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PARTE I: CIA STRAVAGANZA

1. TRAJETÓRIA DA CIA

1.1 VINTE E SEIS ANOS DE CAMINHADA

1.1.3 Terceira Jornada: De casa nova (1998 – 2002)

Um novo rumo delineia esta nova fase da Cia. Stravaganza. Após anos ensaiando em salas emprestadas por amigos ou centros culturais, o sonho da sede própria finalmente se realiza. Inaugura-se o Studio Stravaganza, uma garagem de 450 m² que se transforma em local para treinamentos, novas imersões, arquivo de memórias do grupo, depósito para antigos adereços, cenários e figurinos. Ao mesmo tempo em que um novo universo de investigação se abre para o grupo, a linguagem do clown, há a expansão das atividades do grupo: “[...] horário integral para os ensaios, possibilidades de criar ambientações, reciclar figurinos, organizar materiais de pesquisa diversos” (MOTTOLA, 2009, p. 85).

A linguagem clownesca também é derivada da máscara. O nariz vermelho, que se configura como a principal identificação do clown, é conhecido como a menor máscara do mundo. Este novo espetáculo permeia novamente o universo infantil, mas com o acréscimo da nova linguagem. Utilizando as técnicas apreendidas durante a vinda do professor de teatro Philippe Gaulier68, o novo espetáculo retrata a primeira infância do menino Bum, enciumado ao descobrir que sua mãe terá um novo bebê.

Neste espetáculo ressurge a mesma velha premissa do grupo: arranjar uma dificuldade para que esta seja ultrapassada. “Sempre tem a dificuldade. O Decameron era falar italiano, o Bebê Bum era fazer um espetáculo de clown que a gente nunca tinha feito, o Arlecchino era trabalhar com a máscara da Commedia dell‟arte” (MOTTOLA e PALESE, 2000, p. 20). Isso faz com que os integrantes do grupo tenham um tipo de experiência norteada por estímulos que reverberem de algum modo e que os façam pensar sobre sua prática.

Além do fator da dificuldade apontado acima, havia ainda o interesse em trabalhar com pessoas novas. Este interesse estava baseado na busca por uma forma mais espontânea, através dos exercícios de improvisação, extraída destes atores novos no ramo e que, por

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É tido como uma das principais referências nos estudos do universo da linguagem do clown e do bufão e fundador da Écolle Philippe Gaulier, sediada em Paris. Em 1997, através do FUMPROARTE - Fundo de Apoio à Produção Artística da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, a Cia.

Stravaganza viabilizou a vinda do mestre até a cidade de Porto Alegre, com o

consequência, não dominam totalmente a técnica teatral. Essa espontaneidade visava substituir o desempenho estagnado da maioria dos atores dotados com determinada experiência, com uma recusa de adaptar-se ao novo. Podemos novamente pensar na figura do diletante descrita por Walter Benjamin, apontada anteriormente ou ainda refletir a partir de seu texto “Experiência” (1913).

Com este artigo, o jovem Benjamin inicia seus escritos acerca do tema, dando-nos uma noção de uma experiência apenas relacionada ao momento presente e atrelada a um passado imóvel, comparando-a com uma máscara “[...] inexpressiva, impenetrável e sempre igual” (BENJAMIN, 1989, p. 23). Essa experiência com conotação negativa, deriva de uma cultura da sociedade do adulto, que o autor nomeia como filisteu. O termo filisteu pode estar atrelado a uma série de características, entre elas a de um indivíduo marcado pela ausência de sensibilidade para a poesia e as artes em geral e com um raciocínio matemático e puramente utilitário, desprovido da capacidade de ousar. Por já ter experimentado a situação e não ter tido sucesso, impede que outros tentem ou tenham a mesma vontade e esperança de que os resultados sejam outros. “Somente para o indivíduo insensível a experiência é carente de sentido e de imaginação.” (Ibidem, p. 24). Podemos pensar que os meios de comunicação de massa, em particular, têm o intuito de que novos filisteus sejam produzidos, para que assim sejam mais facilmente moldados.

O jovem Benjamin acredita que a juventude, ou o espírito jovem, pode ajudar a devolver à experiência seu sentido autêntico, ao buscar o novo e superar os limites, deixando para trás aquela sociedade, vista por ele como fundamentalmente filisteia:

[...] nós conhecemos uma outra experiência; esta pode ser hostil ao espírito e aniquilar muitos sonhos que florescem. Todavia é o que existe de mais belo, intocável e inefável, pois ela jamais será privada do espírito se nós permanecermos jovens. Cada um só vivencia a si mesmo, diz Zaratustra ao término de sua peregrinação (Ibidem, p. 25).

E é por este espírito jovem que o grupo procurava. Espírito este que Palese e Mottola não deixaram para trás, nos seus anos de experiência. A profissionalização do grupo aconteceu devagar. Um passo atrás do outro, um anseio ou uma inquietação colocada em cena, levando em conta a bagagem adquirida no projeto anterior. Mas a renovação de ideias deveria ser constante, acompanhando os recursos de produção e tecnologia no presente, mas sempre com o apoio do trabalho executado outrora em conjunto. Palese discorre sobre esta renovação necessária e os atritos que ocorrem em consequência desta:

A gente procura trabalhar com um pessoal novo legal, que tem uma cabeça boa. Mas a diferença de formação, de visão de mundo, é completamente avassaladora nesse sentido. A própria coisa da experiência, de não ter gente que evoluiu do teu lado, atrapalha um bocado. Tens sempre que estar ensinando o que aprendeste para poder evoluir em teu próximo trabalho (MOTTOLA e PALESE, 2000, p. 46).

A estrutura do grupo, solidificada com a instalação da sede, abre novos horizontes para o núcleo criativo, aguçando a crítica em relação ao papel de cada um de seus componentes. Dois anos depois de alcançado o grande sonho da sede existe um pensamento de descontentamento em relação às pessoas que circulam no grupo, como um reflexo das relações da contemporaneidade. Mottola faz um paralelo do momento em que começou no teatro em relação ao momento atual:

Não acredito mais em trabalho de grupo hoje. O mundo mudou, é mais individualista, quase impossível. Têm líderes, uma, duas, no máximo três pessoas que seguram, núcleos e que convidam atores para trabalhar e alternam. Funciona legal, o trabalho é bom de qualquer forma (Ibidem, p. 17 e 18).

Esta declaração era o reflexo do que acontecia com o grupo naquele momento. Um momento de pensar sobre o lugar do grupo de teatro neste mundo contemporâneo. Palese, de certa forma, parece

concordar com Mottola sobre o assunto: “Talvez seja mais interessante fazer um trabalho sozinho, ou com mais uma ou duas pessoas que já tenham uma história, para poder fazer um trabalho realmente bom” (Ibidem, p. 46). Este momento, pelo qual passa a sociedade contemporânea, começa a aparecer explicitamente nos trabalhos do grupo. O primeiro deles é nomeado Encontros depois da chuva (2001), inspirado nas Seis propostas para o novo milênio, do escritor italiano Ítalo Calvino (1923 – 1985).

Mesmo com a temática contemporânea, o treinamento remonta a uma técnica antiga. A utilização da máscara com o intuito de limpar a cena e diminuir a gesticulação desnecessária do ator. A utilização do recurso da máscara como método de preparação da cena, atinge seu ápice em 2001, no processo criativo do espetáculo em questão. A cena é elaborada a partir de uma dramaturgia sem palavras, com foco no trabalho de corpo do ator.

O grupo parece absorver a melancolia dos tempos que se instauram, deixando o humor, característico de seus trabalhos anteriores, um pouco de lado. O pesquisador e professor de teatro Paulo Gaiger tem uma visão contrária ao exposto acima, reforçando a característica reflexiva do espetáculo, contendo a marca do grupo: “Adriane [Mottola] mantém o humor sempre presente em seus espetáculos, revestidos da ironia e do deboche sobre o nosso modus vivendi, com boas influências de Beckett, Chaplin, Jacques Tati” (GAIGER apud MOTTOLA, 2009, p. 90).

Mesmo considerando as palavras de Gaiger, podemos afirmar que o espetáculo difere-se um pouco das outras produções do grupo. Além de Encontros depois da chuva (2001)69, os outros espetáculos que compõem esta jornada - Bebê Bum (1999)70, Por um punhado de jujubas (Remontagem de 2000)71, Como vivem os mortos? (2001)72, Teseu e o

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Direção: Adriane Mottola. Elenco de estreia: Carlos Alexandre, Fernando Pecoits, Gustavo Curti e Simone Buttelli.

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Direção: Luiz Henrique Palese. Elenco de estreia: Giancarlo Carlomagno, Geórgia Reck, Letícia Liesenfeld e Luiz Henrique Palese.

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Direção: Luiz Henrique Palese. Elenco de estreia: Adriane Mottola, Ana Paula Serpa, Geórgia Reck, Luiz Henrique Palese e Tuta Camargo.

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minotauro (2001)73 e Sacra folia (2002)74 tem a característica do humor mais aparente.

Outra característica que se observa, neste período, é uma descentralização da figura de Palese, como único diretor artístico do grupo. Caminho que se delineia, a partir do final da jornada anterior, mas que se acentua nesta nova. Surgem trabalhos paralelos ancorados na figura de Palese e outros na figura de Mottola, mas sem deixar de lado a operação colaborativa do grupo como um todo. Podemos perceber a partir do depoimento abaixo, como este processo operava e de quem partia a decisão sobre um novo projeto.

A gente já tentou várias vezes abrir para as pessoas que estão trabalhando conosco: gente! Vamos dar opiniões, tragam sugestões... Mas não adianta. São poucas as pessoas que têm liderança. Tentamos buscar ideias de outras pessoas, projetos, mas é muito difícil, nunca dá certo (MOTTOLA e PALESE, 2000, p. 28).

Ou seja, o núcleo criativo continuava ancorado em duas ou três pessoas, desde a criação da companhia. “Os projetos de ideias da Stravaganza partem sempre de nós” (Ibidem, p. 28), comenta Mottola, referindo-se a ela e Palese. E isto continuaria a acontecer, se o destino de ambos não tivesse sido marcado por um acidente de percurso, o falecimento de Palese em fevereiro de 2003.

Novamente me reporto ao texto encontrado no website do grupo sobre as perdas. A finitude de uma existência pode causar danos profundos na estrutura física e mental de um organismo vivo. Penso este organismo me referindo à Cia. Stravaganza, que iniciou com um núcleo de três pessoas com afinidades artísticas e intelectuais, e que agora perdia mais uma das veias que irrigava o sangue para manter este organismo vivo. Poderia ter sido o fim de uma existência, o fim de uma estética construída a muitas mãos.

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Direção: Luiz Henrique Palese. Elenco de estreia: Luiz Henrique Palese e Zé Ramalho.

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Direção: Adriane Mottola. Elenco de estreia: Carlos Alexandre, Geórgia Reck, Gustavo Curti, Evandro Soldatelli, Ricardo Vivian, Simone Buttelli, Sofia Salvatori, Tuta Camargo e Vinícius Patry.