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O DSM-5, publicado nove anos depois do DSM-IV, trouxe consigo a consolidação do diagnóstico de autismo e a já prevista ampliação geral dos diagnósticos. Nesse manual, novos diagnósticos e uma reorganização daqueles já existentes está visível. O DSM-5 traz apenas cinco vezes a palavra autismo e elas se reportam a própria concepção do diagnóstico, lembrando, por exemplo, como o diagnóstico foi nomeado nos estudos iniciais sobre o assunto. Contudo, o que salta à leitura é o aparecimento da palavra autista, escrita por cento e oitenta e sete vezes e disseminadas ao longo do manual, com uma concentração maior na escrita específica do que se entende por autismo.

A primeira vez em que a palavra autista aparece é na mudança do nome do diagnóstico, que sai da categoria de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (a qual compreendia o 299.00 Transtorno Autístico, 299.10, o Transtorno Desintegrativo da Infância, a 299.80 Síndrome de Asperger (SA), a 299.80 Síndrome de Rett (SR), 299.80 o Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Não Especificado) e passa a fazer parte de uma categoria em si mesma, denominada “299.00 Transtorno do Espectro Autista (TEA)”. A SR sai do foco do TEA, porém, ainda aparece como um diagnóstico diferencial, uma doença genética que pode ser associada a

sujeitos com deficiência intelectual e/ou TEA. As demais síndromes e transtornos que integravam o autismo (Transtorno Autístico, Transtorno Desintegrativo da Infância, Síndrome de Asperger e o Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Não Especificado) passam a não existir mais da mesma forma.

O autismo, agora, é identificado como Transtorno do Espectro Autista.

Manifestações do transtorno também variam muito dependendo da gravidade da condição autista, do nível de desenvolvimento e da idade cronológica; daí o uso do termo espectro. O transtorno do espectro autista engloba transtornos antes chamados de autismo infantil precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo atípico, transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno desintegrativo da infância e transtorno de Asperger (APA, 2013, p. 53).

Apesar da modificação mínima do entendimento, do DSM-IV para o DSM-5, há uma importante modificação da prática clínica que deverá não mais se prender ou preocupar-se em encaixar o sujeito em um dos diagnósticos dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, mas, sim, observar o “nível de gravidade” das características observadas em dois segmentos: “comunicação social” e “comportamentos restritos e repetitivos”. Tais segmentos já eram marcados nos diagnósticos fragmentados que pertenciam ao DSM-IV. Agora, a impossibilidade da nomeação dos diagnósticos específicos e o foco nas características dos sujeitos, permitem uma ampliação dos diagnósticos de TEA à medida que são os níveis (nível 1 — exigindo apoio, nível 2 — exigindo apoio substancial e nível 3 — exigindo apoio muito substancial) que determinam um sujeito ser incluído no diagnóstico. Em outras palavras, no DSM-IV os níveis de gravidade das características pertenciam a cada diagnóstico específico que compunha a categoria dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, já no DSM-5, os níveis de gravidade das características pertencem diretamente a um único e grande transtorno TEA.

1. DSM-IV (1994) 2. DSM-5 (2013)

1. No DSM-IV os critérios observados em cada diagnóstico eram: prejuízos na interação social, na comunicação e padrões de comportamento, interesses e atividades estereotipados, restritos e repetitivos. Tais critérios variavam em leve, moderado e severo.

2. No DSM-5, os critérios A e B somam-se ao critério C (início da infância) e D (prejuízo do funcionamento diário). Variam em níveis 1, 2 e 3.

Parece que o foco no comportamento para o diagnóstico de autismo ficou ainda mais evidente. Essa ideia legitima toda a mobilização atual para a identificação precoce dos chamados sinais de risco. Os desdobramentos desse modo de entender o autismo parece traçar, para os próximos anos, uma projeção ainda mais ascendente dos diagnósticos. Outro motivo para corroborar com essa afirmação, é que o TEA está marcado em outros diagnósticos do DSM como um “diagnóstico diferencial”. Um exemplo disso está no Diagnóstico Diferencial do “315.39 Transtorno de Comunicação Social (Pragmática)”:

Transtorno do espectro autista. O transtorno do espectro autista é a consideração diagnostica primária para indivíduos que apresentam déficits na comunicação social. Os dois transtornos podem ser diferenciados pela presença, no transtorno do espectro autista, de padrões restritos/repetitivos de comportamento, interesses ou atividades e pela ausência deles no transtorno da comunicação social (pragmática). Indivíduos com transtorno do espectro autista podem apresentar os padrões restritos/repetitivos de comportamento, interesses e atividades apenas durante o período inicial do desenvolvimento, tornando necessária a obtenção de uma história completa. Ausência atual de sintomas não excluiria um diagnóstico de transtorno do espectro autista se os interesses restritos e os comportamentos repetitivos estivessem presentes no passado. Um diagnóstico de transtorno da comunicação social (pragmática) deve ser considerado tão somente quando a história do desenvolvimento não

Transtornos Invasivos do Desenvolvimento Transtorno Autístico. Síndrome de Asperger. Síndrome de Rett. Transtorno Desint. da Infância. Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Não Especificado. Transtorno do Espectro Autista (TEA) A. Prejuízos na Comunicação e Interação Social. (nível 1,2,3) B. Comportamentos restritos e repetitivos. (nível 1,2,3)

revelar nenhuma evidência de padrões restritos/ repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (APA, 2013, p. 49).

No manual há uma hierarquia sobre a comunicação e a linguagem que segue o modelo predominante na sociedade. Para a estrutura do DSM-5, a comunicação é uma categoria mais ampla que compreende tipos de linguagem. Essa relação mostra que o foco é o funcionamento social dos sujeitos e a comunicação entre os mesmos. A comunicação é citada como uma grande categoria (Transtornos da Comunicação) e em subcategorias diagnósticas. Já a linguagem aparece em segundo plano e é nomeada quando é preciso dizer algo específico do/no indivíduo como, por exemplo, o item “315.32 Transtorno de Linguagem”:

Costuma afetar vocabulário e gramática, e esses efeitos passam a limitar a capacidade para o discurso. As primeiras palavras e expressões da criança possivelmente surgem com atraso; o tamanho do vocabulário é menor e menos variado do que o esperado, e as frases são mais curtas e menos complexas, com erros gramaticais, em especial as que descrevem o passado. Déficits na compreensão da linguagem costumam ser subestimados, uma vez que as crianças podem se sair bem em utilizar contexto para inferir sentido. Pode haver problemas para encontrar palavras, definições verbais pobres ou compreensão insatisfatória de sinônimos, múltiplos significados ou jogo de palavras apropriado à idade e à cultura. Problemas para recordar palavras e frases novas ficam evidentes por dificuldades em seguir instruções com mais palavras, dificuldades para ensaiar encadeamentos de informações verbais (p. ex., recordar um número de telefone ou uma lista de compras) e dificuldades para lembrar seqüências sonoras novas, uma habilidade que pode ser importante para o aprendizado de palavras novas. As dificuldades com o discurso são evidenciadas pela redução da capacidade de fornecer informações adequadas sobre eventos importantes e de narrar uma história coerente (APA, 2013, p. 42).

Esse é um modo de entendimento da tradição das lógicas permanentes da linguagem que perpetuamos na historicidade humana (HEIDEGGER, 2003). Meu entendimento de linguagem não é inverso a este, mas mais amplo, pois, busco o equilíbrio entre as concepções de comunicação e linguagem, sinalizando que esta última não se restringe apenas a capacidade linguística do sujeito. A linguagem como um caminho que se faz (HEIDEGGER, 2003) é uma dimensão existencial que se constrói permanentemente a partir do que é vivo, nesse sentido, a ancestralidade, a cultura, a condição econômica, a organicidade, entre outros elementos se entrelaçam e constituem a linguagem. Trata-la dessa maneira, pode mudar o olhar patológico para um outro olhar, logo, trata-se de uma mudança relacionada a qualquer sujeito e não apenas do sujeito com autismo. Por conta disso, essa perspectiva ampla da linguagem pode beneficiar as possibilidades de apenas ser. Acredito que essa seja uma das implicações da compreensão

do fenômeno sujeitos com autismo para a Educação, pois, nessa área de saber se pode conduzir as condutas dos sujeitos de forma bastante singular. Então, deixar ser, deixar que o sujeito se mostre pode ser um primeiro passo para a linguagem como endosso nesta Tese, como um caminho que se faz.

Sobre o DSM-5 ainda, embora a APA justifique em sua introdução que fatores culturais devem ser considerados, pois, podem alterar o entendimento de uma psicopatologia e dificultar ou favorecer o tratamento da mesma, tal justificativa não parece estar presente na prática proposta. Os diagnósticos aumentaram e o manual mostra uma intenção de homogeneizar as práticas dos psiquiatras em diagnosticar patologias, inclusive de profissionais sem a especialidade. Abaixo alguns sinais sobre o que menciono.

A organização proposta dos capítulos do DSM-5, após os transtornos do neurodesenvolvimento, baseia-se em grupos de transtornos intemalizantes (emocionais e somáticos), transtornos extemalizantes, transtornos neurocognitivos e outros transtornos. Espera-se que essa organização estimule mais estudos sobre processos fisiopatológicos subjacentes de forma a espelhar a realidade clínica, o DSM-5 deve facilitar a identificação de potenciais diagnósticos por profissionais sem especialização na área da saúde mental, como médicos da atenção primária (APA, 2013, p. 13-14).

A escolha anunciada pelo grupo de profissionais que elaborou o DSM-5, coordenado pelo psiquiatra David Kupfer, parece contradizer a ideia por eles anunciada, a saber:

Os limites entre normalidade e patologia variam em diferentes culturas com relação a tipos específicos de comportamentos. Os limiares de tolerância para sintomas ou comportamentos específicos são diferentes conforme a cultura, o contexto social e a família. Portanto, o nível em que uma experiência se torna problemática ou patológica será diferente. O discernimento de que um determinado comportamento é anormal e exige atenção clínica depende de normas culturais que são internalizadas pelo indivíduo e aplicadas por outros a seu redor, incluindo familiares e clínicos. A consciência da importância da cultura pode corrigir interpretações errôneas de psicopatologia, mas a cultura também pode contribuir para vulnerabilidade e sofrimento (p. ex., ao amplificar temores que perpetuam o transtorno de pânico ou ansiedade em relação à saúde). Significados, costumes e tradições culturais também podem contribuir para o estigma ou apoio na reação social e familiar à doença mental. A cultura pode fornecer estratégias de enfrentamento que aumentam a resiliência em resposta à doença ou sugerir a busca de auxílio e opções de acesso à assistência à saúde de diversos tipos, incluindo sistemas de saúde alternativos e complementares (APA, 2013, p. 14).

A contradição entre considerar os aspectos culturais e disseminar a prática diagnóstica psiquiátrica é algo importante sobre o manual, sobretudo, em relação ao diagnóstico de autismo.

Embora tenha havido uma reagrupação dos diagnósticos, tal movimento não foi para diminuir a quantidade dos mesmos, foi para flexibilizar os critérios diagnósticos, para torna-los mais rápidos, uma vez que os diferentes eixos que eram considerados no sistema multiaxial não existem mais, já que tal sistema foi eliminado deste manual. Assim, as deficiências intelectuais, os transtornos de comunicação, transtorno do espectro autista, transtorno de deficit de atenção/hiperatividade, transtorno específico da aprendizagem e os transtornos motores que eram categorias individuais foram agrupados em uma única categoria denominada “Transtornos do Neurodesenvolvimento”. Portanto, uma das facetas da flexibilidade anunciada na escrita do manual parece objetivar a abrangência do maior número possível de sujeitos.

Para dar continuidade à abrangência diagnóstica, no DSM-5 foi inventada uma categoria de problemas a serem “considerados” pela observação clínica como potenciais situações que podem desencadear transtornos, síndromes ou outras patologias que venham a prejudicar o sujeito em sua vida social. Os aspectos culturais, sociais, ambientais agora aparecem não para estabelecer uma relação de singularidade do sujeito, mas para serem observados e, assim, ser possível identificar potenciais anormalidades. A nova categoria foi nomeada após os “Transtornos do Movimento Induzidos por Medicamentos e Outros Efeitos Adversos de Medicamentos”, como: “Outras Condições que Podem ser Foco de Atenção Clínica” (APA, 2013). Essa categoria diagnóstica compreende os seguintes subitens: Problemas Relacionados à Educação Familiar; Outros Problemas Relacionados a Grupo de Apoio Primário; Abuso e Negligência: Problemas de Maus-tratos e Negligência Infantil e Problemas de Maus-tratos e Negligência de Adultos; Problemas Educacionais ou Profissionais; Problemas de Moradia e Econômicos; Outros Problemas Relacionados ao Ambiente Social; Problemas Relacionados a Crimes ou Interação com o Sistema Legal; Outras Consultas de Serviços de Saúde para Aconselhamento e Opinião Médica; Problemas Relacionados a Outras Circunstancias Psicossociais, Pessoais e Ambientais; Outras Circunstâncias da História Pessoal e Problemas Relacionados ao Acesso a Atendimento Médico ou Outro Atendimento de Saúde e, por fim, Não Adesão a Tratamento Médico.

Minha extensa descrição é para destacar o que está contido nesse contexto que o DSM- 5 e a prática psiquiátrica querem intervir, que trata os próprios medicamentos e problemas cotidianos como potenciais elementos diagnósticos. No contexto escolhido parece caber tudo. Não consigo entender que alguma situação cotidiana tenha escapado desse rol de problemas anunciados no DSM-5. Essa sequência de que tudo pode ser um problema é perfeitamente entendida a partir da lógica da medicalização instaurada nos últimos séculos e pela ascensão do saber médico a partir de um sistema neoliberal de governamento dos sujeitos. A lógica da

medicalização prevê o contínuo tratamento, jamais a sua cura por completo, pelo menos não a cura de toda e qualquer doença. Não é interessante para as indústrias farmacêuticas que o paciente se cure, mas que ele consuma uma variedade de medicamentos. Então, o “falatório” (Heidegger, 2005b) de fazer o “bem” aos seres humanos, de trazer a cura ou amenizar os sintomas é algo inquestionável. Essa situação, de maneira ampla, está inserida na lógica de que a sociedade de produção deu lugar à sociedade de consumo nos últimos dois séculos (BAUMAN; BORDONI, 2016). Na reunião de todos esses fatores,

O discurso da Psiquiatria Biológica continua triunfando hegemônico na Universidade, na mídia e na sociedade. A pouca sustentação teórica parece não oferecer nenhum obstáculo à promoção da Psiquiatria Biológica como discurso da Verdade sobre os transtornos mentais. Pelo contrário, o discurso da Psiquiatria Biológica parece funcionar perfeitamente através de hipóteses teóricas fragmentadas, em que cada identificação de uma correlação entre sintomas e processos biológicos, por mais insignificante que seja, é tomada como uma vitória parcial, que anuncia todas as outras que supostamente virão, encorpando assim a grande promessa: “Um dia demonstraremos as causas biológicas da esquizofrenia, da depressão, etc.” (AGUIAR, 2003, p. 3)

Nesse sentido, em diálogo com diferentes profissionais da saúde é possível entender que o autismo, um diagnóstico em permanente construção, está aberto e ampliado para diferentes intervenções. Os medicamentos são apenas um dos elementos que fazem parte desse jogo diagnóstico. Além disso, os hospitais, como instâncias suficientemente respeitadas socialmente, têm a liberdade para testar medicamentos de acordo com o conhecimento científico, sem, necessariamente, a aprovação de uma instância superior, no caso do Brasil, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Há investimentos bilionários em centros de pesquisa do mundo todo para a descoberta das causas do autismo e por possibilidades de intervenções que abrangem o uso de medicamentos, mesmo sendo entendido que o tratamento de um sujeito com autismo deva ser multidisciplinar, como pode ser visto no documentário Autism Enigma (2006). Assim, estas são algumas considerações sobre o contexto das cento e oitenta e sete vezes da palavra autista no atual DSM-5.

Sobre os manuais, a análise fenomenológica relacionada ao autismo considerou aquilo que se mostra nas relações. A busca das palavras autismo e autista mostrou que no processo de escrita e elaboração dos DSMs, as condições necessárias para a emergência do autismo como espectro foram construídas de edição em edição. Além disso, essa construção faz parte de uma lógica na qual a Psiquiatria ascendeu sem precedentes como uma das engrenagens que sustentam essa era do Biopoder, do poder sobre a vida. “Em suma, as estratégias mobilizadas

para governar as populações constituíram-se na ordem da biopolítica e desde então apoiaram- se no biopoder” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 9).

O autismo, por meio do saber científico, está firmado e resta aos sujeitos diagnosticados, bem como, suas famílias, buscar por tratamentos que amenizem o sofrimento (uma das principais orientações das áreas da saúde). No entanto, o estar-junto, o ser-com desses sujeitos mostram uma resistência que está no próprio estar-junto. Acontecimento que tem transformado a compreensão sobre os sujeitos com autismo. É isso que alguns autores têm se dedicado a mostrar em outras áreas do conhecimento, seja por pronunciamentos dos próprios sujeitos com autismo, seja pela imersão profunda dos pesquisadores na vida cotidiana desses sujeitos mostrando-os em diversas mídias (VASQUES, 2009; CARAMICOLI, 2013, ORTEGA et al, 2013; VALTELLINA, 2015; FREITAS, 2015, NADESAN 2013, 2016; entre outros). Portanto, o fenômeno sujeitos com autismo está implicado pelas ações que se escolheu fazer como espécie humana.

Assim, a ideia de que o DSM-5 estaria quebrando paradigmas porque saiu de um modelo categorial para um modelo dimensional (MATOS; MATOS; MATOS, 2005) pode até mudar o agrupamento dos diagnósticos, mas não muda a perspectiva de linguagem, aliás, não quebra nenhum paradigma. Embora os sujeitos com autismo carreguem a tarja de que não se comunicam adequadamente, os sujeitos entendidos como “normais” tem tantas (se não mais) dificuldades, impedimentos, prejuízos relacionados a comunicação do que sujeitos com autismo. Portanto, há uma disputa dos sujeitos considerados “normais” em fazer com que sujeitos com autismo aprendam a forma padrão de se comunicar. “De modo geral, somente quando os sujeitos falam por palavras são percebidos como tais (sujeitos) e obtêm escuta do mundo” (FREITAS, 2015, p. 103). Essa ideia obsoleta, também criticada por Freitas, tem sido perpetuada pelos DSMs e minha intenção é trazer a possibilidade da linguagem como algo mais amplo, como um caminho que se faz, motivada, principalmente, pela ideia de que a linguagem como linguagem em sujeitos com autismo acontece de maneira distinta. Pode ser possível, portanto, que formas de linguagem com menos classificações, rótulos, remédios, padrões e outras normas sejam investidos.

ABERTURA 24 – Caminhar. Denis – D10: Ao chegar no trabalho, me deparo com a professora Daiana um pouco abatida. Tomando um café pergunto a ela se posso ajudar em algo e ela imediatamente responde: “Acho que só tu podes me ajudar nesse momento!”. Fico curiosa para saber do que se trata e ela me diz ser sobre Denis, um menino com autismo de cinco anos que chegou há duas semanas na escola para sua turma de pré-escola. Daiana me diz que não sabe o que fazer com ele, pois, a turma tem vinte crianças de cinco anos em uma sala extremamente apertada. Denis não consegue parar de caminhar e há pouco espaço para fazê-lo em sala. Daiana

não consegue conciliar algo útil para que ele, de alguma forma, se adapte à ideia de parar ou sentar. Soa o sinal de início da manhã de trabalhos na escola. Sinalizo para irmos para a sala de Daiana e pensarmos juntas o que pode ser feito. Ela cumprimenta as crianças e estas se sentam nas cadeiras. Denis chega alguns minutos depois e está a caminhar pela sala. Os alunos olham para ele como se não entendessem o que está acontecendo. Um dos alunos diz: “Professora, manda ele sentar, ele quase derrubou meus lápis!”. Ela diz: “Olha aí Vanessa, é o tempo todo assim!”. Pergunto a ela o que ela tem planejado para o primeiro momento e ela me diz ser uma atividade de desenho com base no que eles sonharam. Enquanto isso, algumas crianças conversam em pequenos grupos próximos as suas carteiras, outras estão mexendo em seus respectivos materiais. Daiana diz que vai distribuir as folhas brancas para que eles desenhem. Nesse momento, Denis, caminhando, pega uma folha e leva até uma carteira vazia. Ao lado da professora, tenho o insight de estimular Daiana: “Professora, dá as folhas para o Denis entregar, assim ele pode participar da atividade de alguma forma”. Ela o faz. Ele distribui as folhas, uma para cada aluno em sua classe sem que ela diga nada. Ela o parabeniza ao fim e ele pára para olhá-la, se agarra na perna dela e senta no chão.

Ler oportunidades, como essa com Denis, consiste em estranhar a própria área em que atuamos. No entanto, a reação da professora, de não perceber oportunidades, é a reação de muitos professores quando precisam direcionar alguma atividade a um sujeito com autismo. De