• Nenhum resultado encontrado

PARTE II: ESTREMEÇO

2. ESTREMEÇO POR STRAVAGANZA

2.3 O TEXTO ESPETACULAR (OU) A ENCENAÇÃO (2012)

2.3.3. E que venham as críticas

Após nove meses da estreia do espetáculo, um texto escrito pelo crítico teatral Antônio Hohlfeldt é publicado no Jornal do Comércio140.

140

A referida crítica evidencia a complexidade do texto de Pommerat, reforçando a ideia de que o espetáculo é conduzido por pequenas cenas aparentemente descosturadas e que se negam a levar a um entendimento comum. Por outro lado, deixa claro que é o elenco afinado que mantém o espectador atento em sua poltrona e torna-se o grande trunfo deste desafio em que os integrantes da Cia. Stravaganza se embrenharam:

É claro que um texto deste tipo é extremamente difícil de ser trabalhado por um diretor e igualmente desafiador para os intérpretes. Não se permitem bengalas auxiliares para a cena. Ou o diretor acerta a mão ao optar por determinada linha de criação, ou o resultado tornar-se-á desastroso. Não foi o caso de Camila Bauer, que mostrou segurança e discernimento. Para isso, contou com uma equipe técnica qualificada [...] ao lado de um elenco cuidadosamente trabalhado [...]. Trata-se de um coletivo que se desdobra em cena, garantindo os vários e diferentes momentos de uma encenação que se faz de muitas encenações, aparentemente sem lógica nem concatenação, mas que permitem “tremer”, como quer o título original francês, pela banalidade, pela indignação, pelo sem sentido do cotidiano, enfim, pela realidade toda que nos rodeia e que o dramaturgo oferece como um espetáculo, aos olhos do público, a quem nomeia e a quem se dirige constantemente.141

Hohlfeldt tem o cuidado de nomear toda a equipe técnica, reforçando assim a ideia de que o espetáculo é construído por inúmeras mãos, sem evidenciar uma ou outra atuação, frisando o trabalho de Camila Bauer à frente desta orquestração. A “segurança e discernimento”, que Hohlfeldt reconhece em Camila Bauer na direção do espetáculo, também são acertos reconhecidos pelos jurados do 8º Prêmio Braskem. O espetáculo dá a Bauer o destaque como melhor direção. Em outra importante premiação da capital gaúcha, o Prêmio

141

Açorianos, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, o espetáculo recebe inúmeras indicações (direção, atriz e ator coadjuvante, figurino e iluminação)142, mas sem levar nenhum troféu para casa.

Luciano Alabarse também rende elogios à encenação, num texto dedicado às suas impressões sobre o espetáculo intitulado: Para se surpreender. No referido texto, evidencia-se o trabalho meticuloso de Bauer e de seu elenco: “A direção sutil de Camila Bauer extrai de cada ator o máximo de suas possibilidades cênicas.”143

Alabarse aponta também a singularidade da montagem: “[...] Estremeço não se parece em nada do que tem sido produzido pelo teatro gaúcho – e isso é um elogio.” Ou seja, tanto Hohlfeldt quanto Alabarse, além dos jurados do prêmio Braskem, fazem parte da parcela do público que de certa forma foi atingida pelo espetáculo, pelo que se dizia em cena e da maneira como aquilo estava sendo dito, diferente da receptividade do espetáculo em Recife, por exemplo.

Isabelle Barros, repórter do Diário de Pernambuco, tem uma opinião completamente diferente do espetáculo. Inicia seu texto com um comentário que poderia ser qualificado como pejorativo: “A peça Estremeço [...] é filha do que se convencionou chamar de teatro pós- dramático, em que a imitação da realidade e a busca de adesão de público ficaram em xeque.”144

Concordo parcialmente com as palavras de Barros. Acredito que a peça possui muitas características dos espetáculos que Hans-Thies Lehmann qualifica como pós-dramáticos, mas me oponho à afirmação sobre o público. O espetáculo, principalmente quando insere o distanciamento em sua encenação, quer sim atingir o espectador. Mas um espectador modificado que reflita sobre o que está sendo posto no palco e consiga fazer com que estes

142

Os profissionais nominados para os prêmios foram: Camila Bauer para melhor direção; Fernanda Petit e Sofia Salvatori para a categoria de atriz coadjuvante; Lauro Ramalho para ator coadjuvante; Daniel Lion e Duda Cardoso para figurino; e Luiz Acosta para iluminação.

143

O texto faz parte do Segundo Caderno do jornal Zero Hora, dedicado à crítica teatral, publicado em 22 de agosto de 2013.

144

Edição online da cobertura do 20º Janeiro Brasileiro de Grandes

estímulos entrem em conflito com seu modo de ver o mundo e de sua tomada de decisões.

Porém, em outros momentos, Barros reflete sobre pontos preponderantes acerca da montagem, ao inserir a crítica de Guy Debord e sua obra já mencionadas neste trabalho. Neste momento, a meu ver, a crítica esboça um emaranhado de conexões, reforçando o caráter irônico do texto, personificado no palco por seus personagens, realçando o impacto e a potência do texto francês. Do lado oposto em que acentua a potência do texto, acredita que o espetáculo não toca, devido à sua encenação.

Através de seu ponto de vista, percebemos que a crítica acredita que não houve um real aproveitamento das inúmeras situações colocadas pelo dramaturgo, para em seu lugar, substituir a emoção que poderia ter sido extraída destas, pelas inúmeras transições de cena que acabam mascarando as histórias que deveriam ter ali sido contadas.

Conclui com a afirmação de que o espetáculo não a tocou. Por suas palavras: “O resultado foi um espetáculo frio, no qual o espetáculo é vítima da sua proposta: os personagens são apresentados de maneira tão episódica que é difícil se importar com o que se passa no palco.”145 A frieza dos personagens reflete nosso tempo, estamos sendo representados através destes personagens no palco. Apesar da frieza mencionada na crítica, a intenção dos atores é pulsante e, por vezes, pode-se perceber a intenção internalizada pronta para explodir numa atuação contida e, nos casos pertinentes, uma maior contenção de movimentos e feições.

Como havia mencionado, a montagem de Estremeço depende muito da recepção do espectador e de sua relação com o meio. Não acredito que seja fácil para o espectador constatar a realidade na qual estamos imersos, sem perspectivas de futuro. Um cotidiano que nos mostra isso a todo o momento. Poucas são as pessoas que ainda têm certo otimismo em relação ao que virá. Todavia, Pommerat nos dá algumas reminiscências de que ainda podemos mudar, só precisamos sanar nossa condição anestesiada perante os acontecimentos. Pelo menos um resquício desta esperança aparece em meio ao turbilhão de histórias:

145

A MULHER

[...] Eu quero que me deem o meu futuro Eu tenho direito.

A mulher para subitamente de falar, mas continuamos a ouvir a sua voz que ressoa por todo o teatro. VOZ DA MULHER

Quem poderia me convencer que eu não tenho direito ao meu futuro? Quem poderia dizer na minha cara que eu não tenho mais o direito de sonhar com o meu futuro, com um belo futuro, com um futuro que possa me entusiasmar. Um sonho que possa me levar, que possa me arrebatar, com suas asas, suas grandes asas de euforia, de otimismo, e de prazer em direção do meu futuro? Quem? [...] (POMMERAT, 2007, p.4).

Estas palavras deveriam ecoar na cabeça de cada um dos espectadores, evidenciando que a trajetória da humanidade está se desenvolvendo a partir das atitudes e pensamentos de cada um, como indivíduos que formam o todo. Ainda há a possibilidade de sonhar algo que não tenha sido pensado e remar contra o fluxo das águas? A modernidade incitou o nascimento de indivíduos solitários, que não fomentam relações. E esta característica está exposta na montagem do grupo. As relações inexistentes, ou mesmo fragmentárias, não conseguem atingir a sua completude.

Segundo o dramaturgo “[...] a fragmentação do real denuncia que não temos a certeza de um futuro concreto porque as relações humanas consistentes não são possíveis em uma sociedade balizada na ética caracteristicamente sob influência do mundo de trabalho capitalista” (POMMERAT apud. REVISTA ARTE SESC, 2013, p. 34).

Ao retratar o homem contemporâneo, a encenação de Estremeço privilegia o isolamento da figura, como era o intuito da direção. A evidência deste homem contemporâneo e solitário é a crua visão de nossa existência, sem meias palavras, e, no único momento em que se delineia uma esperança - no discurso da mulher do futuro - há um

pedido de socorro, reforçando que nossa capacidade cognitiva pode ser utilizada para buscarmos uma saída. Mas antes disso, precisamos ter a consciência do que somos ou no que estamos nos tornando, e do mundo em que vivemos. E, neste aspecto, o de expor as vísceras deste comportamento do homem contemporâneo, o espetáculo da Cia. Stravaganza prima pela excelência.