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DSM II – 1968 134 páginas

O DSM-II segue a mesma perspectiva do DSM-I. Sobre minha busca no manual, o termo autismo não aparece. A seção denominada “Definição de Termos” traz pela primeira vez, no DSM II, a palavra autista, que aparece referindo-se a um tipo de psicose específica no item “III - Psicose não atribuída à condição física listada anteriormente”. A palavra “anteriormente” refere-se aos sujeitos que pertenceriam as duas subcategorias anteriores “IIB - Síndromes cerebrais não-psicóticas” e “IIA – Psicoses associadas com síndromes cerebrais orgânicas” pertencentes ao grande grupo das psicoses.

O autismo, portanto, era visto como um comportamento ligado à sujeitos psicóticos do tipo esquizofrênicos, como se pode ver na passagem abaixo:

295.8 Esquizofrenia do tipo infantil

Esta categoria é para casos em que os sintomas esquizofrênicos aparecem antes da puberdade. A condição pode manifestar-se por comportamento autista, atípico e retirado; incapacidade de desenvolver identidade separada da mãe; e anormalidade geral, imaturidade grosseira e inadequação no desenvolvimento. Esses defeitos de desenvolvimento podem resultar em retardo mental, que também deve ser diagnosticado. (Esta categoria é para uso nos Estados Unidos e não aparece na CID-8. É equivalente a "Reação esquizofrênica, tipo infantil" no DSM-I.) (APA, 1968, p. 35, grifo meu).

A palavra autista, nesse contexto, reforça a ideia de uma incompatibilidade entre cérebro e comportamento, de um desvio da normalidade, de um padrão que destoa negativamente dos demais sujeitos. Como mencionei anteriormente, as teorias psicanalíticas sobressaíam as demais teorias, por isso, nesse período, era comum focar nas relações entre mãe e filho, sendo a mãe a maior responsável pelo desenvolvimento dos filhos. Daí advém, por exemplo, a teoria

da “mãe-geladeira” em uma tentativa, atualmente obsoleta, de explicar a origem do autismo pela rejeição do afeto da mãe em relação à criança.

A segunda vez em que a palavra autista aparece no DSM-II tem seu contexto pouco modificado do DSM-I. Mais uma vez ela designa a ideia de um comportamento, de uma especificidade.

301.2 Personalidade esquizóide

Este padrão de comportamento manifesta timidez, excesso de sensibilidade, exclusivismo, evita relações próximas ou competitivas e, muitas vezes, excentricidade. O pensamento autista sem perda de capacidade de reconhecer a realidade é comum, assim como o sonhar acordado e a incapacidade de expressar hostilidade e sentimentos agressivos comuns. Estes pacientes reagem a experiências perturbadoras e conflitos com aparente desapego (APA, 1968, p. 42, grifo meu).

Há um micro direcionamento que, na escrita, parece sutil, mas por se tratar de um diagnóstico, pode mudar a vida dos sujeitos que o recebem. Tal micro direcionamento é assim disseminado: no item da esquizofrenia o comportamento é autista, já na personalidade esquizoide é o pensamento que é autista. Essa distinção faz parte do conjunto de elementos que dizem respeito a identidade de cada sujeito que se quer criar. A identidade esquizofrênica caracteriza um sujeito em que seu comportamento, entendido como o corpo sem um pensar estável, tende a dizer o bastante para a sociedade, por isso, basta que o comportamento seja autista para “validar” essa condição. Os pensamentos desses sujeitos esquizofrênicos pouco mudariam essa “verdade”, talvez até pudessem acentua-la. A outra identidade que se quer construir, da personalidade esquizoide, é de um sujeito com transtorno de personalidade, definida, fundamentalmente, a partir das manifestações do pensar, das elaborações intelectuais que o sujeito é capaz de fazer nas mais variadas relações, portanto, não há uma ênfase no corpo como na esquizofrenia. Então, dizer que um comportamento ou um pensamento é autista faz diferença à medida que são elementos singulares e, assim, auxiliam na criação de identidades distintas, dadas a partir de características “desviantes” do padrão esperado.

Ao longo dos manuais do DSM, do I ao 5, tais enunciações só são percebidas quando olhamos para o conjunto dos manuais até os dias atuais. Na Contemporaneidade, vivemos com tantas subdivisões diagnósticas que não conseguimos definir, por exemplo, onde um transtorno inicia e onde termina e, talvez, isso seja a própria lógica do diagnóstico em relação às doenças mentais. Essa tarefa de diagnosticar tende a ser complexa e as fronteiras entre as categorias diagnósticas são borradas, se incluem e se excluem continuamente, sendo possível um sujeito ter múltiplos diagnósticos. Por vezes, esses “borrões” tem uma intencionalidade impulsionada

por fatores externos à Psiquiatria, fatores como os investimentos políticos e econômicos, no caso do DSM é o país dos Estados Unidos que ocupa esse lugar de liderança. Mas, não é só isso, essa forma de construir conhecimento da Psiquiatria e as enunciações encontradas a partir dela, tornou possível um enunciado que tenho chamado, nesta Tese, de “fenômeno sujeitos com autismo”.

Para considerar o fenômeno sujeitos com autismo, além do que já mostrei até agora, é fundamental entender que o diagnóstico do “Transtorno do Espectro Autista (TEA)” do DSM- 5 não foi algo “descoberto” como um vírus que “aparece”. Para mim o autismo é uma forma diferenciada de ser humano em todos os seus sentidos possíveis. Um dos sentidos fundamentais encontra-se no saber médico-psiquiátrico, que foi estrutural para conceber o autismo na atual forma que o conhecemos. De forma consciente, os profissionais dessa área foram guiados por valores morais, econômicos e políticos a ampliar suas possibilidades de intervenção.

Sobre esse ato consciente, na década de 60, é confirmado no DSM-II:

Os próximos anos serão, sem dúvida, testemunho de novos progressos neste campo, como resultado do uso crescente de métodos automatizados de processamento de dados em hospitais mentais, hospitais gerais e outras instalações onde serviços psiquiátricos são prestados. Estes métodos permitirão introduzir mais melhorias na gestão e utilização de registos para aperfeiçoar os cuidados prestados aos pacientes e facilitar a elaboração de estatísticas mais extensas sobre o diagnóstico e as características relacionadas dos pacientes sob cuidados em estabelecimentos psiquiátricos (APA, 1968, p. 53).

Métodos e tecnologias, investimentos políticos e econômicos pareciam estar garantidos pelo Estado e empresas privadas na passagem acima. Nesse mesmo período histórico, buscava- se pela possibilidade de mais consumo, de maiores salários e outras vantagens relacionadas a alguma estabilidade. A busca alcançou a exigência renovada pela qualidade de vida. Viver mais, para alguns sujeitos, significou classificar os seres humanos nas mais diversas categorias. Esse movimento baseado na ideia moderna de progresso que “significa que toda ação humana visa a um aperfeiçoamento, e que a própria história é portadora de um impulso nessa direção” (BORDONI; BAUMAN, 2016, p. 141), tornou o consumismo a apoteose da Modernidade, na qual o trabalho passou a ser uma obrigação moral e parte identitária dos sujeitos. Então, nada mais conveniente do que os psiquiatras se fortalecerem criando um mecanismo de consumo envolvendo a ideia de qualidade de vida dentro de sua própria profissão. Diagnósticos, do ponto de vista ontológico, podem ser considerados como instrumentos de cuidado da espécie e também como meio de consumo dos próprios seres humanos. Na Contemporaneidade,

tornamo-nos sujeitos-produtos e como tais somos vendidos em consultas, exames e remédios, circulando por diferentes especialistas. Uma realidade facilmente reconhecida na fala das famílias de sujeitos com autismo.

Retornando ao DSM-II, apesar da não-aparição da palavra autismo, ela se sustentou por sua adjetivação “autista” e pela lógica da forma diagnóstica que buscava ampliar suas possibilidades. Importante é lembrar que meu foco, nessa jornada, é o autismo como modo de ser através dos DSMs. Outros pesquisadores têm se dedicado a problematizar esses documentos e a partir disso estranhar o que nos é naturalizado como, por exemplo, os transtornos ou as condições e problemas referidos pelos psiquiatras da APA nos DSMs. Algumas problematizações já foram pensadas nesse sentido e, por isso, destaco o trabalho de Burkle (2009) intitulado “Uma Reflexão Crítica sobre as edições do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais — DSM”. A meu ver, entre teses e dissertações do banco da CAPES, é um dos textos que mais se dedica a explorar diferentes elementos ao longo das cinco versões do DSM. Na pesquisa, a autora discorre seus anseios em três partes: contextualização histórica e criação do DSM, as mudanças ocorridas nos textos dos DSMs e o lançamento do DSM-5. A partir dessa organização, a pesquisadora conta uma história tendo como fio condutor “a forma de conceber o diagnóstico e as próprias categorias diagnósticas apresentadas no DSM em todas as suas edições” (BURKLE, 2009, p. 13).

Avanços, atravessamentos, ampliações e mudanças que têm acontecido nos últimos sessenta e oito anos, desde a primeira publicação do DSM em 1952, trazem implicações para o cotidiano individual e coletivo dos sujeitos.

Houve uma multiplicação dos diagnósticos para explicar os sintomas entre o DSM-I e o DSM-IV. Talvez essa multiplicidade de diagnósticos por um lado ajude o clínico a diagnosticar, mas por outro lado o distancia da compreensão do paciente, forçando o surgimento de um número cada vez maior de diagnósticos. Quando os diagnósticos são abrangentes, eles podem ser usados para muitos pacientes, se são muito específicos, não podem ser usados com muitos pacientes, o que gera a necessidade da criação de cada vez mais diagnósticos. É talvez essa proliferação sem fim um fator importante que indica a insuficiência do ideal descritivo inicial da psiquiatria biológica, provocando o surgimento de diagnósticos dimensionais, de transtornos relacionais, de um retorno ao subjetivo, etc. (BURKLE, 2009, p. 97).

A continuidade de minha análise, portanto, adentra o DSM-III, entendendo que em sua leitura há uma mudança paradigmática de perspectiva, da Psicanálise para a Psiquiatria biológica, além das categorias diagnósticas passarem a ser menos explicativas e mais objetivas,

procurando por causas na organicidade de cada sujeito. Dito isso, apresento a recorrência da palavra autismo e autista no DSM III.