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2 B ECKETT ENQUANTO DEVIR DE ARTISTA SE NUTRE DAS EXPECTATIVAS

4.1 A EQUAÇÃO BECKETTIANA EM E LEUTHERIA

A equação beckettiana nunca é simples. Nosso olhar se voltará agora para uma peça teatral muito pouco conhecida, tanto no meio literário quanto no mundo do teatro como um todo. O motivo para que isto aconteça é que esta peça jamais foi encenada e, mesmo num futuro próximo, haverá pouca chance de ser levada aos palcos, simplesmente porque esta peça foi banida do Inventário de Samuel Beckett, The Beckett Estate. E ainda mais, apesar de ter sido escrita há quase 60 anos, apenas em 1995 uma versão integral do texto foi publicada no original em francês e traduzida com certa polêmica para o inglês. 158

Escrita em francês, entre os meses de janeiro e março de 1947, Eleutheria foi a primeira peça de Samuel Beckett, seguida por Esperando Godot, de 1948. Segundo o estudioso holandês Marius Buning, Eleutheria foi preterida pelo encenador francês Roger Blin – que preferiu realizar a primeira montagem de Godot – porque a peça tinha muitas personagens (o que necessitaria de um elenco mais numeroso) e tinha exigências cenográficas mais dispendiosas, ao contrário de Esperando Godot, cuja montagem admitia apenas cinco atores e praticamente nenhum cenário.

A advertência escrita pelo editor Jérôme Lindon para a edição francesa de

Eleutheria, de 1995, deixa clara a recusa de Beckett em publicar a peça. Segundo Lindon: Samuel Beckett não queria que se publicasse Eleutheria. Foi a primeira peça que ele havia escrito em francês, no final dos anos 40. [...] Ele me deu Eleutheria e

Esperando Godot para ler. Se ele aceitou voluntariamente que se publicasse a

segunda de suas peças em 1952, um pouco antes da montagem de Roger Blin no Teatro Babylone, ele se opôs à publicação de Eleutheria assim como eventuais representações no palco. [...] Ele falou ainda, poucos dias antes de sua morte, a alguns amigos íntimos, a propósito de um projeto de publicação de suas Obras Completas: “Em nenhuma circunstância deve figurar Eleutheria”. 159

158 A polêmica sobre as traduções em inglês de Eleutheria é exposta na palestra Eleutheria revisited, ministrada por Marius Buning, presidente da Dutch Samuel Beckett Society (Sociedade Holandesa de Samuel Beckett), em 1997, na qual ele apresenta e compara a tradução norte-americana de Michael Brodsky (segundo ele, repleta de erros de tradução e estilo) com a versão britânica escrita por Barbara Wright (cuja tradução, segundo Buning, é exemplarmente mais bem sucedida.)

159 LINDON, Jérôme. Avertissment. In.: BECKETT, Samuel. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. p. 7. [Tradução do autor desta dissertação]

Sejam quais forem os motivos do autor para esta rejeição, não nos cabe aqui especular. Apenas desejamos firmar nossa visão de que Eleutheria é definitivamente muito melhor do que o próprio Beckett considerou.

Nossa leitura deverá seguir o seguinte método: em primeiro lugar, faremos a análise do significado do título da peça, além de uma breve apresentação das personagens, o significado de seus nomes e suas ações principais; em seguida, iremos apresentar uma leitura de cada um dos três atos, buscando identificar na escritura de Eleutheria os três eixos apontados no segundo capítulo desta dissertação. Desta maneira, buscaremos apontar em quais momentos da peça podemos identificar: o eixo formal, representado pela ação circular herdada de James Joyce; o eixo moral e ético, demonstrando como estão representados o Tempo, o Hábito, a Memória, o binômio Amor/Amizade, assim como a Música, de acordo com a análise beckettiana da obra de Marcel Proust; e ainda as relações de Eleutheria com o Nada, numa articulação com o eixo estético observado nos comentários de Beckett sobre os pintores modernos. Ao mesmo tempo, iremos proceder a um exame da peça, buscando as referências para a afirmação de que o estupor do protagonista, relacionado aos elementos da esquizofrenia e da alexitimia, funciona como

Hýbris e, portanto, ocasiona a tragédia na sua ação.

4.2.A

IMPORTÂNCIA DO NOME

A ação de Eleutheria, diferente de todas as outras peças de Beckett, se passa em Paris. Se observarmos as outras peças de Beckett, percebemos que todas se passam em algum lugar não específico. Esperando Godot se passa à beira de um deserto, cuja descrição, na indicação de cenário sugere apenas “Uma estrada. Uma árvore”.160 A mesma indefinição de local se verifica em Fim de partida: “Interior sem mobília. Luz

160

cinzenta.”161 Em Eleutheria é diferente. O autor especifica, logo após a lista de personagens: “LUGAR: Paris. TEMPO: Três tardes de inverno consecutivas.”162 Segue-se uma longa descrição de um cenário dividido em duas partes. De um lado, o interior de uma pequena sala na casa da família Krap, cuja riqueza e decoração elegante devam contrastar com a outra metade do palco, o quarto de pensão onde vive Victor – filho dos Krap – onde não há nada, apenas uma pequena cama. Além disso, logo ficamos sabendo que a peça é composta de três atos. Nenhuma outra peça escrita por Samuel Beckett possui três atos.163 A ação de Eleutheria se passará em Paris, com referências diretas a ruas que realmente existem.

Segundo Martin Esslin,

A primeira peça de Beckett, Eleutheria [...] se ocupa dos esforços de um jovem para se libertar de sua família e de toda obrigação social. Em Eleutheria [...] o palco é dividido em dois: à direita, o herói jaz em sua cama, apático e passivo; à esquerda, sua família e amigos discutem seu caso sem jamais dirigir-se diretamente a ele. Aos poucos, a ação vai mudando da esquerda para a direita e finalmente o herói consegue reunir energia suficiente para libertar-se de seus grilhões e separar-se completamente da sociedade. 164

Porém, a peça funciona de maneira um pouco diferente deste esquema sugerido por Esslin. São três atos. Apesar de o palco estar sempre dividido em duas partes, a ação do primeiro se passa totalmente na sala de estar da casa da família Krap. No segundo ato, a ação é deslocada para o quartinho de Victor, assim como no terceiro e último ato. Beckett deixa clara a sua intenção ao colocar esta distribuição de cenário na indicação em que descreve a cenografia da peça: “O quarto de Victor move-se imperceptivelmente em direção ao salão dos Krap, como a sujeira em direção ao limpo, o sórdido em direção ao respeitável, o vazio em direção ao estorvado”.165

161 BECKETT, Samuel. Fim de partida. Tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade. São Paulo, Cosac & Naify, 2002. p. 37.

162 BECKETT, Samuel. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. p. 17. 163

À exceção de Esperando Godot e Dias felizes (Happy days, escrita em inglês, em 1961, e depois traduzida para o francês pelo próprio autor sob o título de Oh, les Beaux jours), ambas com dois atos cada, toda a dramaturgia de Beckett será limitada a peças em apenas um ato único.

164 ESSLIN, Martin. O teatro do absurdo. p. 31-32. 165

O título da peça já sugere o tema que será tratado no drama: a liberdade. Segundo Ludovic Janvier, “é da liberdade que trata o debate que opõe Victor Krap [...] à família”166. A palavra Eleutheria vem do grego eleútheros, e funciona como elemento de composição, significando ‘livre’, ‘liberdade’. Portanto, eleutheria significa ‘libertação’.167 Desta maneira, podemos aferir que a ação de Victor Krap, sua inação, é uma estratégia de libertação, principalmente de sua família.

A lista de personagens que se opõem a Victor deve ser estudada com cuidado. Os nomes destas personagens trazem pequenos trocadilhos em inglês que não podem passar desapercebidos. O primeiro deles é o M. Henri Krap, pai de Victor, um velho escritor “cínico, de humor afiado, lascivo” que, cansado do casamento e da própria vida, ao se saber acometido de um câncer na próstata, espera conformado pela morte breve e inevitável.

M. KRAP – [...] Eu sou a vaca que, diante dos portões do abatedouro, compreende todo o absurdo das pastagens. Seria melhor ter pensado nisso mais cedo, lá, quando estava no pasto verde e tenro. Tanto faz. A ela resta ainda atravessar o pátio. Isto, ninguém pode tirar dela.168

O senhor Krap é a personagem de maior destaque no primeiro ato da peça. É ele que conduzirá a ação do ato até o final surpreendente. É importante notar o significado da sonoridade do nome ‘Krap’ que se pronuncia da mesma maneira que ‘crap’, cujo significado, em inglês vulgar, é ‘merda’, ‘bosta’, e ainda na forma de verbo ‘to crap’ que significa ‘defecar’169. Assim, Beckett já inicia sua lista de personagens com um trocadilho infame. O próprio senhor Krap irá ressaltar o significado vulgar de seu sobrenome, quando é interrogado sobre qual tipo de literatura ele prefere escrever. Ele cinicamente responde: “Ao gênero merda”170. Beckett iria escrever outro personagem com o mesmo sobrenome,

166

JANVIER, Ludovic. Beckett. p. 73.

167 Fonte: Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.

168 BECKETT. Eleutheria. Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. p.29.

169 Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed. 170

acrescido apenas de um ‘p’ ao final. Na peça Krapp´s last tape, escrita em inglês, em 1958, o protagonista é “um velho de aspecto cansado: Krapp”171.

Seguindo a lista de personagens, encontra-se Mme. Violette Krap, a mãe de Victor. Igualmente cansada do casamento, suas preocupações se concentram em Victor e em seu próprio corpo. A senhora Krap sofre com um útero em prolapso172. Seu esforço em trazer o filho de volta pra casa é tão grande que ela chega a contratar um torturador chinês, chamado Tchoutchi, para ameaçar o filho e forçá-lo a retornar. Ela é definida pelo marido das maneiras mais hostis e sarcasticamente mordazes. Ele a chama de: “aquela massa de órgãos gastos”173; e ainda se refere a ela como: “minha mulher, aquela catástrofe”174.

O próximo a figurar na lista de personagens é Victor. Filho dos Krap, Victor abandonou a casa da família, os estudos e a noiva, mora num quarto de pensão decadente e passa os dias prostrado em sua cama ou, quando tem fome, revira latas de lixo em um bairro decadente de Paris. Ele é o que se pode chamar de um ‘eleuterômano’: uma pessoa obcecada pela liberdade. Victor, em inglês, significa ‘vencedor’175. Vence, através da prostração, a força que tenta subjugá-lo e conquista sua libertação, pagando o preço da tragédia em sua família.

Os trocadilhos e jogos de palavras com os nomes das personagens prosseguem com Mme. Meck176, amiga da família, que faz uma visita aos Krap, preocupada com a situação de Victor. Viúva de um general, ela se orgulha de as últimas palavras de seu falecido esposo terem sido pela França:

MME. MECK – “Vive la France!”. Depois, entrou em coma.177

171

BECKETT. Krapp´s last tape. In.: The complete dramatic works. Londres: Faber & Faber, 1986. p. 215. 172 A versão francesa da peça utiliza o formato ‘bas-ventre qui tombe’, a tradução de Barbara Wright sugere ‘prolapsed womb’. Optamos traduzir em português, a partir da versão inglesa.

173 BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 39. 174

BECKETT. Eleutheria. Op. cit. p. 57.

175 Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed.

176 O significado da palavra ‘mec’, em francês, é ‘alcoviteiro’, ‘gigolô’. Fonte: Dictionnaire de l'Académie française, 9.ed. Version informatisée.

177

No segundo ato da peça, Mme. Meck tentará inutilmente tirar Victor da pensão onde ele se encontra, usando a força física de seu chofer e de uma espécie de guarda- costas, ex-criado de seu falecido marido.

Há ainda o casal formado pelo Dr. Piouk e por Marguerite, irmã da Sra. Krap. A palavra ‘piouk’, pronunciada em francês, tem a mesma sonoridade da palavra inglesa ‘puke’, cujo significado é ‘vômito’178. O Dr. Piouk é médico e se diz um interessado pela humanidade, cujos problemas ele sugere resolver da seguinte maneira, como ele expressa perto do final do primeiro ato da peça:

DR.PIOUK – [...] Eu proibiria a reprodução. Eu aperfeiçoaria os preservativos e outros meios de anticoncepção e generalizaria o seu uso. Eu criaria um corpo de médicos para praticar o aborto, controlado pelo Estado. Condenaria à pena de morte todas as mulheres culpadas por dar crianças à luz. Afogaria os recém-nascidos. Militaria a favor da homossexualidade, e eu mesmo me daria como exemplo. E, para ativar melhor as coisas, eu encorajaria, por todos os meios, o recurso da eutanásia, sem, contudo, exigí-la como uma obrigação. É isso, em linhas gerais. 179

O Dr. Piouk aparecerá no segundo ato com uma sugestão de oferecer uma pílula de veneno para Victor, a fim de que o jovem, ao ver uma possibilidade de realmente morrer, seja ‘curado’ de sua melancolia. Será justamente Mme. Piouk, irmã de Mme. Krap, que dará a definição para o estado de Victor e apresentará a angústia da família com aquela situação, num diálogo com o senhor Krap.

MME.PIOUK – Mas alguma coisa precisa ser feita! Nós não podemos deixá-lo daquele jeito.

MKRAPP – De que jeito?

MME.PIOUK – Naquele estado de ... de inércia sórdida. 180

É justamente nesta ‘inércia sórdida’ que identificamos o estupor que acomete Victor Krap. Completando o quadro de personagens cujos nomes possuem um duplo sentido, está Mademoiselle Olga Skunk, noiva de Victor. A palavra ‘skunk’ possui três significados, em inglês: no sentido literal, é o nome de um animal extremamente mal- cheiroso, que no Brasil é chamado de ‘jaritataca’; no sentido coloquial, significa ‘pessoa

178 Fonte: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed. 179 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 50.

180

vil’; e, como gíria, tem o significado de ‘esculhambado’181. É a Olga Skunk que o senhor Krap fará um pedido em relação a seu filho.

MKRAP – Eu peço apenas que você diga sim. MLLE SKUNK – Dizer sim? A quê?

MKRAP – Um pequeno pedido. MLLE SKUNK – Não, não, não posso.

MKRAP – Prometa. Eu estou morrendo. (Silêncio.) Finja que está viva, pelo meu filho.

MLLE SKUNK – Sim, sim, tudo que o senhor quiser. MKRAP – Pra que ele possa parecer vivo.

MLLE SKUNK – Sim, sim, eu prometo. MKRAP – Você não entendeu.

MLLE SKUNK – Eu prometo, eu prometo. 182

Assim, a lista de personagens oriundos da classe alta está completa. Curiosamente, as outras personagens da trama, representantes das classes menos abastadas, não possuem trocadilhos em seus nomes. Há um Espectador que, no terceiro ato, intervirá de maneira marcante. Ele não apenas tenta persuadir Victor a se explicar, como outros tentaram antes, mas também vocifera contra a própria peça Eleutheria, chamando-a de “porcaria”183 e ironiza com o nome de seu autor, depois de ler o programa da peça:

ESPECTADOR – Beckett (ele deve pronunciar: Béké.) Samuel. Béké, Béké, isso

deve ser um cruzamento de judeu da Groenlândia com um caipira de Auvergnat.184

Há ainda: Tchoutchi, o torturador chinês já mencionado anteriormente; Mme Karl, a senhoria da pensão onde Victor vive; Thomas, o chofer da Mme Meck que, juntamente com Joseph, o guarda-costas, ameaçam Victor em seu quarto; Jacques e Marie, criados da casa dos Krap, que estão noivos; e o Ponto do teatro.

Porém, a personagem mais importante a partir do segundo ato, que estará praticamente o tempo todo ao lado de Victor será o Vidraceiro, que foi chamado para fazer reparos no vidro da janela que foi deliberadamente quebrada por Victor com seu sapato. O

181 Fontes: Novo Michaelis Dicionário Ilustrado Inglês-Português. Vol. 1. 41.ed. e Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0.

182

BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 57-58.

183 BECKETT. Eleutheria. Op. Cit. p. 136. [O termo utilizado por Beckett é ‘navet’, cujo significado literal é ‘nabo’ mas pode ser compreendida como ‘coisinha sem importância’, a tradução de Barbara Wright opta por ‘rubbish’, cujo significado é ‘porcaria’.]

184

Vidraceiro, “como representante do senso-comum da humanidade e homem prático, questiona, numa série de interrogações, os motivos que levaram Victor a optar por aquela vida sórdida, mas não obtém sucesso”.185 A função dramática do Vidraceiro é, por vezes, a de uma personagem-coro, servindo como intermediário entre o que se passa no palco e os questionamentos da platéia. Juntamente com Michel, seu quase letárgico filho de dez anos de idade, o Vidraceiro será protagonista de um dos diálogos mais tocantes, que finaliza o segundo ato da peça e que, em muitos elementos, se assemelha com o diálogo de Vladimir com o Menino, em Esperando Godot.

VIDRACEIRO – [...] Diga, Michel.

MICHEL – Sim, papai.

VIDRACEIRO – Você está feliz comigo?

MICHEL – O que é isso, feliz, papai?

VIDRACEIRO – Qual a sua idade?

MICHEL – Dez anos, papai.

VIDRACEIRO – Dez anos. (Silêncio.) E você não sabe o que é isso que eu te

disse, feliz?

MICHEL – Não, papai.

VIDRACEIRO – Sabe, quando tem alguma coisa que te dá prazer. A gente se sente

bem, não é?

MICHEL – Sim, papai.

VIDRACEIRO – Então, é mais ou menos isso – feliz. (Silêncio.) E aí, você é feliz?

MICHEL – Não, papai.

VIDRACEIRO – E por quê?

MICHEL – Não sei, papai.

VIDRACEIRO – É porque você vai pouco à escola?

MICHEL – Não, papai, eu não gosto da escola.

VIDRACEIRO – Você preferia brincar mais com seus amiguinhos?

MICHEL – Não, papai, eu não gosto de brincar.

VIDRACEIRO – Eu não sou malvado com você, sou?

MICHEL – Ah, não, papai.

VIDRACEIRO – E o que é que você gosta de fazer?

MICHEL – Não sei.

VIDRACEIRO – Como é que não sabe? Tem que haver alguma coisa.

MICHEL (após uma reflexão) – Eu gosto quando eu estou na cama, antes de

dormir.

VIDRACEIRO – E por quê?

MICHEL – Não sei, papai.

Silêncio.

VIDRACEIRO – Aproveite, então, ao máximo.

MICHEL – Sim, papai.

Silêncio.

VIDRACEIRO – Venha cá pra eu te dar um beijo. (Michel avança. O Vidraceiro

beija-o no rosto.) Você gosta quando eu beijo você?

MICHEL – Não muito, papai.

VIDRACEIRO – E por quê?

185 BUNING, Marius. Eleutheria revisited. Transcrição de palestra ministrada no Teatro Quijano. Ciudad Real, Espanha. 2 de dezembro de 1997. Disponível em <http://samuel-beckett.net/Eleutheria_Revisited.html

MICHEL – Me pinica, papai.

VIDRACEIRO – Viu, você soube dizer por que é que você não gosta quando eu te

beijo.

MICHEL – Sim, papai.

VIDRACEIRO – Então, diga por que você gosta quando você está na cama.

MICHEL (após uma reflexão)–Eu não sei, papai.

Silêncio.

VIDRACEIRO – Você ainda está com fome?

MICHEL – Sim, papai.

VIDRACEIRO (entregando-lhe seu sanduíche) – Tome, coma isso.

MICHEL (hesitante) – Mas este é seu, papai.

VIDRACEIRO (com energia) – Coma!

Silêncio.

MICHEL – O senhor não está com fome, papai?

VIDRACEIRO – Não.

MICHEL – E por quê?

Silêncio.

VIDRACEIRO – Eu não sei, Michel.

Silêncio. Cortina. 186

E assim termina o segundo ato de Eleutheria. Em Esperando Godot, o diálogo se dá quase como um reflexo, um eco, desta cena anterior, da seguinte maneira:

VLADIMIR – E por que é que ele [Godot] não bate em você?

OMENINO – Não sei não, senhor.

VLADIMIR – Ele deve gostar de você.

OMENINO – Não sei não, senhor.

VLADIMIR – Ele dá bastante comida pra você? (O menino hesita.) Dá ou não dá?

OMENINO – Dá sim, senhor.

VLADIMIR – Você não é infeliz? (O menino hesita.) Hein? Não ouviu?

OMENINO – Ouvi sim, senhor.

VLADIMIR – E então.

OMENINO – Não sei não, senhor.

VLADIMIR – Você não sabe se é infeliz ou não?

OMENINO – Não, senhor.

VLADIMIR – É como eu. [...] 187

Vêem-se, no contraste entre estas duas cenas, algumas semelhanças de temática e forma. Da mesma maneira, haverá esta semelhança com outras peças de Beckett, posteriores à escritura de Eleutheria.