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E LEUTHERIA : E NTRE C ÍRCULOS INTERNOS , VAUDEVILLE E META DRAMA

2 B ECKETT ENQUANTO DEVIR DE ARTISTA SE NUTRE DAS EXPECTATIVAS

4.3 E LEUTHERIA : E NTRE C ÍRCULOS INTERNOS , VAUDEVILLE E META DRAMA

A peça começa com a senhora Krap, imóvel, sentada diante de uma mesa. Esta primeira imagem da peça será evocada, em 1980, na peça Rockaby, cujo início apresenta a mesma força imagética de uma mulher “prematuramente envelhecida. Cabelos grisalhos

186 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 113-115. 187

desgrenhados. Olhos imensos na face branca sem expressão. [...] Completamente imóvel”.188 Em Eleutheria, o silêncio da cena é quebrado por batidas na porta. É o criado Jacques anunciando a chegada da irmã da senhora Krap, a senhora Piouk. Após pedir o chá para Marie, a criada, noiva de Jacques, as irmãs começam a conversar. A senhora Piouk informa à irmã que está recém casada com um médico, o Dr. André Piuok e, logo em seguida, deseja saber como está Victor. É a primeira vez que ouvimos falar em seu nome:

MME PIOUK – Como está Victor?

MME KRAP – Ainda na mesma, ainda lá, naquele buraco dele. Nós nunca o vemos. (Pausa.) Não vamos falar nele. 189

Logo após sermos informados sobre alguns detalhes do Dr. André Piouk, Jacques retorna informando a chegada da Mme Meck, amiga da família. As três senhoras, juntas, se assemelham em muito às três mulheres sentadas num banquinho, na peça Come and go. Este pequeno drama de apenas cinco minutos de duração, escrito em inglês, em 1965, nos apresenta Flo, Vi e Ru, três mulheres vestidas de maneira formal, cada uma de uma cor diferente. Alternadamente, cada uma das três sai de cena, deixando as outras duas a sós. Neste momento, uma das duas em cena sussurra um segredo sobre a que saiu. Quando a que saiu retorna, elas mudam de assunto. Todas as três possuem um segredo que jamais deveria ser revelado para as outras. No caso das senhoras Krap, Meck e Piouk, ficamos sabendo que o senhor Krap está com problemas na próstata e que tanto a senhora Meck quanto a senhora Krap possuem úteros em prolapso. Logo em seguida, temos mais informações sobre o estado de espírito de Victor. Ele quase não sai da cama, apesar de não estar doente e, quando tem fome, revira latas de lixo no bairro de Passy. Ficamos sabendo também que a senhora Krap, mensalmente, envia-lhe dinheiro, para que ele sobreviva. Neste momento, entra o senhor Krap.

188 BECKETT. Rockaby. In.: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 433. 189

Esta seqüência inicial, semelhante a uma cena de vaudeville, com seus fuxicos e tiradas irônicas, na verdade parece ser mais que apenas uma tradicional apresentação de personagens. As cenas da sala de estar da família Krap são escritas num estilo que nos remete à Cantora careca, obra-prima de Eugène Ionesco. Representada pela primeira vez em 1950, em Paris, A cantora careca é uma peça repleta de jogos de palavras e trocadilhos cuja ação se passa numa noite, na sala de estar do Sr. e Sra. Smith – um casal de ingleses da classe-média alta – quando eles recebem a visita de outro casal, os Martin. Eles se engajam em cenas cujos diálogos parecem uma “conversa desordenada e sem nexo [...] aparentemente vazia de enredo ou narrativa”.190 Porém, as semelhanças entre Eleutheria e

A cantora careca encerram-se aqui, pois a peça de Beckett não possui, segundo Marius

Buning, “o mesmo frenesi e colapso dramático de Ionesco”.191

Toda a seqüência inicial prepara a cena para a entrada da grande personagem do primeiro ato: o senhor Krap. Num certo sentido, o senhor Krap é um espelho de seu filho, Victor. Ambos são – ou foram – escritores, e o senhor Krap insinua que o que o filho está fazendo agora teria sido um antigo desejo seu, cuja realização cabe agora a Victor. Apesar de não termos uma ação circular – como vemos claramente em Esperando Godot, Fim de

partida e Dias felizes, por exemplo –, os círculos de Eleutheria parecem ser internos, não

na ação, mas na psicologia das personagens, principalmente na ligação que se dará entre o senhor Krap e Victor, pai e filho.

A postura do senhor Krap em relação à opção do filho é clara quando ele afirma:

MKRAP – Meu filho está no direito dele.192

O drama segue. Numa conversa com o Dr. Piouk, a quem o senhor Krap acaba de ser apresentado, há um diálogo muito interessante que nos remete à idéia de meta-drama,

190 ESSLIN. O teatro do absurdo. Op. Cit. p.278. 191 BUNING, Marius. Eleutheria revisited. Op. cit. 192

onde as personagens parecem estar cientes de que estão representando papéis em uma peça:

MKRAP – Eu me pergunto qual será a sua função nesta comédia.

DR.PIOUK (após uma madura reflexão) – Espero ser útil de alguma maneira.

[...] E o senhor, caro senhor, seu papel está bem delineado? MKRAP – Ele foi eliminado.

DR.PIOUK – Mas o senhor ainda está no palco.

MKRAP – Pode se dizer que sim.

DR.PIOUK – Se o senhor fizer um pouco de esforço, poderá conseguir manter os

patetas entretidos.193

Segue-se a este diálogo outro semelhante, entre as mesmas personagens, cuja temática é o fato de o senhor Krap ter sido escritor. Segundo Ludovic Janvier, “fazendo os personagens escritores, fazendo-se escritor, fazendo coincidir o traçado da escrita com o contrário, a reivindicação de liberdade, Beckett inscreve e salva a única liberdade possível”194. Porém, esta liberdade não é oferecida a Henri Krap.

DR.PIOUK – O senhor é escritor, monsieur?

MKRAP (indignado) – Com que direito você ...

DR.PIOUK – Percebe-se isto, pelo modo como o senhor se expressa.

MKRAP – Vou ser franco com você. Eu fui escritor. [...]

DR.PIOUK – De qual gênero.

MKRAP – Não compreendi.

DR. PIOUK – Estou falando dos seus escritos. A qual gênero o senhor dava

preferência?

MKRAP – Ao gênero merda. MME PIOUK – É mesmo?

DR.PIOUK – Em prosa ou em verso?

MKRAP – Um dia um, um dia outro.

DR.PIOUK – E o senhor considera agora que sua obra esteja completa?

MKRAP – Deus me esvaziou.

DR.PIOUK – O senhor não se sente tentado a escrever um pequeno livro de

memórias?

MKRAP – Isso estragaria minha agonia. 195

E o final do primeiro ato nos conduz a três cenas protagonizadas pelo senhor Krap que, como Hamm, de Fim de partida, está impossibilitado de levantar-se e sair de sua cadeira. Após a saída de todos, o senhor Krap se vê sozinho com a senhorita Skunk. Aproveitando este momento, ele a faz tirar o casaco e subir a saia, numa cena que sugere abuso sexual. No meio da cena, ela o chama, sem se dar conta, de pai. Em seguida, ele

193 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 39-40.

194 JANVIER, Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 74. 195

pede a ela que se finja de viva, para que seu filho pareça vivo. E, logo após, pede a ela um beijo, que ela recusa. A chegada da senhora Krap em cena desfaz a atmosfera de abuso sexual. Olga Skunk consegue escapar. O casal Krap mantém um diálogo que, em determinado momento, passa a ser sobre as tentativas de aborto que a senhora Krap teria feito, quando estava grávida de Victor.

MKRAP – [...] Quantas vezes você tentou se livrar dele? MME KRAP (com a voz baixa) – Três vezes.

MKRAP – E não conseguiu nada? MME KRAP – Só enjôos.

MKRAP – Só enjôos. (Pausa.) E depois você disse ... como era? ... aquele jeito engraçado que você tinha de dizer?

MME KRAP – Jeito engraçado?

MKRAP – Claro... como era? ... “Já que ele está aí mesmo”. MME KRAP – “Vamos deixar ele ficar, já que ele está aí mesmo”.

MKRAP (animado) – É isso! É isso: “Vamos deixar ele ficar, já que ele está aí mesmo”. (Pausa.) A gente estava num barquinho. O seu chapéu tinha uma pluma. Eu parei de remar. A onda nos balançou. (Pausa.) A ele também, a onda balançou. (Pausa.) Você tem certeza que ele é meu?

MME KRAP (após uma reflexão) – Há, uns ... setenta por cento de chances. MKRAP – Minha cotação está aumentando. 196

Em seguida, no momento em que a senhora Krap está de saída, ele pede ainda um beijo. Ela nega. Está atrasada para um compromisso. O primeiro ato se encerra com uma longa cena entre o senhor Krap e o criado Jacques que lembra, em muito, algumas passagens de Fim de partida. A cena apresenta a íntima relação entre patrão e empregado, em que o patrão, no caso de Eleutheria, está impossibilitado de levantar-se e o criado, por razões sociais, jamais se sentaria na presença do patrão. Jacques sugere deixar as portas do salão abertas para que o senhor Krap possa ouvir a música que está sendo escutada na área de serviço e deixa o patrão sozinho, ouvindo os ecos do Quarteto Kopek, tocando o

Quarteto de cordas em lá bemol, de Schubert197. Ao contrário do que acontece na obra de Marcel Proust, a música aqui, em vez de libertar, oprime. O senhor Krap sufoca e se agita ao som da música de Schubert, a qual chama de “abominação”. Se, para Beckett, “a música é o catalisador da obra de Proust. É ela que afirma, para sua descrença, a

196 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 61-62.

197 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 64. Beckett sugere, em indicação de cena, que a música toque enquanto o senhor Krap se agita, deixando-a tocar por “um bom minuto, se possível”.

permanência da personalidade e a realidade da arte. A música sintetiza os momentos de privilégio”198, em Eleutheria, a música será motivo de aflição. Beckett não permite nem que a música surja como válvula de escape para a pressão que ele mesmo cria. Esta relação com a música aparecerá também em outras peças de Beckett, como é o caso de

Rough for theatre I, escrita em francês, no final dos anos 50, na qual um mendigo cego –

identificado como A – está “arranhando seu violino” numa esquina em ruínas, quando um outro mendigo – identificado como B –, numa cadeira de rodas, chega e exclama:

B – Música! (Pausa.) Então não é um sonho. Finalmente! Nem uma visão, pois elas são mudas para mim e eu fico mudo diante delas. 199

A música de Schubert foi ainda inspiração para uma das últimas peças escritas por Beckett, em 1982, sob encomenda da rede de televisão estatal do sul da Alemanha, a

Südeutscher Rundfunk. O título desta peça para televisão é Nacht und träume, o mesmo

título de um lied de Schubert, cujos sete últimos compassos servem como trilha musical para esta peça sem palavras, na qual um sonhador observa o seu ‘eu’ no sonho e suas mãos, a direita e a esquerda, movendo-se independentemente, quase como num balé formado por 30 movimentos.

Em Eleutheria, depois de gritar para que Jacques pare a música que o incomoda, o senhor Krap pedirá ao criado que não o abandone mais. O primeiro ato se encerra numa pequena cena entre patrão e empregado, de efeito surpreendente. O senhor Krap, depois de ter pedido um beijo a Olga Skunk e à sua esposa, e estes beijos lhe terem sido negados, pedirá um beijo ao criado Jacques.

MKRAP – Jacques.

JACQUES – Sim, senhor.

MKRAP – Eu gostaria que você me desse um beijo.

JACQUES – Certamente, senhor. Na bochecha de monsieur?

MKRAP – Onde você quiser. (Jacques beija M Krap.)

JACQUES – De novo, senhor?

MKRAP – Obrigado.

198 BECKETT. Proust. Op. Cit. p. 99.

199 BECKETT. Rough for theatre I. In.: The complete dramatic works. Op. Cit. p. 227. [Tradução do autor desta dissertação.]

JACQUES – Muito bem, senhor. (Ele torna a erguer-se.) MKRAP – Tome. (Oferece-lhe uma nota de cem francos.)

JACQUES (pegando a nota) – Oh, não era necessário, senhor.

MKRAP – Sua barba pinica.

JACQUES – A do senhor também pinica um pouco.

MKRAP – Você beija bem.

JACQUES – Eu faço o melhor que posso, senhor.

(Silêncio.)

MKRAP – Eu devia ter sido homossexual. (Silêncio.) O que é que você acha?

JACQUES – De quê, monsieur?

MKRAP – Da homossexualidade.

JACQUES – Eu acho que deve ser mais ou menos a mesma coisa, senhor.

MKRAP – Você é um cínico. 200

Depois de se despedir do senhor Krap, Jacques o deixa sozinho, imóvel, na sala. Então, o senhor Krap pede:

MKRAP – Cortina. 201

É o fim do primeiro ato. No início do segundo ato, saberemos que o senhor Krap morreu nesta noite, sozinho. Seu corpo foi descoberto por volta da meia-noite, pela senhora Krap, imóvel, na sala.

4.4A

LEXITIMIA E ESTUPOR ENTRE A

L

IBERDADE E O

N

ADA

O segundo ato se inicia no final da tarde do dia seguinte. Finalmente poderemos ver bem o jovem Victor Krap. Ele está sozinho em seu pequeno quarto, “sordidamente vestido”, andando de um lado para o outro. Num determinado momento, ele pára no meio do palco, olha para o público e vai dizer alguma coisa. Mas desiste, e volta a andar de um lado para o outro. Pára novamente, olha para a platéia e diz, “muito embaraçado, procurando as palavras”:

VICTOR – Eu preciso dizer que ... eu não sou ... (Ele se cala.) 202

Se levarmos em conta que já estamos bastante informados do estado de Victor e soubemos, durante todo o primeiro ato, do processo de decadência em que ele se encontra, vemos aqui, claramente uma intenção do autor em criar um efeito de suspensão na platéia.

200 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 65-66. 201 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 67. 202

O protagonista, sobre o qual sabemos estar naquele estado de “inércia sórdida” há dois anos e meio, de quem se falou praticamente durante o primeiro ato inteiro, finalmente aparece aos olhos do público, para balbuciar de maneira vacilante que tem algo a dizer, mas não sabe.

Deixemos um pouco de lado a ação do segundo ato para analisarmos um ponto que consideramos fundamental para a compreensão do sentido desta obra. É para Victor que dirigiremos nosso olhar a partir de agora. Sendo ele o pivô central da peça, é preciso fazer algumas considerações e lançar uma luz para a compreensão de sua estrutura enquanto personagem, levando em conta o significado do título da peça e sua obsessão pelo Nada. Se a palavra Eleutheria significa ‘libertação’ em grego, como foi visto anteriormente, e se a peça gira em torno da libertação de Victor, é preciso entender qual o sentido para ‘liberdade’ que Victor nos dará. E se está certo, como quer Ludovic Janvier, que “Victor Krap reivindica [...] a liberdade de ser nada, opondo ao mundo da tagarelice, da utilidade, dos sentimentos da procriação, sua recusa total de entrar no jogo. Contra todo o mundo, ele ‘se defende’ pela força de inércia”203, precisamos entender também o valor do ‘nada’ para Victor. Pois, se uma das influências filosóficas de Beckett é o pensamento do filósofo belga Arnold Geulincx, autor da máxima Ubi nihil vales, ibi nihil velis (Onde nada vales, nada deves desejar), entendemos que as relações com o Nada, em articulação com a Liberdade, formam um esteio importante para a leitura da peça. Há exemplos bastantes, no texto de Eleutheria. Eis algumas passagens exemplares das questões envolvendo a Liberdade e o Nada.

No segundo ato, depois de ser violentamente coagido a desistir de seu objetivo, Victor é confrontado pelo Vidraceiro a explicar-se a si mesmo.

VIDRACEIRO – Você sabe que chegou a hora de você se explicar.

VICTOR – Me explicar?

VIDRACEIRO – Claro, isso não pode continuar assim.

203

VICTOR – Mas eu não estou entendendo nada. Além do mais, eu não tenho que dizer nada a você. Quem é você? Eu nem te conheço. Me deixe em paz. (Pausa.) E saia daqui.

VIDRACEIRO – Mas claro, claro, ia fazer muito bem pra você, se você se

explicasse um pouco.

VICTOR (gritando) – Eu estou dizendo que eu não estou entendendo nada.

VIDRACEIRO – Explicar-se, não, não é isso que eu quero dizer, eu não coloquei

direito. Definir-se, é isso. Chegou a hora de você se definir. Você fica aí sentado como um ... como é que eu posso dizer? Como um furúnculo escorrendo pus. Como uma purulência, é isso. Ganhe um pouco de contorno, pelo amor de Deus.

VICTOR – Por quê?

VIDRACEIRO – Assim, toda essa coisa pode parecer que faz algum sentido. Até

aqui você tem sido impossível. Ninguém pode acreditar ... Mas você está se tornando simplesmente nada, meu pobre amigo.

VICTOR – Talvez tenha chegado a hora de que alguma coisa tenha se tornado

simplesmente nada.204

Mais tarde, no mesmo ato, depois de ter usado de sua parca força física para rechaçar a senhora Meck de seu quarto, com a ajuda do Vidraceiro, este o interroga sobre de onde Victor teria tirado a coragem para aquela demonstração de violência.

VICTOR – Eu defendo meus bens, quando posso.

VIDRACEIRO – Seus bens! Que bens?

VICTOR – Minha liberdade.

VIDRACEIRO – Sua liberdade! Essa é boa, sua liberdade! Liberdade pra fazer o

quê?

VICTOR – Pra fazer nada. 205

O Vidraceiro, assumindo a função de coro, numa cena posterior, em que dialoga com o Dr. Piouk, apresenta questionamentos, como uma espécie de interlocutor da ação da peça e o pensamento do público.

VIDRACEIRO – Tem que haver uma razão, pelo amor de Deus! Por que ele se

deixou cair deste jeito? Por que esta vida absurda? Por que concordar em morrer? Razões! O próprio Jesus tinha suas razões. Não importa o que ele venha a fazer, nós temos que saber mais ou menos o porquê. Senão, ele vai acabar sendo rejeitado. E nós vamos rejeitá-lo também. Com quem você pensa que está lidando? Com os estetas?

DR.PIOUK – Decididamente, eu não sei.

VIDRACEIRO – Será que o senhor não consegue enxergar que nós estamos dando

voltas numa coisa que não faz o menor sentido? Precisamos achar um sentido para isto, caso contrário, não há outra opção senão descer as cortinas. 206

No terceiro ato, o alexitímico Victor será forçado a falar, sob ameaça de tortura, sobre a liberdade e o nada.

204 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 84-85. 205 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 90. 206

VICTOR – Minha vida é uma vida consumida pela própria liberdade. [...] Eu sempre quis ser livre. Não sei por quê. Nem sei exatamente o que isto quer dizer: ser livre. Mesmo que você arrancasse as minhas unhas, eu não saberia dizer. Mas, mesmo que eu não consiga colocar em palavras, eu sei o que é. Eu sempre desejei isso. E ainda desejo. Isso é tudo o que eu desejo. Primeiro eu era prisioneiro das pessoas. Então eu as deixei. Depois, eu fiquei prisioneiro de mim mesmo. Foi pior. Então eu me deixei. (Volta ao

silêncio.) [...]

ESPECTADOR – Você se deixou. [...] Como é que você conseguiu fazer isto?

VICTOR – Sendo o mínimo possível. Não me movendo, não pensando, não

sonhando, não falando, não ouvindo, não percebendo, não sabendo, não querendo, não sendo capaz, e por aí adiante. Eu acreditava que minha prisão estava aí. [...]

ESPECTADOR – E a morte? A morte, ponto final. Isso não te atrai?

VICTOR – Se eu estivesse morto, eu não saberia que estava morto. Esta é a única

coisa que eu tenho contra a morte. Eu quero gozar a minha morte. É aí que está a liberdade: ver-se a si mesmo morto. 207

Voltando à ação do segundo ato, há ali duas passagens que consideramos fundamentais: a notícia da morte do senhor Krap, que é recebida por Victor através da senhora Meck; e a visita que Olga Skunk faz ao quarto do ex-noivo, para realizar o desejo do senhor Krap.

O que é intrigante na primeira cena mencionada é que, aparentemente, a notícia da morte do pai, em si, não retira Victor de seu estupor, porém a preocupação – quase uma obsessão – do rapaz em determinar a hora exata da morte assume um contorno que nos chama a atenção por vermos aí uma referência a uma obra anterior. Na novela Primeiro

amor, escrita em francês, em 1945, o protagonista / narrador afirma, logo no início:

Fui, não faz muito tempo, visitar o túmulo de meu pai, isso eu sei, e anotei a data de seu falecimento, de seu falecimento apenas, pois a de seu nascimento me era indiferente, naquele dia. [...] Alguns dias depois, porém, querendo saber com que idade ele havia morrido, tive de voltar ao seu túmulo, para anotar a data de seu nascimento. Essas duas datas limites, eu as escrevi num pedaço de papel, que guardo bem comigo. 208

Em Eleutheria, durante uma discussão entre a senhora Meck e Victor:

MME MECK – Você não tem mais nenhum interesse por ela? [Olga Skunk]

VICTOR – Não.

MME MECK – Nem por ninguém?

VICTOR – Não.

MME MECK – A não ser por você mesmo.

VICTOR – Nem isso.209

207 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 146-149.

208 BECKETT, Samuel. Primeiro amor/Premier amour. Tradução de Waltensir Dutra. Ed. bilíngüe. Rio de Janeiro: Nova Frinteira, 1987. p.06.

209

A senhora Meck acaba disparando:

MME MECK – Seu pai morreu.

Silêncio.

[...]

MME MECK – Victor! (Silêncio.) Você me ouviu? Seu pai morreu.

VICTOR (virando-se) – Sim. Quando ele morreu?

MME MECK – Não vá me dizer que você está realmente interessado.

VICTOR – A hora me interessa.

MME MECK – Ele morreu ontem à noite, sentado na cadeira dele.

VICTOR – Mas a que horas?