das interpretações de Sosostris – a indeterminação sobre a (im)propriedade das cartas parece sempre mais forte que o impulso crítico localizador –, mas sim aos limites e contornos de toda interpretação, inclusive e principalmente daquela que se lança sobre a vidente. Desse modo, se as conclusões posteriores vinculadas a tais versos, quando deixam de observar os “complicadores interpretativos” já mencionados, perdem força e acentuam a parcialidade de seu ponto de partida, cabe aqui detalhar justamente quais são e de que forma operam esses “complicadores interpretativos”.

Em primeiro lugar, o verso 46 fala que Madame Sosostris possui um “wicked pack of cards”, um “trêfego baralho”, na tradução de Ivan Junqueira, ou ainda um “baralho aziago”, na versão de Lawrence Flores

Pereira.261 Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa,

“trêfego” quer dizer “hábil para ludibriar; astuto, esperto, sagaz, manhoso”; já “aziago” significa “que traz má sorte; de mau agouro;

azarento, infausto, nefasto” etc.262 Em ambos os casos, mas

especialmente no segundo, a escolha dos tradutores salienta unicamente a dimensão fraudulenta das cartas. No entanto, se consultarmos o

American Heritage Dictionary, veremos que a palavra “wicked” pode

      

260 CHILDS, Donald J. From Philosophy to Poetry: T. S. Eliot's Study of knowledge and Experience. London: The Athlone Press, 2001, p. 103.

261 In: ROSENFIELD, Kathrin H. (org.). T. S. Eliot & Charles Baudelaire: Poesia em Tempo de Prosa. Tradução e Notas de Lawrence Flores Pereira. São Paulo: Iluminuras, 1996, p. 36. 262 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

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reservar seus próprios truques. Em sua ocorrência principal, aproxima-se do sentido preservado nas traduções para o português: “ruim (mau) por natureza e na prática; malicioso ou enganador”. “Wicked” deriva do mesmo radical que deu origem às palavras “bruxa” (witch) e “mago”, “mágico” (wizard). Contudo – e este é o contraponto do qual devemos aqui nos ocupar –, enquanto gíria, “wicked é utilizado como um intensificador” de sentido positivo: “impressionantemente bom, eficaz ou habilidoso”. Ora, o impasse está posto. Ainda assim, se a crítica decide sublinhar a conotação negativa de “wicked”, façamos momentaneamente o movimento contrário, apenas a título de curiosidade. Costuma-se atribuir o primeiro registro de “wicked” como “maravilhoso” ao romance inaugural de Scott Fitzgerald, This Side of

Paradise, de 1920. The Waste Land data de 1922, e tendo em vista o

constante uso que Eliot faz de gírias e expressões idiomáticas no poema – vide “A Game of Chess”, onde encontramos, dentre outros, palavras como demobbed (que se refere à pessoa dispensada de suas obrigações militares) e expressões idiomáticas como “I didn't mince my words” (“não medi minhas palavras”) e “to bring it off” (induzir um aborto) –, não seria possível ler “wicked” como mais uma dessas gírias, já que seu uso era tão corrente na década de 20?

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Cartas poderosas a serviço de uma enganadora: há um outro argumento comumente lançado para sustentar essa linha de leitura. Segundo Williamson, “de modo geral, as limitações de Sosostris

aparecem no que ela não pode ver”.263 Em outras palavras, a vidente não

conhece o poder e a tradição do baralho que manipula, e por esse motivo, mesmo acertando suas previsões, ela não passa de uma vigarista – a magia está nas cartas, não em suas mãos. Manju Jain complementa: “o ponto relevante sobre Madame Sosostris, a vidente de nossa sociedade, é que ela não vê com clareza e não tem compreensão alguma de qualquer dimensão espiritual. [...] Eliot a utiliza para introduzir alguns dos personagens, eventos e temas do poema, embora ela mesma não entenda ou explique o significado do que vê”.264 O argumento é sedutor e oferece algum conforto: pode-se confrontar as cartas e os