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74 “Vi alguém que conhecia, e o fiz parar aos gritos: 'Stetson, / Tu que estiveste comigo nas galeras de Mylae! / O cadáver que plantaste no ano passado em teu jardim / Já começou a brotar? Dará flores este ano? / Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito? / Mantém o Cão à distância, esse amigo do homem, / Ou ele virá com suas unhas outra vez desenterrá-lo! / Tu! Hypocrite lecteur! – mon semblable –, mon frère!'”.

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(Versos 69 – 76) Em nota dirigida aos versos 74 e 75 de The Waste Land, “'O keep the Dog far hence, that's friend to men, / Or with his nails he'll dig it up again!'”, Eliot limita-se a evidenciar uma referência que, pelo laconismo de sua formulação, dispensaria maiores comentários: “74. Cf. o Canto Fúnebre em The White Devil, de Webster”. O leitor aplicado, a fim de obter dados mais específicos sobre a alusão em questão, toma em mãos a peça de Webster. Para a sua decepção, entretanto, em vez de uma clara menção ao Cão, amigo do homem, encontra a seguinte passagem, retirada do canto fúnebre (Dirge) entoado por Cornelia ao seu filho recém assassinado, Marcello:

'Call for the robin-red-breast and the wren, Since o'er shady groves they hover, And with leaves and flow'rs do cover The friendless bodies of unburied men. Call unto his funeral dole

The ant, the field-mouse, and the mole To rear him hillocks that shall keep him warm And (when gay tombs are robbed) sustain no harm, But keep the wolf far thence that's foe to men, For with his nails he'll dig them up again.'75 Ainda que Eliot não detalhe seus motivos na nota, as modificações efetuadas nos versos de Webster são substanciais: o “lobo”, “inimigo do homem”, dá lugar ao “Cão”, nosso “melhor amigo”. Novamente, a nota estabelece o ponto de contato, Eliot/Webster, sem exercer sua função explicativa, deixando para o leitor a complicada (talvez impossível) tarefa de observar o que resulta da aproximação. S. A. Cowan resume o problema desta maneira: “seguindo a orientação de várias das citações de Eliot, a nota sobre o verso 74 é mais provocativa que conclusiva, prova disso é a contínua discussão acerca do 'Cão'. [...]

      

75 WEBSTER, John. Edited by Christina Luckyj. 2nd. ed. New York: W W Norton, 1996, p. 135. “'Chama o melro de peito vermelho e a corruíra, / Já que pairam sobre arvoredos sombrios, / E cobrem com folhas e flores / Os corpos desamparados de homens insepultos. / Chama para a sua cerimônia de lamento / A formiga, a ratazana e a toupeira / Para que lhe construam um abrigo que o manterá aquecido / E que (quando tumbas tranquilas são violadas) não alimentará o mal, / Mas mantém o lobo longe daí, esse inimigo do homem, / Pois com suas unhas ele os desenterrará de novo'”.

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O que Eliot crê que o leitor descobrirá através da comparação?”. As possibilidades de resposta são inesgotáveis, conforme Cowan demonstra: “a ironia resultante da escolha do cão – tradicionalmente o melhor amigo do homem – no lugar do lobo dos versos de Webster? Ou talvez a ideia de que o homem moderno deve temer menos uma ameaça externa do que a traição de um amigo próximo?”.76 Seja como for, a leitura da peça de Webster não satisfaz a expectativa gerada pela nota de Eliot.

Em linhas gerais, The White Devil é uma peça de vingança (revenge play) escrita com base num procedimento literário que pode ter exercido influência direta sobre The Waste Land. Assim como Eliot, Webster toma emprestado de diversos autores passagens que adapta livremente ao contexto de suas obras. Na formulação de Christina Luckyj – e isso vale igualmente para Eliot –, “descobrir as fontes exatas do drama de Webster é uma tarefa impossível, e talvez indesejável, pois sua singularidade está na capacidade de converter materiais dissimilares numa totalidade eclética e brilhante”.77 O enredo de The White Devil pode ser assim resumido: o Duque de Brachiano, casado com Isabella, apaixona-se por Vittoria, esposa de Camillo e membro de uma família veneziana tradicional porém empobrecida. Para levar adiante seu plano de casar com Vittoria, Brachiano conta com o apoio de Flamineo, irmão da pretendente que deseja, com a consumação do casamento, elevar também a sua posição social. Brachiano e Vittoria planejam o assassinato de seus respectivos cônjuges, Isabella e Camillo. Após o crime, Vittoria é julgada e condenada a cumprir pena num asilo para “prostitutas penitentes”, porém foge para Pádua em companhia do Duque. Em Pádua, Brachiano, Vittoria e Flamineo são assassinados, vítimas do plano de vingança traçado por Francisco, irmão de Isabella, Conde Lodovico, que mantinha uma paixão secreta por Isabella, e Gasparo, amigo de Lodovico.

Nessa síntese da peça, onde se insere, afinal de contas, o canto fúnebre que inspira os versos 74 e 75 de The Waste Land? A resposta traz à tona uma informação de valor a respeito da natureza de vários dos empréstimos literários de Eliot. O canto de Cornelia sobre o funeral de Marcello, seu filho assassinado, é considerado por alguns críticos um

      

76 COWAN, S. A. “Echoes of Donne, Herrick, and Southwell in Eliot's The Waste Land”. In: Yeats Eliot Review – Vol. 8, Nos. 1 and 2 (Double Issue), 1986, p. 96.

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episódio secundário – talvez dispensável – em The White Devil. Para Harold Jenkins, a passagem da canção fúnebre contrasta, por exemplo, com a complexidade de The Duchess of Malfi, cuja trama não é facilitada pela presença de “fantasma, lamento materno ou irmão

bonzinho eliminado pelo irmão malvado”.78 Marcello é assassinado por

se opor ao oportunismo de Flamineo, seu irmão, e esse evento estabelece com clareza a disputa entre o bem e o mal. Segundo Larry S. Champion, “a morte de Marcello e a loucura de Cornelia não estão efetivamente integrados à ação central da peça”.79 O mais importante nisso tudo, a rigor, é o fato de que Eliot utiliza em The Waste Land versos que ocupam uma posição lateral em Webster, e mesmo assim sua nota encerra a alusão com ares de obviedade: “74. Cf. o Canto Fúnebre em The White Devil, de Webster”.

Conquanto parte de uma cena marginal, o significado da canção fúnebre no contexto da peça é claro: o descanso eterno de Marcello está diretamente ligado aos cuidados dispensados ao enterro do seu corpo. Para assegurar o repouso da alma de seu filho, Cornelia convoca uma reunião com os animais que cuidam “dos corpos desamparados de homens insepultos”, o melro, a formiga, a aranha etc. O corpo insepulto coloca-se como obstáculo para a vida eterna, e essa assembleia da natureza é responsável, pois, pela construção do abrigo inviolável que sacraliza os restos mortais. Num impulso contrário ao do ritual fúnebre conduzido pelos animais convidados a essa “cerimônia de lamento”, o lobo, inimigo do homem, é capaz de desenterrar novamente os mortos com suas unhas, e por isso deve ser preservado à distância. Em resumo, nas palavras de Linda Cahir, “por crer que o corpo do filho precisa permanecer enterrado, Cornelia adverte que o trabalho destrutivo do

lobo deve ser mantido longe do ritual”.80 O santuário do corpo responde

a uma necessidade espiritual, e por isso não pode ser tocado.

Se, de um lado, o significado do canto em The White Devil é perfeitamente legível, as trocas efetuadas por Eliot, de outro, complicam a simbologia em torno do “enterro dos mortos”, título, vale recordar, da primeira seção do poema, “The Burial of the Dead”. Como dito, são

      

78 JENKINS, Harold. “The Tragedy of Revenge in Shakespeare and Webster”. In: Shakespeare Survey 14: Shakespeare and his Contemporaries. Cambridge: Cambridge University Press, 1961, p. 53.

79 CHAMPION, Larry S., 1974, apud WEBSTER, John, 1996, p. xv.

80 CAHIR, Linda Costanzo. “T. S. Eliot's The Waste Land and John Webster's White Devil: An Explication of Two Poetic Lines”. In: Yeats Eliot Review – Vol. 14, N. 4, 1997, p. 43.

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duas as principais mudanças feitas nos versos da peça: o “Cão” (Dog) substitui o lobo de Webster, e no lugar de um “inimigo dos homens” (foe to men), temos agora o “Cão”, “amigo dos homens” (friend to men). Além disso, o “Cão” aparece escrito com a letra inicial maiúscula, alteração que, como veremos, ganha um papel preponderante na leitura de alguns críticos. A análise que segue intenta mostrar que, em busca da hipótese perfeita, ou melhor, do enterro perfeito (para utilizar o nomenclatura que aqui nos cabe), a crítica acaba afogada num mar interpretativo repleto de opções irreconciliáveis porém igualmente verdadeiras. Pode-se dizer que o “Cão” eliotiano, com suas unhas, corrompe de vez a ideia de uma precisão descritiva, tal qual seu dono havia feito nos seminários de Josiah Royce.

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Os versos de Eliot apontam uma indecisão fundamental acerca da atividade do “Cão” que é apagada por qualquer referência consultada com exclusividade, seja Webster, Frazer ou o Antigo Testamento. A rigor, as interpretações totalizantes resultam via de regra de uma confiança excessiva na “pureza” da simbologia eliotiana, ou então de um falso paralelismo. Nas linhas 74 e 75, o leitor tem ao menos dois pontos inequívocos: 1) o “protagonista” (a presença de um protagonista é tão improvável quanto a existência de um significado definitivo para os versos ora investigados) diz que o “Cão” deve ser mantido à distância; 2) o “Cão” pode, com suas unhas, desenterrar os mortos. No entanto, a positividade (ou negatividade) dessa ação permanece encoberta, ou seja, a complexidade da passagem está na dificuldade de associar o “Cão” a um movimento estritamente “próprio” ou “impróprio”81 no poema. Podemos desenvolver o comentário testando algumas hipóteses.

Conforme assinala Elizabeth Drew, “o cão sempre foi um símbolo constante de auxílio e renascimento. Ísis reuniu as partes desmembradas do cadáver de Osíris com a ajuda de cães”.82 Osíris, deidade egípcia associada à “estrela cão” (Sirius), é descrito por

      

81 Nomenclatura utilizada por Harriet Davidson no ensaio “Improper Desire: Reading The Waste Land”, In: MOODY, David (ed.). The Cambridge Companion to T. S. Eliot. Cambridge: Cambrigde University Press, 1994, pp. 121 – 131.

82 DREW, Elizabeth. T. S. Eliot: The Design of His Poetry. New York: Charles Scribner's Sons, 1949, p. 74.

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Plutarco desta forma: “na alma, a inteligência e a razão – nossos maiores mestres e guias – são Osíris; na terra, no vento, na água, nos céus e nas estrelas, isto é, em tudo que é ordenado, permanente e saudável (conforme evidenciam as estações, as temperaturas e as revoluções),

vemos a ação de Osíris, além de sua própria imagem refletida”.83 Como

a nota de Eliot atesta, os rituais em torno de Osíris ocupam várias das páginas de The Golden Bough, e ali Dog star Sirius surge como a estrela dos mares, sinal dos céus para indicar o aumento das águas na terra.84 Finalmente, em Satíricon (para ficarmos somente com as referências mais caras a Eliot), nosso conhecido anfitrião do banquete, Trimalquião, dirige-se a Habinas com este pedido: “'Você me constrói o túmulo do jeito que eu te disse? Eu te peço por favor para pintar minha cadelinha junto aos pés da minha estátua, e também coroas de flores, óleos perfumados, [...] para que graças ao teu trabalho eu possa viver após a morte'”.85 Em todos esses exemplos o cão aparece, não resta dúvida, como amigo dos homens (friend to men) e agente do renascimento – “raízes de flores sobre o crânio de um homem morto”, para usar um verso de Webster.

De acordo com esses traços iniciais, acompanhados da aproximação Eliot/Webster insinuada pela nota, o “Cão” em The Waste

Land pode ser lido como uma entidade outrora sagrada e agora

deslocada para a esfera do profano. Na formulação de Brooker e Bentley, “nos tempos de Webster, o lobo era o animal que desenterrava os corpos. Hoje em dia, a atividade é desempenhada por um cão amigável. Dog é God (“Deus”) soletrado ao contrário, uma coincidência observada não só por Eliot, mas por vários escritores modernistas. O cão 'amigo do homem' sugere um deus moderno substituto que parecia ser um amigo mas se tornou um destruidor em vários sentidos”.86 Os críticos creem que a troca operada pelo poeta questiona a viabilidade de uma descrição exata do espírito de agentes mitológicos como o cão: sua verdadeira natureza permanece oculta, e por vezes se manifesta de modo contrário ao anotado em manuais antropológicos, como nos versos 74 e 75 de The Waste Land. Em todo o caso, ainda que para desestabilizar a

      

83 PLUTARCH. Moralia – Isis and Osiris. Vol. V of the Loeb Classical Library edition. Cambridge: Harvard University Press, 1936, p. 121.

84 FRAZER, James George. The Golden Bough: A Study in Religion and Magic. New York: Dover Publications, Inc., 2002, p. 370.

85 PETRÔNIO, 2008, p. 96.

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simbologia rígida atribuída a lobos e cães, Eliot opera uma inversão no poema, pois ali o cão, e não o lobo, impede o renascimento, atuando, pois, como falso amigo do homem.

Essa linha de leitura, tão frequente entre os críticos de Eliot, e certamente influenciada pelas notas do poeta, está longe de equivocada. A dificuldade está, entretanto, em conciliá-la com outras passagens de

The Waste Land em que a interrupção dos ciclos da natureza não é

resultado de uma ação, por assim dizer, destrutiva. Para exemplificar, basta citar os célebres versos que abrem o poema: “April is the cruellest month, breeding / Lilacs out of the dead land, mixing / Memory and desire, stirring / Dull roots with spring rain”.87 Como se sabe, The Waste

Land inicia com um paradoxo sazonal que parodia a alegria com que os

versos de Geoffrey Chaucer recebem a chegada da primavera em The

Canterbury Tales: “Whanne that April with his shoures sote / The

droughte of March hath perced to the rote, / And bathed every veine in

swiche licour, / Of Whiche vertue engendred is the flour;”.88 No poema

de 1922, a estação das flores reinaugura um ciclo que, para a surpresa do leitor acostumado a símbolos estáticos ou, antes, convencionais, como é o caso da primavera, é visto com ceticismo e desânimo; no dizer de David Ward, “o abril, mês das flores primaveris, é transformado, dentro de um paradoxo deliberado, no 'mais cruel dos meses', e isso não por se omitir – é cruel de modo ativo, 'germinando', 'misturando', 'avivando' (…). Como resultado, o abril da mente, a renovação cíclica da experiência, torna-se algo indesejado, imposto sobre nós independente

da nossa vontade”.89 Nesse caso, o enterro apropriado dos mortos, que

garantiria a continuidade dos ciclos da vida, ganha um contorno impreciso nos versos de Eliot. Não sabemos ao certo como receber o que até então era seguramente tomado como força positiva da natureza.

As análises de cunho orientalista insistem nessa hesitação diante do enterro dos mortos presente na primeira seção de The Waste Land. Como o plantio do corpo representaria o recomeço de uma cadeia que pode ser equiparada à “morte-em-vida”, a atividade outrora profana do

      

87 “Abril é o mais cruel dos meses, germinando / Lilases da terra morta, misturando / Memória e desejo, avivando / Raízes com a chuva da primavera”.

88 “Quando o chuvoso abril cortou feliz / A secura de março na raiz, / E banhou cada veia no licor / Que tem o dom de produzir a flor;”. CHAUCER, Geoffrey. Os Contos da Cantuária. Seleção, tradução e notas de Paulo Vizioli. A Literatura Inglesa Medieval. São Paulo: Nova Alexandria, 1992, p. 3.

89 WARD, David. T. S. Eliot: Between Two Worlds. London and Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973, p. 76.

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cão revela-se, portanto, ambígua; no livro T. S. Eliot, Vedanta and

Buddhism, P. S. Sri assinala que “o cão impede o corpo de brotar e

florescer, dessa forma evitando a ressurreição. Em outras palavras, a reencarnação, e não a morte, deve ser temida e anulada, já que aprisiona o homem eternamente à Roda da Vida (binds one forever to the

Wheel)”.90 Essa análise é reforçada pela aparição da “Roda da Fortuna” (Wheel of Fortune), imagem presente na carta do jogo de Tarô encenado nos versos 43–59: “Here is the man with three staves, and here the Wheel”.91 Para Thormahlen, “a relevância da roda (círculo infinito de morte e vida não redimidas) adiciona importância ao medo do

renascimento que permeia The Waste Land”.92 Os manuscritos do

poema revisados por Pound, com efeito, reservam um verso posteriormente cancelado que acentua a viabilidade de tal argumento: “London, your people is bound upon the wheel!”.93 É a repetição de uma vida dessacralizada que nos condena à verdadeira morte.

Aquele que a princípio degrada os ritos fúnebres, ao interromper a cadeia de eventos responsável por nos aprisionar à Roda, revela-se gradativamente um “Cão” com letra inicial maiúscula, deus e “amigo do homem”. O cão continua nosso companheiro, apenas mudou de função: se antes expressava sua fidelidade como guardião dos corpos insepultos, hoje mantém-se fiel num exercício oposto ao anterior, ou seja, impedindo que a “morte-em-vida” se prolongue indefinidamente. Mas o que aconteceria se, ao contrário, consultássemos documentos citados para exibir o cão como emblema do mal? Ora, a conclusão dificilmente seria diferente. Assim lemos nos Salmos (22:16-20): “Pois inúmeros cães giram-me em torno, bandos de malfeitores me rodeiam. Furaram minhas mãos, meus pés furaram, eis que posso contar meus ossos todos. Seus olhos me examinam e se deleitam; repartem entre si as minhas vestes, sorteiam entre eles minha túnica. Mas tu, Senhor, não fiques longe assim; ó minha força, corre em meu socorro! Protege contra a

espada a minha alma, contra as garras dos cães a minha vida!”.94 Nesse

caso, então, o cão, que antes se impunha como cúmplice do mal,

      

90 SRI, P. S. T. S. Eliot, Vedanta and Buddhism. Vancouver: University of British Columbia Press, 1985, p. 42.

91 “Aqui está o homem dos três bastões, e aqui a Roda da Fortuna”. 92 THORMAHLEN, Marianne, 1978, p. 180.

93 “Londres, tua gente está condenada à roda”. p. 31.

94 BÍBLIA. Os Salmos. Tradução: PE. Ernesto Vogt, S. J. e D. Marcos Barbosa, OSB. 11. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999, pp. 54 – 55.

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manifesta-se agora como “amigo do homem” sem sequer mudar sua operação; a mudança está, na realidade, no redimensionamento dos limites entre o sacro e o profano.

As leituras acima expandem sim o nosso entendimento dos versos 74 e 75; por outro lado, pouco dizem sobre a indecisão fundamental diante do “enterro dos mortos”, que encerra, de certo modo, a própria inviabilidade de uma análise totalizante do poema. Se a ação do Cão é estritamente negativa, como explicar a angústia acerca do retorno da primavera que abre The Waste Land? Ao mesmo tempo, se a atividade do Cão, antes profana, representa agora a interrupção de um ciclo indesejado, por que manter o “amigo do homem” à distância, como aconselha o verso 74? Conforme dito, a imprecisão possivelmente voluntária com que Eliot escreve sua nota dá margem para diferentes paralelos, que, no entanto, raramente tocam o objeto sem comprometer parcialmente também suas próprias suposições. No final das contas, desprovido de uma autoavaliação quanto às restrições de seus resultados, o crítico mostra-se prisioneiro do nó interpretativo que advém do conjunto formado pelos versos e notas de The Waste Land, e dessa maneira corrobora a tese de Eliot defendida nos cursos de Royce: “as interpretações de significados não passam de meras hipóteses”.95

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O famoso monólogo interior de Molly Bloom, que compõe o último capítulo de Ulysses, inicia e termina com a repetição da palavra “Sim” (Yes): “[...] yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes”.96 “Sim” significa, para Joyce, “o consentimento, o autoabandono, a flexibilidade, o fim de toda resistência”.97 Conforme Derrida argumenta na palestra intitulada “Hear Say Yes in Joyce”, esse “sim” que se impõe a todo instante compromete a ideia de competência em geral atribuída a especialistas de um determinado assunto.98 Em