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357 POUND, Ezra, 1968, p 268.

358 POUND, Ezra, 1968, p. 268. 359 ELIOT, T. S., 1921, pp. 65 – 66. 360 Ibid., p. 64.

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tradutores renascentistas, tal como iniciado pelo Sr. Pound. Precisamos de um olho que possa ver o passado em seu lugar, com suas definidas diferenças em relação ao presente, e ainda assim tão vivo que deverá parecer tão presente para nós quanto o próprio presente. Esse é o olho criativo; e é porque o Professor Murray não tem instinto criativo algum que ele deixa Eurípides completamente morto.361 A necessidade de digerir os clássicos, de ver o passado “tão vivo que deverá parecer tão presente para nós quanto o próprio presente”, revela uma concepção sincrônica de literatura, comum a Eliot, Pound, Joyce e seus pares. Nesse sentido, as noções de “tradição” e “paideuma” atendem ao propósito de apresentar os clássicos em sua contemporaneidade, não como obras pertencentes a um passado que nos estrutura, mas como peças cujo classicismo resulta de seu tempo eternamente presente. Vale recordar os versos inicias do primeiro dos

Four Quartets: “Time present and time past / Are both perhaps present

in time future / And time future contained in time past. / If all time is eternally present / All time is unredeemable”.362

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Em fevereiro de 1902, às vésperas de completar vinte anos, James Joyce apresentou, na Sociedade Literária e Histórica do University College, em Dublin, seu estudo sobre o poeta irlandês James Clarence Mangan (1803 – 1849). De acordo com Richard Ellmann, a ênfase do estudo “era que Mangan, embora poeta nacionalista, fora negligenciado e perseguido pelos nacionalistas. Cabia a um irlandês com padrões europeus redescobri-lo”.363 Logicamente, a fala de Joyce, repleta de frases de efeito, constituía um ataque direto à elite intelectual irlandesa, e por isso deixou os membros da Sociedade Literária e Histórica em estado de choque. Dentre as máximas do estudo, destacam-se passagens como estas: “quando Mangan é lembrado em seu país (pois dele se fala

      

361 Ibid., p. 70.

362 “O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. / Se todo tempo é eternamente presente / Todo tempo é irredimível”.

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às vezes em sociedades literárias), seus conterrâneos lamentam que tamanha faculdade poética estivesse associada a uma conduta tão pouco exemplar, surpresos inclusive de encontrar esse dom em homem de

vícios exóticos e tão pouco patriota”;364 “Mangan permaneceu um

estranho em seu país, uma figura rara e antipática nas ruas, onde é visto

andando solitariamente como alguém que paga por pecados antigos”.365

Como se pode ver, Joyce traça o retrato de Mangan como artista exilado, ignorado entre os seus, antecipando assim a imagem que mais tarde reinvindicaria para si em sua obra.

Mais importante do que o retrato de Mangan, contudo, é o retrato que Joyce pinta de si mesmo em sua fala. Em outras palavras, ao classificar o poeta como o último dos “antigos bardos celtas”, presença incontornável porém esquecida por todos, Joyce assume implicitamente o papel de redescobridor de uma tradição perdida, muito embora “a redescoberta de Mangan já estivesse em curso há mais de quarenta anos, recebendo, na última década, um impulso decisivo através da liderança ativa de W. B. Yeats”.366 Ora, se a herança de Mangan estava sob os cuidados de Yeats, é certo que o objeto de estudo de Joyce já não era mais “uma figura rara e antipática nas ruas”, “um estranho em seu país”, pois Yeats gozava de grande prestígio nos círculos literários irlandeses do início do século XX. Por que razão, então, mascarar tal abandono justamente diante de um público até certo ponto familiarizado com a obra de Mangan? Segundo Heyward Ehrlich, num ensaio de título bastante sugestivo para esta discussão sobre o modernismo e a fabricação de tradições, “Inventing Patrimony: Joyce, Mangan, and the Self-Inventing Self”, Joyce articulou quatro pontos decisivos acerca da situação literária irlandesa naquele momento:

Em primeiro lugar, ele declarou que Mangan foi o poeta que mais bem definiu toda a tradição da poesia irlandesa. Em segundo, opinou que o futuro da poesia irlandesa dependia muito mais de Mangan do que de Yeats. Em terceiro, alegou desfrutar de uma relação privilegiada com

      

364 Idem (ed.). The Critical Writings of James Joyce. New York: Cornell University Press, 1989, p. 76.

365 ELLMANN, Richard (ed.). loc. cit.

366 EHRLICH, Heyward. “Inventing Patrimony: Joyce, Mangan, and the Self-Inventing Self”. In: GILLESPIE, Michael Patrick (ed.). Joyce Through the Ages: a nonlinear view. Gainesville: The University of Florida Press, 1999, p. 133.

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Mangan como seu herdeiro mais próximo e imediato. Finalmente, em quarto lugar, Joyce declarou que, ao explorar essa relação especial com Mangan, ele poderia começar a criar sua própria identidade literária.

Em sua fala, Joyce explora em particular o que há de ficcional na construção de Mangan como personagem literário: “Quando alguém lhe disse que o relato sobre seus primeiros anos de vida, tão cheio de coisas que de fato foram o princípio de seus lamentos, parecia um imenso exagero, e parcialmente falso, Mangan respondeu – 'Talvez eu o tenha sonhado'”.367 Assim, valendo-se de uma biografia que se reconhece como ficção, Joyce expande ainda mais a imagem do artista solitário, a ponto de confundir gradativamente a vida de Mangan com a sua: “É conhecedor de diversos idiomas – os quais exibe prodigiosamente quando a ocasião assim o exige –, e já leu extensivamente diversas tradições literárias [...]”.368 Conforme Seamus Deane expõe, “isso é Joyce disfarçado de Mangan. A competência linguística de Mangan

certamente não é dessa ordem”369. Se Joyce deseja ser o herdeiro direto

do poeta definidor da tradição irlandesa, sua estratégia não poderia ser mais precisa, uma vez que o retrato de Mangan por ele tecido confunde- se com seu autorretrato velado. Em suma, James Clarence Mangan passar a ser James Joyce, o último representante de uma tradição ainda viva graças a sua generosidade investigativa.

O esboço de um autorretrato disfarçado de elogio à tradição é uma constante nos ensaios críticos do autor de Ulysses. Em suas palestras sobre William Blake, Joyce redige novamente sua autobiografia antecipada, e a vida do escritor romântico passa a ser o próprio caminho trilhado por seu sucessor irlandês: “Tal qual inúmeros outros gênios, Blake não se sentia atraído por mulheres cultas ou refinadas. Às graças do salão e uma cultura ampla e fácil, preferia a mulher simples, de mentalidade obscura e sensual, ou, em seu egoísmo ilimitado, desejava que a alma de sua amada fosse por completo uma lenta e dolorosa criação sua [...]”.370 Como se sabe, a companheira de