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O estupor em Beckett: o estupor como libertação e tragédia em Eleutheria

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Academic year: 2021

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(1)Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: pgletba@ufba.br. O ESTUPOR EM BECKETT O ESTUPOR COMO LIBERTAÇÃO E TRAGÉDIA EM ELEUTHERIA. por. CELSO DE ARAÚJO OLIVEIRA JR.. Orientadora Profª. Drª. Evelina de Carvalho Sá Hoisel. SALVADOR 2005.

(2) Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147 - CEP: 40170-290 - Campus Universitário Ondina Salvador-BA Tel.: (71) 263 - 6256 – Site: http://www.ppgll.ufba.br - E-mail: pgletba@ufba.br. O ESTUPOR EM BECKETT O ESTUPOR COMO LIBERTAÇÃO E TRAGÉDIA EM ELEUTHERIA. por. CELSO DE ARAÚJO OLIVEIRA JR. Orientadora Profª. Drª. Evelina de Carvalho Sá Hoisel. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Letras.. SALVADOR 2005.

(3) Biblioteca Central Reitor Macedo Costa - UFBA. O48. Oliveira Junior, Celso de Araújo. O estupor em Beckett : o estupor como libertação e tragédia em Eleutheria / Celso de Araújo Oliveira Jr. - 2005. 104 f. Orientadora: Profª Drª Evelina de Carvalho Sá Hoisel. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2005. 1. Beckett, Samuel, 1906-1989 – Crítica e interpretação. 2. Beckett, Samuel, 1906-1989. Eleutheria. 3. Estupor. 4. Alexitimia. 5. Teatro irlandês – Sec. XX. 6. Teatro (Literatura) – Técnica – Sec. XX 7. Tragédia – Sec. XX. I. Hoisel, Evelina de Carvalho Sá. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. III. Título. CDU - 821(417).09 CDD - 820.09.

(4) À memória de meu pai, que morreu antes do fim..

(5) Agradecimentos. Aos colegas, companheiros de jornada, que me ajudaram a pensar; aos amigos, pela paciência e entusiasmo; à Escola de Teatro, que me deu régua e compasso; e a Claudio Simões, meu amigo escritor, quase irmão, pelo olhar atento.. Agradeço especialmente à Profª. Drª. Eneida Leal Cunha pelo acolhimento..

(6) Porque a alma humana é um abismo, eu é que sei. Álvaro de Campos.

(7) RESUMO. O ESTUPOR EM BECKETT. Estupor, alexitimia, tragédia, dramaturgia do século XX, Samuel Beckett. A fundamentação teórica e literária sobre os conceitos de estupor, de fraturas narrativas e de interrupção de fluxo narrativo. Os estudos sobre o efeito de estupor sob o ponto de vista da psiquiatria e da psicanálise, do ritmo e efeitos da narrativa. O estudo crítico sobre o estupor em William Shakespeare, Anton Tchekhov e Samuel Beckett. O sentido e a evolução dos pressupostos fundamentais da tragédia. O estupor como hýbris. A precipitação trágica do drama beckettiano a partir destes pressupostos. Uma gênese da poética beckettiana, através das suas relações filosóficas e da sua experiência como crítico literário e de arte. O retrato do artista enquanto crítico. As relações filosóficas de Beckett e a constituição do Beckett-escritor a partir do Beckett-crítico. Leitura dos escritos críticos de Beckett sobre a obra de James Joyce, de Marcel Proust e de pintores modernos, em articulações com exemplos da obra dramatúrgica e ficcional do autor. Leitura crítica do drama Eleutheria, escrito por Samuel Beckett em 1947. O estupor, enquanto hýbris, atuando como estratégia de libertação e motivo de ruína..

(8) ABSTRACT. STUPOR IN BECKETT. Stupor, alexitimy, tragedy, XXth century drama, Samuel Beckett. The literary and theoretic establishment of the concepts on stupor, on narrative breaks and interruption of the narrative flux. The studies about the stupor effect as it is seen in psychiatry and psychoanalysis, of the rhythm and the effects of a narrative. The critical study about the stupor in William Shakespeare, Anton Tchekhov and Samuel Beckett. The meaning of an evolution of the fundaments of tragedy. The stupor as hýbris. The tragic fall through these fundaments in the Beckettian drama. The genesis of a Beckettian poetics by his philosophic relations and by his work as a literary and art critic. The picture of the artist as a critic. Beckett´s philosophic relations and the development of the Beckett-the-writer through the Beckett-the-critic. Reading of Beckett´s writings on the works written by James Joyce, Marcel Proust and the modern painters, relating them with examples taken from the fictional works of the author. Critic reading of the play Eleutheria, written by Samuel Beckett in 1947. The stupor as hýbris, functioning as a strategy of liberation and cause of ruin..

(9) 1 INTRODUÇÃO Nosso interesse pela dramaturgia de Samuel Beckett foi despertado muito cedo, depois do forte impacto causado pela apresentação de um espetáculo teatral intitulado Kathastrophé – o teatro de Samuel Beckett hoje, promovido pela Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio de Janeiro, no ano de 1986. O espetáculo, sob a direção de Rubens Rusche, fazia parte de um projeto chamado “Beckett 80 anos” e trazia quatro pequenas peças escritas entre os anos de 1963 e 1982. Logo em seguida, ingressamos no III Curso Livre de Teatro da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, sob a coordenação de Luiz Marfuz, dando início, assim, à nossa carreira profissional de ator. O resultado final do curso Livre foi a apresentação do espetáculo Sim, uma coletânea de textos de Fernando Arrabal, um dos expoentes do chamado “teatro do absurdo”, organizada por Cleise Mendes. Desta maneira, travamos contato com as especificidades da dramaturgia do século XX e seus autores mais emblemáticos, inclusive Beckett. No ano de 1990, ingressamos na Escola de Teatro da UFBa, onde obtivemos o Bacharelado em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral. Durante o ano de 1991, nos dedicamos à pesquisa intitulada A gênese de um sucesso, que fez parte do Programa de Iniciação Científica CNPq/UFBa, sob orientação do professor Armindo Bião. Neste mesmo ano, nosso texto A tragédia feminina (um estudo sobre as personagens femininas da Trilogia Tebana de Sófocles) é publicado na Revista Hypérion Letras no. 2, do Instituto de Letras da UFBa. Durante o período da graduação, iniciamos uma série de exercícios de tradução de textos dramáticos originalmente escritos em inglês ou de traduções inglesas de textos escritos em outras línguas, cujo objetivo sempre fora a montagem dentro de salas de aula ou pequenas mostras internas de cunho universitário. Faz parte destes exercícios o texto de A lacuna, de.

(10) Eugène Ionesco. Nosso projeto de graduação foi realizar a tradução e encenação de três peças curtas de Samuel Beckett – Come and go (1965), Quad (1982) e What where (1983) – sob o título de 3xNada. Em 1996, ainda restrito ao circuito universitário, traduzimos e dirigimos a montagem intitulada Restos, que era composta também por três peças curtas escritas por Beckett – Ohio impromptu (1963), Play (1981) e Catastrophe (1982). Já no exercício profissional, entre mais de duas dezenas de montagens encenadas, traduzimos e dirigimos O médico a pulso (criada a partir de uma versão inglesa de Le médécin malgré lui, de Moliére); traduzimos o texto de SubUrbia, do norte-americano Eric Bogosian e ainda, mais recentemente, a peça A prostituta respeitosa, já diretamente do original em francês de Jean-Paul Sartre, para a montagem de Márcio Meirelles. Recentemente, nossa atividade profissional e acadêmica se voltou para realizar um aprofundamento da relação textual da obra de Samuel Beckett, no qual buscamos compreender alguns de seus procedimentos e estratégias dramatúrgicos. Nosso interesse aqui é o de dar maior esteio teórico e metodológico que possa implementar nosso trabalho como encenador. Esta dissertação é composta por três capítulos interligados e complementares. O primeiro capítulo traz a fundamentação teórica e literária sobre os conceitos de estupor, de fraturas narrativas e de interrupção de fluxo narrativo. Para isto, ampliamos o nosso horizonte metodológico e voltamos nosso olhar para os estudos sobre o estupor sob o ponto de vista da psiquiatria e da psicanálise, do ritmo e efeitos da narrativa. Assim, realizamos um estudo crítico sobre o estupor em Shakespeare, Tchekhov e Beckett. Ainda no primeiro capítulo, fazemos um estudo sobre o sentido e a evolução dos pressupostos fundamentais da tragédia, para provar que o estupor das personagens das peças de Beckett.

(11) funciona como hýbris e, desta maneira, analisamos a precipitação trágica do drama beckettiano a partir destes novos pressupostos. O segundo capítulo é a busca de uma gênese da poética beckettiana, através das suas relações filosóficas e da sua experiência como crítico literário e de arte. Nesta parte da dissertação, nossa intenção é fazer o retrato do artista enquanto crítico. Para isto, estabelecemos as relações filosóficas de Beckett e, em seguida, analisamos a constituição do Beckett-escritor a partir do Beckett-crítico, procedendo à leitura dos escritos críticos de Beckett sobre a obra de James Joyce, de Marcel Proust e de pintores modernos, fazendo articulações com exemplos da obra dramatúrgica e ficcional do autor. O último capítulo é dedicado especificamente à leitura crítica do drama Eleutheria, escrito por Beckett em 1947, numa abordagem que utiliza as duas partes anteriores como subsídio. Desta maneira, vemos que o estupor, enquanto hýbris, atua como estratégia de libertação, porém, tragicamente é também o motivo de ruína. Como uma parte da bibliografia que pesquisamos não estava disponível em português, optamos por traduzir os fragmentos utilizados no corpo de nossa dissertação para não interromper o fluxo de leitura. Da mesma maneira, fizemos a tradução dos trechos de peças de Beckett indisponíveis em língua portuguesa. Para isto, utilizamos a edição inglesa Samuel Beckett - The complete dramatic works, da Faber and Faber, mesmo nas peças escritas originalmente em francês pois, nesta edição, as traduções para o inglês foram realizadas pelo próprio Beckett ou sob sua supervisão. O procedimento com Eleutheria ocorreu de maneira diferente. Como a peça foi escrita originalmente em francês – assim como boa parte da obra de Samuel Beckett – e não possui tradução inglesa do próprio autor, se fez necessário o nosso aprendizado instrumental desta língua, na Aliança Francesa de Salvador, para a imersão no texto original. Foi utilizada, como auxiliar, a tradução inglesa de Barbara Wright, cuja disciplina empregada como tradutora pode ser considerada um exemplo de método para.

(12) tradução. A tradutora explica, numa nota que antecede à peça, que estudou todas as traduções que Beckett fez de suas próprias obras e decidiu criar um vocabulário próprio a partir destas traduções. Wright afirma que não utilizou nenhuma palavra que Beckett já não tivesse usado em suas traduções próprias. Todas as vezes em que foi utilizada a nossa tradução, tanto nos textos teóricos como nos literários ou dramáticos, foi acrescida, a partir de sugestão da orientadora, a nota ‘[Tradução do autor desta dissertação]’. As únicas exceções são os vários trechos traduzidos de Eleutheria que, apesar de não trazerem a nota explicativa, foram todos traduzidos por nós. Desta maneira, utilizamos nossa experiência na tradução de peças de teatro para trazer para o português fragmentos cruciais para a compreensão da obra..

(13) SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 2 ESTUPOR E TRAGÉDIA 2.1 O estupor 2.2 O estupor no drama: Shakespeare e Tchekhov 2.3 O estupor entre a errância e o discurso espiral: Beckett 2.4 A tragédia e a idéia do trágico 2.5 O sentido de uma evolução do trágico: em busca de uma filosofia do trágico 2.6 A partida e a impossibilidade da partida: atos trágicos 2.7 A tragédia em Beckett: o estupor como hýbris 3 BECKETT ENQUANTO DEVIR DE ARTISTA SE NUTRE DAS EXPECTATIVAS FORMAIS DO BECKETT CRÍTICO 3.1 O retrato do artista 3.2 As relações filosóficas de Beckett 3.3 O primeiro ensaio: Joyce. Em busca de um eixo formal 3.4 O segundo ensaio: Proust. Em busca de um eixo moral 3.5 O terceiro ensaio: a pintura de Pierre Tal Coat, de André Masson e de Bram Van Velde. Em busca do nada 4 ELEUTHERIA 4.1 A equação beckettiana em Eleutheria 4.2. A importância do nome 4.3 Eleutheria: Entre Círculos internos, vaudeville e meta-drama 4.4 Alexitimia e estupor entre o Tempo, a Liberdade e o Nada 4.5 Libertação e ruína em Eleutheria 5 CONCLUSÃO 6. BIBLIOGRAFIA.

(14) 2 ESTUPOR E TRAGÉDIA. Não há nada a expressar, nada com que expressar, nada a partir do que expressar, nenhuma possibilidade de expressar, nenhum desejo de expressar, aliado à obrigação de expressar. Samuel Beckett.

(15) 2.1 O ESTUPOR A palavra estupor tem origem na palavra latina stupore e significa um estado de entorpecimento ou de paralisia súbita, caracterizado pela diminuição dos movimentos, pelo mutismo e pela aparente indiferença aos estímulos externos. Geralmente associado, na psiquiatria, a um tipo de catatonia, o estupor é considerado um dos sintomas para o diagnóstico de alguns tipos de esquizofrenia. Este estado mórbido é caracterizado a partir do momento em que, mesmo estando desperto, o paciente passa a não reagir mais a perguntas nem a estímulos externos, permanecendo imóvel, numa só posição. G. C. Barnard, autor de Samuel Beckett – A new approach, publicado em 1970, será o primeiro crítico a apontar a esquizofrenia como um elemento importante na obra de Samuel Beckett. Antes de proceder ao exame profundo de alguns romances e dramas de Beckett, Barnard, na introdução de seu estudo, toma como exemplo uma das primeiras narrativas beckettianas, a coletânea de contos More pricks than kicks, e afirma que o protagonista Belacqua é freqüentemente mencionado com inveja pelos outros heróis beckettianos como aquele que conseguiu ser bem-sucedido ao abandonar a vida do dia-a-dia para viver em mundo dentro de sua própria imaginação [...] Com aparência rota, ele perambula como um catatônico e revela que seu coração realmente está no asilo de loucos da cidade. 1. Barnard justifica sua leitura e caracteriza a esquizofrenia da seguinte maneira: Como a esquizofrenia possui tamanha importância na caracterização dos heróis de Beckett, é apropriado discutir seus principais aspectos aqui. O elemento essencial é um retraimento do interesse do mundo exterior e uma concentração no mundo interior de fantasia, mas há vários sintomas concomitantes e variações nos graus da enfermidade. Na forma catatônica da doença, o paciente permanece às vezes totalmente inerte e parece estar em estupor; [...] ele parece despido de afeto por qualquer pessoa, e este traço, normalmente, aparece ainda bem cedo no curso da psicose ou mesmo antes de seu início. O paciente [...] retirou sua libido das pessoas e a concentrou narcisicamente em seu próprio ego. 2. Entre os sintomas deste estupor catatônico a que Barnard se refere estão a aparente ausência de afeto e a decadência física do indivíduo acometido. Além disso, a 1. BARNARD. G. C. Samuel Beckett – A new approach: a study of the novels and plays. Nova York, Dodd, Mead & Company, 1970. p. 4. 2 BARNARD. Op. Cit. p. 5..

(16) esquizofrenia está associada a disfunções de pensamento e do discurso. Isto causa interrupções de pensamento, interrupções de fluxos narrativos e mudanças bruscas de assunto durante narrativas, por vezes impossibilitando a comunicação do indivíduo. Desta maneira, percebemos que todos estes elementos estão presentes na construção dramatúrgica das personagens de Beckett. Portanto, voltaremos ao texto de Barnard no terceiro capítulo desta dissertação, quando faremos uma leitura da personagem Victor Krap, do drama Eleutheria. Como as disfunções de fluxo narrativo são comuns nos casos patológicos de esquizofrenia, cabe aqui pesquisar estas interrupções e impossibilidades de produzir um fluxo narrativo. Assim, chegamos ao conceito de alexitimia, termo com o qual, recentemente, alguns psiquiatras vêm definindo esta incapacidade de comunicação. O psicanalista clínico e pesquisador independente Mário Quilici define a palavra alexitimia a partir da sua etimologia. O termo alexitimia refere-se a pessoas que [...] não conseguem identificar e nem descrever seus sentimentos. O termo [...] vem do grego: a (que significa ausência), lexis (palavra) e Thymós (que significa emoção). [.] Os alexitímicos sofrem de incapacidade de descrever sentimentos próprios ou de reconhecer os sentimentos daqueles à sua volta. Não sabem discriminar emoções e nem distinguir emoções de sensações físicas. 3. A palavra grega Thymós, além de designar “emoções”, pode significar também “alma” ou “espírito”. Desta maneira, podemos concluir que alexitimia pode ser definida como ausência de palavras na alma. Ao buscar uma possível causa ou algum fator que gerasse a alexitimia, chegamos a outros textos que complementam a idéia inicial, reforçando o conceito de maneira a aproximá-lo do estupor em Beckett. O filósofo alemão Walter Benjamim, em Magia e técnica, arte e política, no capítulo em que trata do Narrador, afirma que a primeira Guerra Mundial teria 3. QUILICI, Mário. Empatia, simpatia, intuição, intersubjetividade e alexitimia. http://www.psipoint.com.br/arquivo_psicologias_empatia.htm. Acessado em 21 de dezembro de 2004.. In.:.

(17) manifestado um processo que se verifica até os dias de hoje: a extinção da possibilidade de criar uma narrativa a partir de uma experiência terrível. Segundo Benjamim, “no final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha”4. Apesar de o estudo de Benjamin apontar para outro caminho, é este pequeno raciocínio de causa e efeito o que nos interessa aqui. Esta impossibilidade de produção de um fluxo narrativo é o que estamos chamando de estupor. Porém, o texto fundamental para a conceituação de estupor e seus efeitos, aqui, é o estudo sobre a narrativa, realizado pelo professor Pierre Le-Quéau, da Université de Grenoble, na França. Em sua palestra proferida no ano de 2000 para o Grupo de pesquisa interdisciplinar do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (GIPE-CIT), intitulada O ritmo e os efeitos da narrativa, Le-Quéau abordará a questão da narrativa nas “entrevistas não-diretivas de pesquisa” na teoria sociológica ou antropológica. A intenção de Le-Quéau é aplicar o estudo das narrativas do ponto de vista da fenomenologia, ressaltando a sua importância hermenêutica nos estudos ligados à antropologia e à sociologia. Logo no início de seu estudo, Le-Quéau ressalta a importância de que a narrativa, longe de ser um reflexo mais ou menos fiel da realidade, é uma construção, uma criação. Há a mesma distância (ou a mesma proximidade) entre a narrativa e a vida que, na pintura, entre uma tela e a natureza ou, no teatro, entre uma peça e a realidade. Se a mímese [...] é bem uma imitação da realidade, essa imitação não supõe um constrangimento estreito e formal de proximidade com essa realidade. 5. Ainda segundo Le-Quéau, “na narrativa se manifesta a primeira capacidade criativa do ser humano, que consiste em introduzir um tipo de ruptura no fluxo da vida, e um tipo de descontinuidade na continuidade do real.” 6 Logo em seguida, ele falará sobre o que ele chama de a cara do estupor. Ele afirma que “é sempre interessante observar o que 4. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 198. 5 LE-QUÉAU, Pierre. O ritmo e os efeitos da narrativa. Transcrição de palestra ministrada no GIPE-CIT: 7 de junho de 2000. p. 1. 6 LE-QUÉAU. Op. Cit. p. 2..

(18) acontece quando uma narrativa não é possível: o patológico, nesse sentido, é sempre útil para compreender o normal”. E prossegue dizendo que, “[...] de fato, há situações sociais ou históricas nas quais não se pode produzir uma narrativa” 7. É justamente neste ponto que Le-Quéau evocará a consciência que os gregos possuíam da representação do estupor: a petrificação como conseqüência do cruzamento do olhar humano com o das górgonas8. O que Le-Quéau afirma é que a petrificação causada pelo contato do olhar das górgonas é, de fato, uma representação mitológica do estupor. Desta maneira, percebemos que o pensamento grego já havia criado uma representação para o estado de estupor. Passamos então ao estudo desta representação, na Grécia Antiga. Professor honorário do Collège de France e especialista em Estudos Comparados de Religiões Antigas, Jean Pierre-Vernant afirmará, em A morte nos olhos, que a face do terror está representada na máscara de Gorgó9. Segundo Pierre-Vernant, a máscara monstruosa de Gorgó traduz a extrema alteridade, o temor apavorante do que é absolutamente outro, o indizível, o impensável, o puro caos: para o homem, o confronto com a morte, esta morte que o olho de Gorgó impõe aos que cruzam seu olhar, transformando todo ser que vive [...] em pedra imobilizada, glacial, cega, mergulhada em trevas. 10. Ao estudar a questão da alteridade na Grécia Antiga, Vernant analisa as representações de Gorgó enquanto “aquilo que, a todo momento e em qualquer lugar, arranca o homem de sua vida e de si mesmo [...] para projetá-lo para baixo, na confusão e no horror do caos”. 11. 7. LE-QUÉAU. Op. Cit. p. 2. [Grifo nosso].. 8. Cada uma das três personagens mitológicas, Esteno, Euríale e Medusa, mulheres que tinham serpentes por cabelos e transformavam em pedra quem as encarava. Fonte: Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.. 9. Gorgó (a górgona Medusa). VERNANT. A morte nos olhos. p. 12. VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos – Figuração do Outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó. 2.ed. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 11 VERNANT. Op. cit. p. 37. 10.

(19) Gorgó aparece no canto XI da Odisséia de Homero como imagem simbólica do medo de Odisseu ao sair do Hades. Na Teogonia de Hesíodo, ela cumpre um papel simétrico ao do cão Cérbero. Enquanto Cérbero impede que os mortos retornem ao mundo dos vivos, a função de Gorgó é impedir a entrada dos vivos no mundo dos mortos: “Do fundo do Hades, onde habita, a cabeça de Gorgó guarda, vigilante, as fronteiras do domínio de Perséfone”12. Porém, o que nos interessa aqui é a força simbólica de representação do estupor. Para isto, Vernant analisa a facialidade da cabeça da Medusa. Sua máscara exprime e preserva a alteridade radical do mundo dos mortos, do qual nenhum vivo pode aproximar-se. Para atravessar-lhe o umbral teria sido necessário encarar a face do terror, transformando-se como Gorgó, sob seu olhar, no que são os mortos: cabeças, cabeças vazias, desprovidas de sua força, de seu ardor.13. Porque, para Vernant, o rosto do vivo, na singularidade de seus traços, é um dos elementos da pessoa. Mas na morte esta cabeça à qual nos vemos reduzidos, já agora inconsistente e sem força, como a sombra de um homem ou seu reflexo num espelho, está imersa na obscuridade, encapuzada de trevas. É uma cabeça vestida de noite. 14. E uma das conclusões a que ele chega é que quando encaramos Gorgó é ela que faz de nós o espelho no qual, transformandonos em pedra, contempla sua face terrível e se reconhece no duplo, no fantasma que nos tornamos ao enfrentar o seu olho [e simetricamente, através desta experiência] revela-se a verdade de nosso próprio rosto. 15. Jean-Pierre Vernant não chega a apontar sua análise para os efeitos que a petrificação da experiência de olhar para a face do terror causa. Portanto, devemos retornar à palestra de Pierre Le-Quéau. O que Le-Quéau afirma é que a imagem do estupor associado à experiência do olhar de Gorgó pode ser utilizada para descrever “toda a experiência limite que suspende o trabalho da consciência e, por conseguinte, a possibilidade da narrativa”.16 12. VERNANT. Op. cit. p. 61. VERNANT. Op cit. p. 60. [Grifo nosso] 14 Ibid. p. 61-62. 15 Ibid. p. 105-106. 16 LE-QUÉAU. Op. cit. p. 3. 13.

(20) Desta maneira, voltamos a Benjamin, quando ele afirma a impossibilidade de produção de uma narrativa pelos soldados regressos das trincheiras da primeira Guerra Mundial, inaugurando o século XX com a experiência do estupor diante do horror daquele conflito. Para Benjamin, o início do século XX é marcado pelo desaparecimento da figura tradicional do narrador, pois foi um século prodigioso na produção de momentos de caos e horror. Pierre Le-Quéau evita, em sua palestra, enumerar todas as figuras do estupor moderno. Mas isto pode ser exemplificado notavelmente na experiência dos atentados terroristas que destruíram as grandes torres do World Trade Center, na cidade de Nova Iorque, em setembro de 2001. Há ali dois extremos da face do terror. Um, a face do indivíduo local, coberto de pó e escombro, parecendo uma massa monocromática cinzenta, de cuja fronte distinguia-se, nos olhos arregalados, “o olhar apavorado de quem foi solto do inferno pra vir contar cá em cima os horrores que viu.”17 A outra experiência de impossibilidade de criação de um fluxo narrativo foi a dos espectadores dos mesmos atentados, que viam os edifícios incendiados e sucumbindo, à distância, através da transmissão ao vivo pela televisão, e ficavam, em suas casas, inertes, sem conseguir descrever exatamente o que estavam observando. As emissoras de televisão exibiam as imagens dos aviões atingindo os prédios repetidas vezes, como um engasgo, como se aquelas imagens tivessem paralisado os fluxos narrativos naquele ponto, que permanecia se repetindo, indefinidamente. Somente algumas horas após aquela experiência, os espectadores começaram a criar fluxos narrativos que pudessem descrever o que presenciaram pela televisão e começaram a compreender o que havia acontecido naquela manhã e qual o significado daquelas imagens repetidas à exaustão pelas emissoras. 17. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2001. Ato II, cena I. p. 40..

(21) Pierre Le-Quéau, apesar de se fixar em exemplos das duas grandes guerras mundiais, encerra esta parte da sua palestra com a seguinte conclusão: Minha hipótese [...] é que é uma aceleração do ritmo do tempo vivido que causa o estupor, a impossibilidade de narrar. Não é exatamente o horror mesmo, mas a primeira aparição dele: o evento único, sem precedente. É a novidade absoluta que causa uma ruptura no senso comum, e uma aceleração do tempo imposto que impede o trabalho da consciência que consiste em estabelecer uma ligação entre o passado e o presente. É o passado, acumulado na experiência coletiva – o senso comum – que pode dar uma forma inteligível ao presente: e finalmente o limite do inteligível é o memorável. O que não se pode lembrar, não existe.18. Assim, continuando a conceituação do estupor, nossa pesquisa nos conduz ao estupor que não é causado apenas pelo horror, mas pelo excesso de um outro sentimento tão devastador, o amor, que Beckett chama de “deserto de solidão”. 19. . Há situações em. que o excesso de amor provoca uma interrupção de fluxo narrativo, o que causará o estado de estupor no amante. Um bom exemplo disto é o que Roland Barthes analisa em Fragmentos de um discurso amoroso, que ele chama de “amor inexprimível”. Barthes lembra que “Werther, que outrora desenhava bem e muito, não consegue fazer o retrato de Charlotte” e cita as palavras de Werther, a partir do próprio texto de Goethe: “Perdi [...] a força sagrada, vivificante, com a qual criava mundos em volta de mim”.20 Ou seja, Barthes se utiliza do exemplo do jovem Werther, em estado de estupor, incapaz de construir uma narrativa – no caso, o desenho da amada – justamente por estar apaixonado por ela e não o poder exprimir. Barthes diz que “o amor tem certamente alguma coisa a ver com minha linguagem (que o alimenta), mas ele não pode se instalar na minha escritura”.21 Justamente porque “querer escrever o amor é enfrentar a desordem da linguagem”22, então, ao tentar escrever este amor e falhar na escritura, o amante entra em estado de estupor. É o amor inexprimível que paralisa os amantes, impedindo-os até de expressar este amor. 18. LE-QUÉAU. Op. cit. p. 3. [Grifo nosso.] BECKETT. Proust. p. 57. 20 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortêncio dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 91. 21 BARTHES. Op. cit. p. 92. 22 BARTHES. Op. cit. p. 93. 19.

(22) Neste sentido, e em relação à memória, o estupor pode ser relacionado com o que o criador da psicanálise, o alemão Sigmund Freud, chama de ‘sentimento de desrealização’. Freud chega a esta conclusão no episódio chamado Distúrbio de memória na Acrópole 23, em que ele narra, em uma carta a um amigo, uma experiência vivida por ele alguns anos antes na Grécia. Neste texto, ele conta sobre a “situação psíquica, de aparência tão confusa e tão difícil de descrever” que ele e seu irmão viveram ao rumarem de férias da Itália para a Grécia. Após terem sido desencorajados, por um amigo, a visitarem a ilha de Corfu, Freud e seu irmão compraram passagens num navio para Atenas e, na tarde seguinte, viram-se diante da Acrópole. Naquele momento, o psicanalista teve um pensamento que o surpreendeu: “Então tudo isso realmente existe mesmo”.24 Não que ele jamais houvesse duvidado de que a Acrópole realmente existisse, mas sua dúvida era se algum dia chegaria a visitá-la pessoalmente, por se tratar de uma viagem cara, que parecia impossível de ser realizada quando Freud era adolescente. O fato marcante aqui é a surpresa de Freud, então aos 48 anos de idade, que só foi analisado muito tempo mais tarde. Na análise posterior do estado de espírito que tomou conta dos irmãos nesta ocasião, Freud produzirá um raciocínio determinante do funcionamento desses sentimentos de desrealização. Para ele, essas desrealizações [...] são processos complexos, vinculados a conteúdos mentais peculiares e vinculados a operações feitas a respeito desses conteúdos. [...] Esses fenômenos podem ser observados sob duas formas: a pessoa sente que uma parte da realidade, ou que uma parte do seu próprio eu, lhe é estranha. [...] Existe mais um outro grupo de fenômenos que podem ser considerados como suas contrapartidas positivas – é o que se conhece como [...] ‘déjá-vu’ [...] ilusões em que procuramos aceitar algo como pertencente ao nosso ego, do mesmo modo como, nas desrealizações, nos empenhamos em manter algo fora de nós. 25. Logo a seguir, Freud explica que “a segunda característica geral das desrealizações – sua dependência do passado” – provocou seu distúrbio de memória na Acrópole. Naquele momento, diante da antiga cidade grega, de uma certa maneira, eles estavam 23. FREUD, Sigmund. Um distúrbio de memória na Acrópole. In.: Obras completas – Edição eletrônica. v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1969. 24 FREUD. Op. cit. 25 FREUD. Op. Cit..

(23) realizando um sonho que sempre havia sido impossível, estavam realizando algo que imaginavam, na infância, ser impossível. Desta maneira, vemos o estupor como uma espécie de ‘desrealização’ onde o indivíduo experimenta, por qualquer motivo – seja a visão da face do horror, ou uma experiência terrível ou aparentemente intransponível – uma medida defensiva do ego a partir de dois vetores: do mundo externo real e do mundo interno dos pensamentos e impulsos que emergem no ego. Sendo assim, essa experiência de defesa pode estar na desrealização propriamente dita ou na ‘despersonalização’, que Freud descreve como ‘personalidade dividida’, na tentativa de encontrar “uma explicação não-científica para o fenômeno do dèjá-vu, onde o ego procura a prova de uma existência anterior de nosso self mental”.26 A desrealização é a alteração da sensação a respeito de si próprio, enquanto a despersonalização é a alteração da sensação de realidade do mundo exterior sendo preservada a sensação a respeito de si mesmo. Contudo ambas podem acontecer simultaneamente. O aspecto central da despersonalização é a sensação de estar desligado do mundo como se, na verdade, estivesse sonhando. O indivíduo que experimenta a despersonalização tem a impressão de estar num mundo fictício, irreal, mas a convicção da realidade não se altera. A desrealização é uma sensação e não uma alteração do pensamento como acontece nas psicoses onde o indivíduo não diferencia realidade da fantasia. Na despersonalização o indivíduo tem preservado o senso de realidade apesar de ter uma sensação de que o que está vendo não é real. É comum a sensação de ser o observador de si próprio e até sentir o movimento de saída de dentro do próprio corpo de onde se observa a si mesmo de um lugar de fora do próprio corpo. 27. Tanto a desrealização quanto a despersonalização são fenômenos que podem estar associados à experiência do novo. Este raciocínio nos leva ao pensamento do dramaturgo alemão Heiner Müller, quando ele afirma que “a primeira forma da esperança é o medo, a primeira aparição do novo, o espanto”.28 O espanto provocado pela experiência diante do novo pode causar o estupor e é o grande motor da filosofia. É o que nos afirma o filósofo alemão Martin Heidegger, no seu texto Qu’est-ce que la Philosophie? (sic). Neste texto, que faz parte de uma coletânea de 26. FREUD. Op. Cit. Fonte: http://www.psicosite.com.br/tra/sod/dissociativo.htm Acessado em 27 de dezembro de 2004. 28 MÜLLER, Heiner. O espanto como a primeira aparição do novo – Para uma discussão sobre a pósmodernidade em Nova York. In.: KOUDELA, Ingrid D. (Org.). Heiner Müller – O espanto no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003. [Grifo nosso.] 27.

(24) conferências e escritos filosóficos, Heidegger fará um histórico da origem da filosofia, buscando seu sentido, usando uma metodologia que remete a uma epistéme grega. Ao se perguntar ‘O que é isto – a filosofia?’, ele conduz seu pensamento para o caminho trilhado pelos filósofos gregos, quando se perguntavam ‘O que é isto – o belo?’ ou ‘O que é isto – o conhecimento?’ ou ainda ‘O que é isto – a natureza?’. Trilhando o caminho do significado das palavras em grego, Heidegger nos conduz à sua idéia de espanto (em grego thaumázein). Segundo Heidegger, o espanto é, enquanto páthos, a arkhé, da filosofia. [...] O páthos do espanto não está simplesmente no começo da filosofia [...]. O espanto carrega a filosofia e impera em seu interior. 29. Neste ponto, o filósofo alemão afirmará que reduzir a causa da filosofia ao espanto é “uma atitude mental pouco grega”. Para Heidegger, o espanto é páthos. E ele afirma que habitualmente se traduz páthos por “paixão, turbilhão afetivo”, porém, através da etimologia, ele nos aconselha a traduzir como dis-posição, “palavra com que procuramos expressar uma tonalidade de humor, que nos harmoniza e nos convoca por um apelo”. Porque somente se compreendermos páthos como dis-posição podemos também caracterizar melhor o thaumázein, o espanto. No espanto nos detemos (être en arrêt). É como se retrocedêssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e não de outra maneira. O espanto também não se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no próprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é ao mesmo tempo atraído e como que fascinado por aquilo diante do que recua. 30. É justamente depois de “nos determos” diante do espanto que podemos seguir adiante. Quando nos vimos diante de situações sobre as quais não somos capazes de produzir um fluxo narrativo que dê conta de transformá-las em memória e, assim, torná-las realidade, experimentamos momentos de ‘desrealização’. A partir do momento que conseguimos produzir uma narrativa a partir de uma experiência, então, saímos do estupor e voltamos ao fluxo do real. 29. HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia? In.: Conferências e escritos filosóficos. Tradução de Ernildo Stein. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 21-22. 30 HEIDEGGER. Op. cit. p. 22. [Grifo nosso.].

(25) O que vimos até agora é que o estupor pode ser associado a um dos sintomas da esquizofrenia e que, sob a forma de catatonia, está presente em alguns casos patológicos desta doença. Além do estupor catatônico, podemos acrescentar a decadência física e, principalmente, fraturas nas estruturas narrativas do indivíduo, o que produz uma dificuldade na comunicação, principalmente a comunicação das emoções, o que se convencionou chamar de alexitimia – a ausência de palavras na alma. Vimos também que o homem grego já havia criado uma representação para estes fenômenos, associando-os à figura da Medusa. Esta associação à máscara do terror representa a extrema alteridade que “arranca o homem de sua vida e de si mesmo e o projeta na confusão e no horror do caos”31. Estas cabeças vazias são a representação da suspensão do trabalho da consciência. Para que a consciência dê conta da realidade, é necessário que haja um esforço para a produção de um fluxo narrativo que empurre a experiência do real para o passado e, desta maneira, transformando-o em memória, se possa continuar no fluxo do presente. Vimos também a experiência do amor inexprimível, que coloca o indivíduo apaixonado numa situação de desrealização, por ser incapaz de produzir um fluxo que expresse seu amor. Incapaz de remeter os fatos do presente para a memória do passado, ele se torna incapaz de viver no presente o seu amor. Pois o que não se pode lembrar não existe. Finalmente, vimos o espanto diante do novo. O espanto como páthos, diante do qual nos detemos e só conseguimos seguir adiante após a produção de um fluxo narrativo que dê conta deste novo.. 1.2 O ESTUPOR NO DRAMA: SHAKESPEARE E TCHEKHOV. Cabe-nos, agora, determinar em que momentos da literatura dramática universal encontramos exemplos de representação do estupor e suas conseqüências. Pois, sendo o 31. VERNANT. A morte nos olhos. Op. Cit. p.37..

(26) estupor uma representação da inação, a dramaturgia universal tem produzido exemplos marcantes deste fenômeno, com conseqüências diversas. Faremos aqui a análise de momentos de estupor (momentos de interrupção de fluxo narrativo) de personagens do mestre elisabetano William Shakespeare, do realista russo Anton Tchekhov e, no próximo outro item, destacaremos alguns exemplos da dramaturgia de Samuel Beckett. Procuraremos, desta maneira, ampliar a abordagem do problema e exemplificar as conclusões de nossa pesquisa para dar uma compreensão mais abrangente de nosso ponto de vista. Quem aproxima Beckett de Shakespeare é Martin Esslin, em seu livro intitulado O teatro do absurdo, no capítulo chamado A tradição do absurdo. Esslin afirma que a obra de Beckett pode ser considerada como uma extremidade de uma tradição teatral vinda dos clowns de Shakespeare. Já a ligação entre Beckett e Tchekhov aparece em Raymond Williams, no capítulo Impasse e aporia trágicos: Tchekhov, Pirandello, Ionesco, Beckett, do livro Tragédia moderna. Para Williams, a aparente inação das personagens tchekhovianas estaria ligada profundamente com o universo de Beckett. A obra de William Shakespeare é de uma riqueza inegável, sua capacidade de compor tipos humanos diferenciados é impressionante. Harold Bloom, crítico especializado na poética shakespeareana, afirma que “Shakespeare tornou-se o grande mestre da sondagem do abismo existente entre o ser humano e seus ideais”. 32 Nestas “sondagens”, o mestre inglês investiga momentos de fratura narrativa. Retiramos de sua obra dramatúrgica dois momentos que consideramos exemplares da representação do estupor e suas conseqüências. O primeiro exemplo é da peça Macbeth. Após anunciarem o final da guerra e a vitória dos rebeldes da Escócia, três feiticeiras predizem ao general Macbeth que ele será agraciado com o título de thane de 32. BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. p. 31..

(27) Cawdor e que será coroado rei. Quando Macbeth fica sabendo, pouco depois, que o rei Duncan, seu primo, de fato acabara de nomeá-lo thane de Cawdor, ele passa a ter apenas uma idéia que ao mesmo tempo o fascina e o aterroriza: realizar, através do assassinato de Duncan, a etapa seguinte do cumprimento de seu destino. O rei então, para honrar e saudar o primo pela sua nomeação, decide que passará a noite no castelo de Macbeth. Lady Macbeth, que havia sido prevenida pelo marido sobre a profecia das feiticeiras, dissipa com suas palavras eloqüentes qualquer sombra de hesitação que seu marido demonstra. À noite, após apunhalar Duncan, inicia-se o caos interior de Macbeth, que o psicanalista francês Daniel Sibony, em seu livro Na companhia de Shakespeare – Fúria e paixão em doze peças, irá associar aos “remorsos, terrores e alucinações”33 experimentados pelo atormentado Macbeth. Nosso exemplo se inicia exatamente neste momento: logo após apunhalar o rei Duncan em seus aposentos, não antes de Lady Macbeth ter colocado sonífero no vinho dos guardas responsáveis pela segurança do rei, Macbeth surge na cena para reencontrar a esposa após ter realizado o feito, ainda segurando os punhais com os quais acabara de cometer o assassinato. O general Macbeth, cuja experiência no fervor do campo de batalha já o havia feito acostumar-se com o sangue alheio, parece hesitar diante da máscara do terror. MACBETH (olhando as mãos) É uma triste visão. LADY MACBETH Que tolice dizer que é visão triste.. E então, se referindo aos guardas que dormiam entorpecidos pelo sonífero, diz: MACBETH Um riu, dormindo; o outro ouviu “Macbeth!”, Acordando-se os dois. Fiquei ouvindo; Mas eles só rezaram, pra depois Voltar ao sono [...] Disse um, “Louvado seja!”; o outro, “Amém”, Como se vendo estas mãos de carrasco. Não pude, ao seu pavor, dizer “Amém”, 33. SIBONY, Daniel. Na companhia de Shakespeare – Fúria e paixão em doze peças. Tradução de Mª de Lourdes Lemos Britto de Menezes. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 203..

(28) Quando os ouvi dizer “Louvado seja”. LADY MACBETH Não pense tanto nisso. MACBETH Por que não pude eu dizer “Amém”? Precisava de bênçãos, mas o “Amém” Morreu-me na garganta. 34. O que se nota aqui é a total incapacidade de Macbeth em proferir a palavra que o salvaria. Na sua hesitação, originada pelo remorso, Macbeth experimentou o estupor causado pela visão do terror. E, em sua alucinação, pensa ter ouvido vozes: MACBETH [...] Me parece Que ouvi uma voz gritar! “Não dorme mais! Macbeth matou o sono” – [...] “Não dorme mais!” gritou pra toda casa. Matou o sono Glamis e então Cawdor Não dorme mais; Macbeth não dorme mais. 35. Num momento de despersonalização, Macbeth ouve a voz de sua consciência –ou de seu remorso – como sendo uma voz alheia. Ao proferir a sentença de que não dormirá mais, Macbeth realmente interrompe o descanso necessário à boa condução do pensamento e assim perde o “bálsamo bom de mentes machucadas”. Num claro equívoco de estratégia, segundo irá constatar Lady Macbeth em seguida, ele trouxe consigo as armas do crime, em vez de deixá-las no local do assassinato; deslize que será imediatamente repreendido por sua esposa: LADY MACBETH [...] Por que trouxeste de lá os punhais? Precisam ficar lá. Volta e besunta Com o sangue os dois que dormem. MACBETH Nunca mais. Eu temo quando penso no que fiz; Não posso mais olhá-lo. 36. 34. SHAKESPEARE, William. Macbeth. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 216-217. [Grifo nosso.] 35 SHAKESPEARE. Op. cit. p. 217. 36 Ibid. p. 217..

(29) Então, ele finaliza a cena, cheio de remorso, ao ouvir as batidas de alguém no portão do castelo. MACBETH Melhor não conhecer-me que tomar Consciência do meu feito. 37. O horror em Macbeth é tamanho, que faz Harold Bloom afirmar: “Na contramão da fórmula aristotélica, Shakespeare inunda-nos com temor e pena, não para nos purgar, mas com um propósito sem propósito, o qual interpretação alguma será capaz de explicar.” 38. E é este horror, representado pela sua incapacidade de proferir o “Amém” da salvação,. que precipita Macbeth em sua trágica aventura pelo poder e a glória. O segundo exemplo shakespeareano é retirado de Hamlet, mais precisamente duas passagens exemplares da personagem Ofélia, cujo processo de enlouquecimento testemunhamos, nas passagens entre o segundo e o quarto atos. Nas muralhas de Elsinor, na Dinamarca, o príncipe Hamlet – juntamente com seu amigo Horácio e outros sentinelas – têm contato com um fantasma. Trata-se do espectro do pai de Hamlet, morto há menos de dois meses. “Há algo de podre, no Estado da Dinamarca”39. Hamlet é o escolhido para vingar o assassinato do pai. Na corte, Cláudio, irmão do falecido rei e recém coroado, comemora suas bodas com Gertrudes, a mãe de Hamlet, recém viúva. Parte do plano de vingança de Hamlet é simular sua própria loucura para, assim, criar uma armadilha onde sucumba seu tio, Cláudio. Para não se desviar de seu objetivo, Hamlet se afasta do amor de Ofélia, filha do conselheiro do rei, o patético Polônio. Este julga que a loucura do jovem Hamlet reside na recusa do amor da filha. Ofélia, grande vítima da simulação da loucura de Hamlet, é alvo de uma investida, logo no segundo ato da tragédia. Shakespeare não dramatiza esta cena, que é narrada pela. 37. Ibid. p. 218. BLOOM. Op. cit. p. 634. 39 SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2001. p.30. 38.

(30) assustada Ofélia a Polônio e que nos serve de exemplo de como o Bardo representa a loucura. OFÉLIA Oh, meu senhor, meu senhor, que medo eu tive! [...] Bom senhor, eu estava costurando no meu quarto Quando o príncipe Hamlet me surgiu Com o gibão todo aberto, Sem chapéu na cabeça, os cabelos desfeitos, As meias sujas, sem ligas, caídas pelos tornozelos, Branco como a camisa que vestia, Os joelhos batendo um contra o outro, E o olhar apavorado De quem foi solto do inferno Pra vir contar cá em cima os horrores que viu. 40. Neste trecho inicial, podemos perceber a caracterização inequívoca que Ofélia faz para descrever a loucura do príncipe Hamlet. A descrição minuciosa do desleixo na vestimenta e na aparência física denota claramente a “decadência física” que Barnard nos apresenta como um dos sintomas da esquizofrenia. Hamlet, na sua encenação da loucura, escolhe os elementos certos. E Ofélia prossegue, narrando o que Hamlet fez. OFÉLIA Me pegou pelo pulso e me apertou com força. Depois se afastou à distância de um braço E, com a mão na fronte, Ficou olhando meu rosto com intensidade Como se quisesse gravá-lo. Ficou assim muito tempo. Por fim, sacudindo três vezes a cabeça, Soltou um suspiro tão doloroso e fundo Que eu temi pudesse estourar seu corpo, Fosse o último suspiro. E aí, me soltou; Com a cabeça virada pra trás Foi andando pra frente, como um cego, Atravessando a porta sem olhar, Os olhos fixos em mim até o fim. 41. Hamlet, que muda de um estado emocional para outro, simula um estado de alexitimia. Ao narrar seu encontro com o príncipe, Ofélia não descreve nenhuma palavra que Hamlet tivesse pronunciado. Ele está impossibilitado de falar. A conclusão de Ofélia é imediata: Hamlet está louco. E isto a apavora.. 40 41. SHAKESPEARE. Hamlet. Op. Cit. p. 39-40. SHAKESPEARE. Op cit. p. 40..

(31) Hamlet acaba matando acidentalmente o velho Polônio no terceiro ato, o que acabará por precipitar a loucura de Ofélia e, conseqüentemente, sua morte. Na quinta – e última – cena do Ato IV, ficamos sabendo, através de Horácio, que Ofélia “está fora de si”. Numa rápida descrição do estado de Ofélia, que ele faz para a Rainha, Horácio afirma: HORÁCIO [...] Se irrita por qualquer migalha; fala coisas sem nexo, Ou com apenas metade do sentido. O que diz não diz nada [...]. As palavras, junto com os olhares, meneios e gestos Que ela faz, dão pra acreditar Que realmente ali há um pensamento, bastante incerto; Mas muito doloroso. 42. O que Horácio nos apresenta é um diagnóstico da loucura de Ofélia que, ao contrário da loucura de Hamlet, não é uma encenação. A morte de seu pai a deixou realmente louca. Mas esta loucura se manifesta justamente através das fraturas do fluxo narrativo, nas mudanças bruscas de humor e na incapacidade de gerar uma narrativa que dê conta da realidade a qual ela está vivendo. Diante da impossibilidade de transformar em memória sua experiência dolorosa, Ofélia sucumbe à terrível desordem da linguagem, falando de maneira desconexa, usando versos e rimas e até canções para tentar expressar o caos que reina em sua alma, mudando de assunto, sem conseguir um fluxo coerente de idéias nem de palavras. OFÉLIA Onde está a radiosa rainha da Dinamarca? RAINHA O que foi, Ofélia? OFÉLIA (canta) Como distinguir de todos O meu amante fiel? Pelo bordão e a sandália; Pela concha do chapéu. RAINHA Ai, minha encantadora jovem, que significa essa canção? OFÉLIA O que diz? Não, presta atenção, por favor. (Canta.) Está morto, senhora, foi embora; 42. SHAKESPEARE. Op. cit. p. 101..

(32) Está morto, foi embora, Uma lápide por cima E a grama verde, por fora. Oh, oh! RAINHA Mas querida Ofélia... OFÉLIA Ouve, por favor. (Canta.) Seu sudário, como a neve da montanha ... [...] O pranto do amor fiel Fez as flores perfumadas Descerem à tumba molhadas. REI Como está você, minha bela jovem? OFÉLIA Bem! E Deus vos ajude. Dizem que a coruja era filha de um padeiro. Senhor, nós sabemos o que somos, mas não o que seremos. Deus esteja em vossa mesa! REI Ela pensa no pai. OFÉLIA Por favor, nem uma palavra sobre isso; mas quando perguntarem que coisa significa, respondam assim: (Canta.) Amanhã é São Valentino E bem cedo eu, donzela, Pra ser sua Valentina Estarei em tua janela. E ele acorda e se veste E abre o quarto pra ela. Se vê a donzela entrando Não se vê sair donzela. RAINHA Gentil Ofélia! OFÉLIA Está bem, Ô!, sem praguejar, eu termino; (Canta.) Por Jesus e a Santa Caridade Vão pro diabo os pecados Os rapazes fazem o que podem Mas como eles são malhados! Disse ela: “Antes de me atracar, Você prometeu casar”. Ele responde: “Pelo sol, eu o tinha feito Se não fosses ao meu leito”. REI Há quanto tempo ela está assim? OFÉLIA Eu espero que tudo saia bem. Devemos ser pacientes. Mas não posso deixar de chorar pensando que o enfiaram nessa terra fria. Meu irmão tem que ser informado. Por isso eu agradeço vossos bons conselhos. Vem, minha.

(33) carruagem! Boa-noite, senhoras. Boa-noite, amáveis senhoras; boa-noite, boanoite. (Sai.) 43. O que se vê aqui é o furor da loucura se manifestando na perda de controle do ego. Ofélia, impossibilitada de produzir um fluxo narrativo, se precipita para a loucura e para a tragédia, ao se jogar no rio e se afogar, sufocada no lodo. Para Harold Bloom, em Hamlet: poema ilimitado, o páthos aqui contido enseja um efeito extraordinário, exclusivo de Ofélia. O contraste entre “sufocar no lodo” e a visão da jovem ensandecida, flutuando e cantando velhas canções, provoca uma ressonância sublime, semelhante à percepção de Hamlet, de ser ele mesmo, igualmente, tudo e nada. 44. Para encerrar nossa aventura pelo estupor shakespeareano, parece notável que, no livro de Harold Bloom, haja um capítulo intitulado O estupor das estrelas. O capítulo analisa o embate da eloqüência de Hamlet em contraste com a retórica empolada de Laertes, irmão de Ofélia, no momento em que Hamlet, tomando conhecimento da morte de Ofélia, vê o corpo ser baixado à cova e enfrenta a fúria desmedida de Laertes. Ao responder aos insultos de Laertes, “é Hamlet quem enfeitiça a platéia, de modo que entramos em estado de estupor diante da transformação radical observada nesse grande personagem”.45 Bloom, aqui, utiliza a palavra estupor no sentido da recepção por parte do leitor/público ao ver a reação do herói. Até então incapaz de tomar uma atitude realmente ativa em relação à sua vingança, ao amor de sua Ofélia e à usurpação de seu reino, neste momento, Hamlet enfrenta Laertes com palavras e, assim, enfrenta Cláudio e faz sua voz finalmente soar na Dinamarca, se afirmando como verdadeiro herdeiro de seu pai. É Hamlet saindo de seu estupor, provocando, segundo Bloom, o estupor na platéia, para se precipitar finalmente na tragédia que seu destino lhe guardava.. 43. SHAKESPEARE. Op. cit. p. 101-103 BLOOM, Harold. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p. 52. 45 BLOOM. Op. cit. p. 80. 44.

(34) Em Tchekhov, o estupor funcionará de maneira diferente, porém sempre precipitando suas vítimas à tragédia. Segundo Raymond Williams, Tchekhov foi herdeiro da principal tradição do realismo do século XIX na qual também trabalhou. E, no entanto, a partir de sua obra podemos seguir o curso de uma importante tradição do século XX, na qual a rejeição do realismo é quase absoluta. 46. Este paradoxo pode ser entendido a partir da maneira como os indivíduos [em Tchekhov,] apresentam variações nas suas atitudes e responsabilidades, mas o sentido de um fracasso geral foi introduzido de maneira decisiva. A estrutura e o método do drama tchekhoviano começam a sofrer alterações que conduziriam à sua verdadeira originalidade. 47. Suas personagens, pouco a pouco, vão-se tornando parte de uma orquestração de respostas a um destino comum. “Tchekhov é o realista do colapso”48. Numa sutil quebra de sentido que, por vezes, se torna quase completa, algumas cenas de Tchekhov vão sendo fundamentadas sobre uma crescente tensão trágica, em que a memória deficiente de um passado que significou alguma coisa se choca com o presente, tão diverso, e se converte numa esperança fragmentada em relação ao futuro. Isto pode ser visto principalmente em As três irmãs (1901) e O jardim das cerejeiras (1904). Destacamos aqui dois exemplos da ausência de palavras – e das conseqüências disto – na dramaturgia de Tchekhov. O primeiro exemplo é uma cena do Ato 4 de As três irmãs. O batalhão do exército se despede da cidade. O jovem barão de Tusenbach, apaixonado por Irina, uma das três irmãs, finalmente conseguiu convencê-la a se casar com ele, apesar de ela não estar apaixonada. Para Irina, este casamento é a única esperança de sair da cidade onde vive. Porém, Tusenbach tem um rival, o desagradável Solioni que, na noite anterior, diante do teatro, o desafiou para um duelo a pistola. É fato sabido que Solioni tem excelente pontaria. Tusenbach se prepara para o duelo, sem que Irina saiba o que está para acontecer. O importante aqui é observar o comportamento narrativo de Tusenbach. Ele, 46. WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Tradução de Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 183. 47 WILLIAMS. Op cit. p. 188. 48 WILLIAMS. Op cit. p. 183..

(35) que outrora parecia tão eloqüente, mesmo sabendo que está prestes a encarar seu inimigo num duelo, mesmo sabendo que seu inimigo tem habilidade superior à sua, não consegue falar de sua preocupação, o que poderia reverter a situação e evitar o seu desfecho trágico. Mas a personagem tchekhoviana se precipita em direção à tragédia através do silêncio. IRINA – [...] (Pausa.) Nossa cidade ficará deserta, agora. TUSENBACH – Minha querida, vou sair, mas voltarei. IRINA –Aonde vais? TUSENBACH – Preciso ir à cidade e depois acompanhar meus camaradas. IRINA – Não é verdade. Nikolai... por que estás tão distraído hoje? (Pausa.) Que aconteceu ontem na porta do teatro? TUSENBACH – Daqui a uma hora estarei de volta e de novo contigo. [...] IRINA (pausa) – Tens o olhar tão inquieto... TUSENBACH – Não dormi a noite toda. Nada existe de terrível na minha vida, nada que possa fazer-me medo... [...] Dize-me qualquer coisa. (Pausa.) Dize-me qualquer coisa. IRINA – O que? Dizer o que? TUSENBACH – Qualquer coisa. IRINA – Vamos! Vamos! (Pausa.) TUSENBACH – Às vezes acontece que detalhes idiotas, mínimos assumem grande importância na vida, sem compreendermos por que. [...] Preciso ir, é hora... Estás vendo aquela árvore? Está seca e, no entanto, a um simples roçar do vento, ela se balança como as outras. Parece-me que será assim que, quando estiver morto, participarei da vida, de uma maneira ou de outra. Adeus, minha querida... [...] IRINA – Vou contigo. TUSENBACH (alarmado) – Não! Não! (Afasta-se, rapidamente. Detém-se na aléia.) Irina! IRINA – Sim...? TUSENBACH (não sabendo o que dizer) – Hoje não tomei café. Mande preparar... (Sai rápido.) 49. A impossibilidade de Tusenbach em produzir uma narrativa diante do horror imaginado – o duelo – faz com que ele se precipite em direção à sua própria morte, sem possibilidade de resgate. Irina, que pressente claramente que algo está acontecendo sem que ela saiba, acaba sendo adjuvante neste quase suicídio de Tusenbach. Olga, a mais velha das três irmãs, encerra a peça dizendo: “Ah, se pudéssemos saber, se pudéssemos saber!” 50 O outro exemplo, que identificamos como um caso claro de alexitimia, é a cena do Ato 4 de O jardim das cerejeiras, última peça escrita por Tchekhov, onde Lopakhin, ex49. TCHEKHOV, Anton. As três irmãs. Tradução de Maria Jacintha. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1995. p. 99-100. 50 TCHEKHOV. As três irmãs.Op. cit. p. 108..

(36) escravo da família dos Andreiêv, hoje é um rico comerciante que acabou de adquirir, em um leilão, a casa e o terreno do jardim de cerejeiras onde seus pais foram escravos. É o momento da mudança, no qual os antigos moradores estão indo embora para que o novo proprietário transforme tudo aquilo em uma colônia de férias, loteando o jardim, derrubando as cerejeiras seculares. Liuba Andreievna, mulher que teve uma vida luxuosa e que se recusa em aceitar a nova condição de ex-proprietária falida, sugere a Lopakhin que ele peça em casamento sua filha adotiva, a jovem Vária. Desta maneira, vemos a única possibilidade de o jardim de cerejeiras permanecer, de certa forma, em nome da antiga família. Liuba convence Lopakhin a pedir a mão de Vária e acerta os detalhes para aquele momento mesmo: “Temos até champanhe...”51, diz Lopakhin. O momento é propício ao pedido de casamento. Vária está apaixonada por ele e foi informada de que ele fará o pedido naquele momento. LOPAKHIN (olha o relógio) – Sim... (Pausa. De trás da porta ouvem-se risos sufocados e sussurros. Por fim, Vária entra.) VÁRIA (faz como se procurasse algo no meio dos embrulhos) – Que estranho... Não encontro em parte alguma... LOPAKHIN – Está procurando o que? VÁRIA – Fui eu mesma que guardei, e agora não sei onde... (Pausa.) LOPAKHIN – O que pretende fazer agora, Várvara Mikhailovna? VÁRIA – Eu? Empreguei-me na casa dos Ragulin. Serei governanta... ou algo assim... LOPAKHIN – Eles moram em Iasnievo, não é?... A setenta verstas52 daqui, apenas... (Pausa.) Bem, assim sendo, tudo terminou nesta casa. VÁRIA (continua a procurar) – Mas onde se meteu?... Talvez esteja na mala grande... Sim, para mim a vida nesta casa terminou... LOPAKHIN – E eu irei a Kharkov. Agora mesmo, nesse trem. Negócios. Deixo Epikhodov aqui...eu o contratei... VÁRIA – É mesmo? LOPAKHIN – No ano passado já nevava por esta época, lembra? E agora temos um outono tão ensolarado e bonito. Apenas um pouco fresco...hoje de manhã fez três graus abaixo de zero... VÁRIA – Não olhei... (Pausa.) De qualquer modo, o nosso termômetro está quebrado... (Pausa.) UMA VOZ (vinda do pátio, pela porta) – Iermolai Alekseitch! LOPAKHIN (como se há muito estivesse aguardando esse chamado) – Já vou indo, já vou! (Sai, apressado. Vária senta-se no assoalho, descansa a cabeça sobre a trouxa de roupas de cama e soluça em silêncio.) 53 51. TCHEKHOV, Anton. O jardim das cerejeiras. Tradução de Gabor Aranyi. São Paulo: Veredas, 1994. p.214. 52 Versta: antiga medida itinerária russa equivalente a 1.067 metros. Fonte: Dicionário Aurélio Eletrônico, versão 5.0. 53 TCHEKHOV. O jardim das cerejeiras. Op Cit. p. 215..

(37) O que se vê nesta extraordinária cena de Tchekhov é o poder destruidor da alexitimia. Lopakhin simplesmente não consegue fazer o que ele havia dito que faria – e que ele deseja fazer. A impossibilidade de dar palavras às suas emoções acaba projetando toda a ação da peça para um vazio desolador. Neste sentido, Tchekhov anuncia o que a dramaturgia de Samuel Beckett iria levar às últimas conseqüências.. 2.3 O ESTUPOR ENTRE A ERRÂNCIA E O DISCURSO ESPIRAL: BECKETT. O estupor terá importância fundamental na dramaturgia e na obra ficcional de Beckett. Cabe a nós agora aplicar estas abordagens especificamente na dramaturgia de beckettiana. Ludovic Janvier, um dos principais estudiosos sobre a vida e obra de Beckett, ao analisar o discurso na obra beckettiana, chega a algumas conclusões interessantes ao comparar o discurso e a errância em Beckett. Segundo ele, o errar sem ilusão prossegue no falar sem repouso de todos os falantes pregados no chão – quem erra não pode ainda falar, quem fala não pode ainda errar – até que, enfim, abandonada a busca, o espaço do livro e do tempo de leitura sejam o espaço e o tempo de uma paralisação fora da busca, fora da tragédia, de uma estada na semiquietude enfim ganha ou um retiro na brancura do neutro. A errância e o discurso, ambos inquietos, percurso de palavras, percurso de um corpo, são duas imagens de uma mesma busca: a da alma, falando em sua habitação, com o único objetivo de se encontrar ali um dia. 54. O que se vê aqui é o contraste entre os heróis beckettianos: os que perambulam, incapazes de criar um discurso coerente que efetue uma mudança e dê um objetivo às suas vidas; e os presos ao solo (ou à cadeira, ou ao leito), incapazes de perambular com o corpo, que sustentam discursos elípticos (ou espirais, ou esféricos) cujo fluxo logaritmicamente tende ao infinito. Em ambos os casos, as conseqüências serão fatais: destruição do corpo ou destruição da linguagem.. 54. JANVIER, Ludovic. Beckett. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 74-75.

(38) O estudioso irlandês A. J. Leventhal aborda, logo nas primeiras análises da obra de Beckett, a questão da inércia e da imobilidade do herói beckettiano. Em sua palestra para o Trinity College, em Dublin, proferida em 1963, Leventhal já afirmava o seguinte: “Estase55, ou quase estase, é uma característica marcante das criações de Beckett. ‘Cette intertie immortell’ é a maneira como o próprio Beckett reverencia a imobilização do homem”.56 Por fim, Martin Esslin, um profundo conhecedor do teatro do século XX, irá afirmar no seu livro O teatro do absurdo que “toda a obra de Beckett é uma tentativa de dar nome ao inominável” e que “a linguagem nas peças de Beckett serve para expressar o desmoronamento, a desintegração da linguagem”57. Sendo assim, resta-nos decifrar os meios como esta destruição se realizará. Se observarmos atentamente a obra de Beckett, veremos ali mais que a destruição da cena, uma tentativa desesperada de resgatar alguns dos pressupostos fundamentais da manutenção da arte dramática. Se, em seus romances, Beckett atinge os limites da linguagem para provocar-lhe rupturas, no palco, ele resgata os elementos mais ancestrais da dramaturgia para, com eles, construir sua obra e flagrar a tragédia do homem dos dias de hoje. A partir de agora, faremos uma análise da evolução do sentido da representação do trágico no gênero dramático, tomando como ponto de partida a sua origem, na Grécia do século V a.C.; e, levantando as diferentes noções do significado do trágico, através dos estudos de alguns pensadores alemães desde o século XVIII até o século XX, buscaremos seu sentido no drama Esperando Godot e em outras peças escritas por Samuel Beckett.. 55. [Do gr. stásis, ‘parada’.] S. f. 1.Patol. Estagnação, no organismo, de matérias de consistência e de origem diversa, como sangue, urina, fezes, etc. 2.Fig. Entorpecimento, paralisia. Fonte: Dicionário Aurélio Eletrônico versão 5.0. 56 LEVENTHAL, A. J. The Beckett hero. In.: ESSLIN, Martin. (Org.). Samuel Beckett: a collection of critical essays. New Jersey: Prentice-Hall, 1965. p. 43. [Tradução do autor desta dissertação.] 57 ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p. 75..

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