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263 WILLIAMSON, George, 1957, p 132.

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versos do poema com segurança, pois a corrupção encontra-se apenas na vidente, sem afetar a atividade do baralho. A passagem já não seria mais séria e irônica ao mesmo tempo; o sacro e o profano tocam-se apenas superficialmente, pois uma nova moldura afasta um do outro.

Como se sabe, vidência e cegueira mantém uma relação estreita na literatura. Sequer precisamos recorrer ao exemplo de Tirésias, vidente tebano considerado por Eliot como “a principal figura” de The

Waste Land, para rebater o argumento que condena Sosostris por sua

falta de visão. O próprio poeta formula seu entendimento do assunto em “Virgil and the Christian World” (1951): “se um profeta fosse por definição um homem capaz de entender o significado completo do que diz, a questão estaria encerrada. Contudo, se a palavra 'inspiração' tem algum significado, ela deve significar somente isto, que o orador ou escritor diz algo que ele é incapaz de entender por inteiro, ou algo que ele pode inclusive interpretar de modo equivocado quando não mais

inspirado”.265 Os versos 52 – 54 – “And here is the one-eyed merchant,

and this card / Which is blank, is something he carries on his back, / Which I am forbidden to see” – portanto, não seriam indícios das artimanhas da famosa Madame, mas sim evidência do significado que permanece encoberto em toda previsão, encoberto inclusive para o próprio profeta.

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Seguindo com a proposta de fazer um levantamento de alguns dos complicadores interpretativos em torno do episódio sobre Madame Sosostris, a célebre vidente de T. S. Eliot, notemos que o jogo de cartas proposto nos versos 43 – 59 avança não apenas a partir de “presenças”, as cartas de fato tiradas, mas também a partir de “ausências”, ou seja, cartas que a vidente “não encontra”, ou algo nas cartas que ela é incapaz de identificar. The Waste Land é um poema repleto de ausências, intervalos que dificultam uma leitura sequencial de eventos; conforme inúmeros críticos já observaram, sua estrutura é paratática. Todavia, muitas dessas ausências são por vezes anunciadas, seja ao longo das cinco seções ou por meio das notas de Eliot. Anunciar uma ausência significa, de certo modo, torná-la presente. Sendo assim, quando Madame Sosostris admite não encontrar o “Enforcado”, a ausência-

      

265 ELIOT, T. S., 1961, p. 137.

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presente dessa figura paira sobre os demais versos do poema.266 Da mesma forma, ao comentar que a carta em branco “é algo que ele [o mercador zarolho] leva às costas, mas que me proibiram de ver”, a vidente chama a atenção do leitor para esse elemento cuja presença foi obscurecida. Eliot sabe muito bem que essas ausências declaradas animam a interpretação, e assim nos diz: “o Enforcado, figura do baralho tradicional, atende meu propósito sob dois aspectos: por estar associado em meu espírito ao Deus Enforcado de Frazer e porque o associo à personagem encapuzada da passagem dos discípulos de Emaús, na seção V”. O paradoxo não deve ser ignorado: a figura ausente ganha um referencial estável dentro do poema (a partir de uma observação “marginal”), a personagem encapuzada da quinta seção. Logicamente, Eliot suaviza as associações com a sua sempre sutil incerteza: “por estar associado em meu espírito”. Difícil manter o equilíbrio em meio a tantas presenças, ausências e incertezas, e as vias associativas multiplicam-se na mesma medida em que perdem sua completude; impossível cercar os vínculos.

Colocado de outra forma – e isto deve estar muito claro –, não se trata aqui de invalidar as leituras que condenam a capacidade profética da Madame, ou então de acusar o equívoco da interpretação narrativa, isto é, da interpretação que transforma o poema num texto prosaico: rei- pescador/terra desolada; jovem cavaleiro/renovação dos ciclos. A bem da verdade, mesmo quando conflitantes a ponto de negarem-se mutuamente, tais leituras possuem uma coerência interna por vezes inviolável: como refutar o caráter impostor da vidente, uma vez que o verso 57 – “Thank you. If you see dear Mrs. Equitone” – muito provavelmente exprime sua satisfação ao receber o pagamento por seus presságios? Da mesma forma, como questionar a relevância de suas cartas, já que o poema parece moldar-se a partir delas? De nossa parte, as conclusões aqui expostas são anteriores a tais proposições: interessa- nos apenas saber de que modo o poema (ou Eliot, se for o caso) administra esse jogo exegético, pois, frente ao já exposto e à certeza de que o debate é muito caro à obra ensaística do poeta, não há como negar que The Waste Land é também uma “discussão” sobre os limites da atividade analítica. Quanto mais o leitor percebe o jogo que confunde “dentro” e “fora”, “poesia” e “crítica”, mais ele recua a fim de examinar

      

266 Brooker expõe um argumento muito semelhante em The Placing of T. S. Eliot. London: University of Missouri Press, 1991, p. 133.  

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os restos incômodos de suas escolhas, e assim, vendo que aquilo que se projeta abandona atrás de si uma fortuna ainda maior, busca assimilar a rede, as armadilhas que o obrigam a retornar.

E as armadilhas são muitas. Não podemos deixar de notar, junto

com Patrícia Sloane,267 que a “Roda da Fortuna” e o “Enforcado”, figura

suspensa de uma barra por um dos pés, são as únicas cartas de Madame Sosostris que realmente pertencem aos Arcanos Maiores do Tarot. Nesse momento Eliot foi verdadeiro ao admitir ter utilizado o baralho como um ponto de partida e, a seguir, segundo suas próprias conveniências. Resumindo uma das vias abertas ao leitor, temos a seguinte equação: 1) na primeira seção do poema, deparamo-nos com um jogo de cartas, cujas figuras de certa maneira reaparecem ao longo das demais seções; 2) em sua nota, Eliot comenta que estamos diante das cartas do Tarot, alertando-nos sobre o uso bastante particular que delas faz; 3) com o baralho em mãos, o leitor constata que, a rigor, apenas duas das seis cartas tiradas pela Madame estão ali presentes: o “Enforcado” e a “Roda da Fortuna”. 4) Curiosamente, a primeira das duas cartas cartas é anunciada como uma ausência-presente – “Não encontro / O Enforcado”; contudo, embora “ausente”, Eliot é capaz de associá-la ao “Deus Enforcado de Frazer” e “à personagem encapuzada da passagem dos discípulos de Emaus”. 5) Sobre a figura encapuzada, debatida no segundo capítulo deste texto (“O Terceiro Expedicionário”), temos poucas informações conclusivas; com efeito, o que sabemos é que ela própria gera em torno de si uma série de dúvidas não menos angustiantes que as de agora. 6) Para finalizar, tudo isso ocorre dentro do quadro antes exposto: Madame Sosostris localiza-se em algum lugar entre o “próprio” e o “impróprio”. Nossa morte se dá não por água ou afogamento, como quer Eliot, mas sim por interpretação.

Talvez todo poema se preste à articulação de um infinito interpretativo, a “conversa infinita” de que nos falam e que, por sua vez, tornou-se uma conversa igualmente infinita. Contudo, segundo a tese defendida neste ensaio – ou ao menos segundo um de seus possíveis segmentos –, The Waste Land nos oferece algumas particularidades nesse sentido, pois a leitura do poema está atrelada à maneira como entendemos quais são as suas fronteiras. (É por isso, aliás, que um estudo de sua recepção pela crítica literária ao longo do século XX ofereceria também uma boa história das disposições recepcionais de