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DSM III – 1980 494 páginas

O DSM-III traz inúmeras novidades, dentre elas: a palavra autismo aparece cinquenta e cinco vezes e a palavra autista apenas uma. É a primeira vez que o autismo desponta como categoria diagnóstica, como entidade noosográfica do manual. A mudança de perspectiva, da psicanalítica freudiana para uma Psiquiatria biologicizada, supostamente “ateórica”, eliminou as explicações que dizem respeito aos aspectos ambientais, sociais, culturais e políticos que envolvem o sujeito (o que a psicanálise tentou fazer nos dois primeiros manuais, mas não obteve sucesso por ter sido um tanto radical, principalmente, em relação às mães).

Essa versão do DSM foi um grande marco dentre as cinco versões do manual, pois:

O DSM-III provocou uma reviravolta na imagem da psiquiatria. Afastando-se da psicanálise, que não deixava de reconhecer a importância das considerações de ordem teórico-etiológica, a psiquiatria pôde justificar o seu sistema classificatório, ou seja, a focalização do sintoma nele mesmo, na medida em que a pura observação empírica das manifestações de comportamento (sua presença, constância e intensidade) passa a ser o critério utilizado no diagnóstico (COUTINHO, et al, 2013, p. 64).

A mudança de paradigma não foi uma mudança de algo melhor para algo pior, foi uma mudança no modo de olhar. Esse novo modo criou outras condições de possibilidades para que um entorno — indústrias farmacêuticas, indústrias tecnológicas, modelo de Educação/formação em especialidades médicas e outros — se fortalecesse com o modelo psiquiátrico de lidar com as psicopatologias. Se o modelo psicanalítico tivesse prevalecido, provavelmente os problemas que enfrentamos agora seriam outros, nem melhores, nem piores. Minha análise não é em defesa de nenhum modelo, discorro apenas sobre alguns elementos que aparecem no decorrer da historicidade dos manuais, sobre uma história que se fez das escolhas políticas e econômicas de cada época com o interesse na construção dessa subjetividade denominada autismo.

No DSM-III, o autismo aparece como categoria diagnóstica designada “Autismo Infantil” dentro de uma ampla e nova categoria chamada de “Transtornos Invasivos do Desenvolvimento”. Além das novas categorias diagnósticas, que se tornaram uma característica crescente a cada atualização do manual (BURKLE, 2009), é possível perceber a associação da infância como um território de demarcação.

Interessava aos médicos de então tratar o que se configurava como desordens das condições das crianças em se tornarem adultos plenos no exercício de suas funções intelectuais e morais. Não é por acaso, então, que os historiadores da psiquiatria afirmam que nesse período a patologia fundamental recortada no campo médico para a criança fosse a idiotia – retardo mental –, sendo que esta não tinha estatuto de doença mental (GUARIDO, 2007, p. 155)

O Autismo Infantil é assim denominado, pois, é observado em crianças. Essa categoria, entendida como psicopatológica, surge em aliança ao governamento da infância na Modernidade. Não é um acaso o autismo ser infantil, é uma leitura possível porque há um direcionamento do olhar para a criança, atrelado a ascensão da Medicina. Na década de 80, os adultos com autismo ainda não são reconhecidos porque a infância é focada, tanto que os novos transtornos do DSM em questão (DSM-III) como Hiperatividade, Déficit de Atenção e Movimentos Estereotipados são todos ligados, primordialmente, à infância, além de haver a ampliação de subcategorias em diagnósticos como o de Retardo Mental. Com a permanência desses diagnósticos ao longo dos manuais, o olhar se expande também para a vida adulta.

O Autismo Infantil, assim definido a partir do DSM-III, aparece também como “Diagnóstico Diferencial” de vários outros diagnósticos ao longo do DSM-III, prática que perdurou nos manuais seguintes. Um desses exemplos é o diagnóstico de “307.52 Pica”:

A característica essencial é a ingestão persistente de uma substância não nutritiva. Os bebês com a desordem comem tipicamente a pintura, o emplastro, a corda, o cabelo, ou o pano. As crianças mais velhas podem comer excrementos de animais, areia, insetos, folhas ou seixos. Não há aversão à comida (APA, 1980, p. 71).

Logo abaixo da descrição do diagnóstico de Pica é referenciado o seguinte: “Diagnóstico diferencial. No autismo infantil, esquizofrenia, e certos distúrbios físicos, tais como a síndrome de Klein-Levin, substâncias não nutritivas podem ser comidas. Em tais casos, Pica não deve ser observado como um diagnóstico adicional” (APA, 1980, p. 72). Meu destaque é para pensar que essa subcategoria de diagnóstico diferencial torna as fronteiras entre diferentes diagnósticos mais próximas, complexas e, por muitas vezes, difíceis de serem distinguidas, pois, um jogo de exclusões e inclusões se estabelece baseada nas características ligadas ao comportamento do sujeito. Como afirmei, anteriormente, são fronteiras borradas e com o jogo de incluir e excluir características, há a possibilidade da invenção de novos diagnósticos, novas nomeações que criam e transformam identidades.

Nesse mesmo sentido, a estatística, herança do conhecimento humano, foi e continua sendo fundamental nas descrições diagnósticas do manual. A passagem da página 89 do DSM-

III, por exemplo, alerta os sujeitos da maior possibilidade do nascimento de crianças com autismo em famílias que já há uma criança com o transtorno, assim denominado por eles. “Padrão Familiar. A prevalência do autismo infantil é 50 vezes maior em irmãos de crianças com o transtorno do que na população em geral” (APA, 1980, p. 89). A partir das estatísticas, o diagnóstico de Autismo Infantil também é diferenciado em “completo ou residual”, designando os mesmos critérios diagnósticos, mas variado em intensidade.

Um destaque muito importante é que a complexidade estabelecida na composição do manual segue uma lógica interna de ampliação, baseada no comportamento dos sujeitos e uma lógica externa, de organização em rede, por isso, é importante a explicação do que compreende o diagnóstico em si e também o que o cerca, o que vem antes e depois de cada diagnóstico no manual. Assim, após o diagnóstico de Autismo Infantil, aparece o “Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem (315.31)”. A linguagem e as formas de comunicação são elementos que auxiliam no diagnóstico do autismo, pois, presume-se que há dificuldade ou inadequação na comunicação dos sujeitos e a linguagem é entendida, basicamente, como sinônimo de comunicação. Essa forma de compreensão está inserida na tradição das lógicas permanentes da linguagem (linguagem como expressão exteriorizada, como a fala sendo uma atividade humana e como ferramenta para identificar o real ou o irreal, já mencionadas no capítulo dois desta Tese). É primordial entender que o detalhamento do diagnóstico de autismo está reforçado em outros diagnósticos, anteriores e posteriores, como uma rede que se amplia a cada revisão do manual. Por isso, tem um significado específico o exemplo que dei sobre o transtorno da linguagem vir na sequência do Autismo Infantil. Infelizmente, não aprofundarei a análise da disposição dos diagnósticos neste texto, de qualquer maneira é importante sabe-lo para outras pesquisas futuras.

Além dos fatores expostos, há também aquele que diz respeito a faixa etária descrita no DSM-III, que irá repercutir até os dias atuais. A indicação de que os sintomas aparecem, principalmente, até os trinta meses é um elemento que balizará as intervenções médicas, além de influenciar a construção da perspectiva inclusiva dos sujeitos com transtornos em diferentes ambientes sociais. Destaco que essa ideia da intervenção precoce e dos fatores de risco fazem parte das práticas biopolíticas derivadas do Biopoder, um modo contemporâneo de governar os sujeitos que se torna visível pela disseminação de práticas, tendo como base os interesses políticos e econômicos do sistema neoliberal.

Então, por um lado, a condição de um ser um sujeito com autismo é complexa e diferentes intervenções trazem contribuições significativas para a vida desses sujeitos, por outro lado, esse sistema de identificar riscos precocemente tem levado os sujeitos em geral a um

estado de alerta e desconfiança permanentes. Somado a isso, há o investimento econômico no governamento das crianças e na disseminação das políticas de inclusão escolar que designam um custo menor para o Estado.

Desse modo, entendendo as políticas públicas de inclusão escolar como manifestações da governamentalização do Estado na Contemporaneidade, é fácil compreendê-las como políticas envolvidas com (e destinadas a) uma maior economia entre a mobilização dos poderes e a condução das condutas humanas. Dizer que as práticas de inclusão escolar promovem uma maior economia é duplamente verdadeiro. De fato, em termos financeiros, a fórmula “escolas inclusivas & serviço de atendimento educacional especializado” representa menores despesas para os cofres públicos do que a fórmula “escolas especiais & escolas comuns”. Mas, além da economia financeira, há também uma maior economia política em termos do menor dispêndio das ações sobre ações que visam a governamentalização do Estado, nos termos propostos por Foucault. Isso está claramente sintetizado por Baker (1994, p. 198), quando ele diz que “a governamentalidade objetiva atingir o máximo resultado a partir de uma aplicação mínima de poder” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 9).

Além disso, no jogo de poder das economias, há um investimento econômico específico para manter a indústria farmacêutica com um status próprio de solução, portanto, o uso de medicamentos para sujeitos com autismo é algo, basicamente, inquestionável e reforçado pelas características descritas nos DSMs.

A indústria farmacêutica é hoje a principal força econômica relacionada à saúde, movimentando anualmente 350 bilhões de dólares e crescendo a uma taxa de 14% ao ano. Só no ano de 2001, novas drogas utilizadas no tratamento de doenças cardiovasculares e do sistema nervoso central renderam 90 bilhões de dólares aos maiores laboratórios mundiais. [...] Dentre as estratégias mais utilizadas pelas empresas farmacêuticas para lidar com essa “guerra terapêutica” e criar mercados para os produtos que desenvolvem, está a promoção de campanhas agressivas para mudar os hábitos de prescrição dos médicos e o alargamento das fronteiras do que é considerado doença, com o objetivo de fomentar um entendimento médico para situações difíceis da existência e produzir uma medicalização da vida cotidiana (AGUIAR, 2003, p. 8-9).

O processo de medicalização62 não teve data de inauguração, ele culminou diante dos investimentos no saber médico de forma gradativa, como pode ser visto no capítulo três. De

62 O percurso entre os diferentes autores e os debates em torno do conceito de medicalização nos permitiu evidenciar sentidos diferentes e não necessariamente autoexcludentes, dentre os quais se destacam: a) práticas massivas de intervenção sobre o espaço público; b) transformação de comportamentos transgressivos e desviantes em transtornos médicos; 3) controle social e imperialismo médico; 4) processo irregular que envolve agentes externos à profissão médica (ZORZANELLI; ORTEGA; BEZERRA JÚNIOR, 2014).

acordo com as indicações que fiz, a medicalização relacionada ao autismo se fortaleceu pelas práticas assumidas, por exemplo, na repetição da palavra autismo por cinquenta e cinco vezes. A palavra autista, também objeto de minha procura, apareceu uma única vez, referindo-se ao item “301.2 Transtorno de Personalidade Esquizoide”, onde o foco passou do “pensamento autista” para “preferências autistas”. O que antes parecia estar sendo localizado no pensamento e comportamento, agora anuncia seu lugar em uma categoria maior, uma condição que define um sujeito fora dos padrões de normalidade desejado.

Em síntese, o DSM-III é o manual que inicia o reconhecimento do autismo como uma condição e, por isso, inúmeras outras áreas passam a se dedicar sobre essa forma de ser humano. Os elementos trazidos sobre o DSM-III continuarão presentes nas próximas duas edições do manual e serão essenciais para a ampliação diagnóstica dos sujeitos com autismo.