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e yoe rakat

No documento Oniska Cesarino Doutorado (páginas 178-197)

Xamanismo e mitologia

39. e yoe rakat

1sGEN malocaLE171

169

De fora, o yove varre o fedor que está na maloca (cf., sangue menstrual). 170“Sempre vivi com esse pensamento, desse jeito” (aská chinã niá ea).

em minha maloca 40. mato yove we-nõ

3pABS espírito vento-FIN suas ventanias-espírito 41. shokor-a-ki we-ai

redemoinho-VBLZ-MS/AS vento-PR em redemoinho ventando

42. ma-ri rivi i-ri-nã

3P-RFL ENF ventar-IMP-FC172 venham mesmo ventar!” 43. txo iki vana-mãi

caçula/mais.novo Hsay falar-CON173 assim diz o caçula

44. shono rane sai-ki samaúma adorno-ASS enquanto meu cinto 45. e txipokitiã 1sGEN cintoLE(txiwitiLO) de adornos-samaúma 46. e tsiso-iri-sho 1sERG traseiro/cintura-DIR-LOCprov em minha cintura

47. a-ri rivi i-mãino

3DEM-RF ENF balançar-CON vai mesmo balançando 48. e e e yonã-ke e e falar/contar-CMPL terminei de falar eeee

Ao terminar seu canto, os presentes exclamam, “muito bom! muito bom!” (roaka,

roaka), certamente por apreciarem a melodia forte, mas também por concordarem com a

letra do canto, que é uma crítica ao comportamento das mulheres adormecidas na maloca. Este iniki é dividido em alguns pequenos blocos paralelísticos que constituem unidades visuais autônomas (“num de meus galhos/ sucuri-sol se enrola/ noutro dos galhos/ onça-sol se encolhe”); apresenta uma fanopéia (Ezra Pound: projeção de imagens visuais sobre a mente) comum a outros cantos marubo e ameríndios. As

171 “Nome para interior do ventre” (shaki naki anerivi), dizem. 172

Os yove estão ventando/assoprando dentro do corpo/maloca de Cherõpapa, para limpá-lo. 173Isto é, Cherõpapa.

imagens visuais estão articuladas a um conjunto regido pela sonoridade das palavras, uma melopéia, sugerindo então uma junção entre o sonoro e o visual, algo como uma “fanomelopéia”, se vale tomar de empréstimo a expressão de Risério (1993: 178). Providos de rimas nas vocalizações finais de alguns versos (que não reproduzo em minhas transcrições) e dotados de métrica fixa (quatro a cinco sílabas por verso), os cantos marubo jogam frequentemente com a sonoridade das palavras (kemoch kemoch

wei, a fórmula onomatopaica que vimos acima é um exemplo, “kemochhh,

kemochhhh”) e com paralelismos em níveis diversos (dentro das linhas, no interior de estrofes, nas estrofes entre si e no contraste entre conjuntos de estrofes ou blocos), articulando a composição gramatical aos aspectos rítmicos e sonoros que, por ora, não podem ser analisados com mais detalhes174.

Após fazer uma brincadeira com seu corpo gigante (assim são os espíritos da samaúma) que poderia arrebentar o corpo/maloca de Cherõpapa, o espírito faz uma alusão à história de Tem Txoki (um dos nomes de Oshe, o Lua, personagem de um mito conhecido por outros povos Pano175) para ironizar as mulheres que vivem nesta morada-morte. O espírito utiliza a imagem de moscas rondando ao redor da árvore como uma metáfora para as mulheres que insistem em dormir nas redes, ao invés de escutar seus cantos. Por trás de sua fala indireta e irônica, está a clássica oposição entre feminino/quente/malcheiroso // hiper-humano/fresco/perfume: é desejável que a maloca

174É o que diz Werlang sobre os cantos saiti: “A simetria poética funciona, por exemplo, quando há uma vogal na vocalização final de alguns versos, em suas linhas de conclusão, que assim constituem uma rima com a última linha dos versos precedentes. Nestes casos, o valor semântico do som vocal está além de seu escopo verbal, linguístico. A semântica destas finalizações verbais é musical, tal como quando frases musicais inteiras são vocalizadas sem linhas verbais: poesia sem palavras. Rimas são uma mera confirmação da prevalência musical no verso / nível celular do saiti, a ele conferindo uma circularidade generalizada.” (2001: 219). Minha análise se apóia, entretanto, precisamente neste aspecto linguístico/verbal que não ocupava o centro das análises de Werlang – ao assim fazer, perde certamente a chance de integrar o verbal ao musical em uma compreensão mais ampla da estética dos cantos saiti (o que faz Werlang). As traduções aqui apresentadas não reproduzem as vocalizações finais, o que poderia (e mereceria) ser feito em um outro trabalho de recriação tradutiva. Guimarães notou algo similar ao que diz Werlang em sua análise dos cantos Kaxinawá, que se aplica bem ao caso marubo: “Uma célula facilmente identificável nesse conjunto de cantos é o que foi chamado de ‘estribilho’, como por exemplo o recorrente hu hu, hu hu. Tomado paradigmaticamente como uma sequência verbal monossilábica de significado aparentemente não lexical, o estribilho determinaria o padrão rítmico e melódico do canto como um todo, funcionando como uma representação micro da estrutura macro do canto. Por ser constituído de unidades menores (sons monossilábicos), o estribilho também pode ser usado para suprir lacunas – em caso de lapso momentâneo dos cantadores – ou para completar segmentos verbais – no caso de versos mais curtos do que o padrão geral da frase mínima.” (2002: 128-129). Werlang tem razão quando diz que os saiti Marubo são “mais do que uma simples narrativa verbal” (idem: 206), muito embora possam ser traduzidos assim, tal como quando são simplesmente contados (yoã), o que parece ser aliás o caso de grande parte de outras mitologias Pano (os Marubo se destacam justamente por oferecerem as duas variantes).

175

Ver por exemplo a versão Kaxinawá em Capistrano de Abreu (1910 [1941]), recriada pelo poeta português Herberto Helder, no livro Ouolof (1997).

apresente as qualidades apreciadas pelos yove para que possa se espiritizar, coisa que, nesta época-morte, tem se tornado difícil.

Após apresentar uma bela imagem de si mesmo nos versos 30 a 36, o locutor diz aquilo que Cherõpapa havia dito antes, isto é, que havia chamado Espírito Samaúma- Sol para varrer esta maloca com sua ventania (versos 37 a 42). A estrutura enunciativa é a seguinte: CherõpapaEN [ Espírito Samaúma LOC1 [ Cherõpapa LOC2]]. O oco/maloca Cherõpapa, enunciador ou abstração que torna possível a existência atualizada do conteúdo expresso pelo(s) locutor(es), delega um locutor1, Espírito Samaúma, que, por sua vez, delega o próprio Cherõpapa como locutor2. Múltipla, a pessoa se parte entre vários aspectos: aquele que diz (o locutor) não pode ser a mesma figura que permite a possibilidade do evento/canto (o enunciador), isto é, o oco/maloca como espaço recursivo.176 É assim que podemos compreender a construção em abismo em questão. O espírito Vari Shono, ao falar (como locutor) cita ipsis litteris aquilo que Cherõpapa disse, mas aquele Cherõpapa cujas palavras são reportadas (como locutor2) não é o mesmo que este Cherõpapa (enunciador) sentado diante de mim. A pessoa e seu duplo estão cindidas: “assim disse o caçula” é a expressão utilizada pelo espírito para se referir a todos os viventes e, no caso, a Cherõpapa, cujo duplo está ausente, muito embora fale pela boca de um outro (o espírito) que fala por sua boca aqui. A mesma estrutura polifônica é empregada pelo espírito do quati (chichi yove), um dos que mais diverte os Marubo quando vem cantar, além de ser um especialista em extrair doenças (yove tsekaya). Falando a partir de onde escutou o que disse Cherõpapa, ele dá a sua mensagem aos presentes. Vem para cá acompanhado de sua irmã, que carrega uma cuia de ayahuasca nas mãos:177

176Sigo aqui a terminologia que utilizei em minha dissertação de mestrado (Cesarino 2003), a partir dos trabalhos de Bakhtin (2000) e Ducrot (1984). Segundo este último autor, o enunciador não é o responsável pela materialidade linguística propriamente dita, pelas palavras delegadas ao(s) locutor(es), mas sim pelo ponto de vista – é o “centro de perspectiva”, “a pessoa de cujo ponto de vista são apresentados os acontecimentos” (idem:195). No caso dos cantos xamanísticos, a figura do enunciador corresponde ao corpo/suporte do pajé e os locutores possíveis são, por sua vez, os duplos (entre eles, o duplo do próprio pajé enunciador) que cantam através/com/a partir do suporte corporal. É precisamente aí que surgem os paradoxos enunciativos: o pajé/suporte (enunciador) pode citar seu duplo (locutor), ou o seu duplo pode ser citado por outros locutores (espíritos, mortos, etc) que conversam alhures com ele (duplo), fora do suporte corporal que possibilita o evento do canto como um todo. Ver Desclés & Guenchéva (2000) para outro estudo sobre a polifonia em horizontes ameríndios. A tese de Viveiros de Castro (1986) sobre os Araweté possui outros bons exemplos disso.

177A maneira como as irmãs dos espíritos aparecem nos cantos iniki é similar àquela pela qual Rosãewa (cf. cap 2) descreveu seu próprio duplo, que vive agora na Terra do Tabaco Branco em companhia de seu marido: carrega um pote de ayahuasca pendurado nos cotovelos e cuias para servi-la em suas mãos.

Canto 11 – iniki (Espírito Quati-Arara)

1. kana tawa pei-ki

arara taquara folha-LOC da folha de taquara-arara de minha maloca-arara 2. pesotanairi-sho em.cimaLE-prov ali de cima ali de dentro 3. e nikãkamei

1sERG escutarLE(e nikãiLO) eu escutei

4. epa-vo mã epa-vo

tio.paterno/pai-PL LE tio.paterno/pai-PL “pais, meus pais

5. e yoe rakati 1sGEN malocaLE venham para cá 6. metsa-ai vena-we alegre-PR virLE-IMP alegrar minha maloca!” 7. txo iki vana-ma-i

caçula Hsay fala-CS-PAS1 disse o caçula

8. noke awe shavo-vo 1pGEN irmã-PL as nossas irmãs

9. kana vo aivo arara NP mulher a moça Kana Vo

10. yove mãse kene-ya

espírito cuia desenho-ATR vem trazendo nas mãos

11. vevo saná-pake-mãi frente exibir-DISTR-CON a cuia-espírito desenhada

12. no-ri rivi io-nã

1p-RFL ENF contar-FC enquanto nós falamos 13. vevo i-kãwã-ki

terá algo mudado 14. e oi paoa

1sERG ver TEMP desde o tempo

15. wetsa aya ravã-ra

outro ter/haver/existir HIP-INT178 em que aqui estive?

16. e anõ aka-ra

1sERG FIN pensar-ASS assim fico pensando

17. e e e yonã-ke

falar/contar-CMPL terminei de falar 18. ato pari kani-sho

3p primeiro/antes crescer/nascer-MS/AA os nascidos antes

19. shata ronõ tekepa

leve cobra pedaço(bancos.paralelosLE [kenãLO]) pedaços de cobra-leve

os bancos paralelos

20. pati ivevaki-sho

sentar/colocarLE(tsaoaLO) um.seguido.do.outroLE(matakiLO)-MS/AA pedaços inteiros haviam

bancos inteiros lotavam

21. vana matsak-nãnã-vo fala conversarLE-REC-PL conversando entre si 22. e nika paoa

1sERG escutar TEMP eu assim ouvia 23. awesai-ra por que-INT mas por que vocês 24. vana-ma sete-sho fala/conversa-NEG sentarLE-CON sentam-se calados 25. ea nika-i-vo 1sABS escutar-PR-PL apenas me escutando? 26. kape topa aivo

jacaré NP mulher Topa, a mulher jacaré 27. shokô nane nikai

descamar jenipapo entender não entendeu que poderia 28. nika ichna-rao

entender ruim/mal-ASS pegar jenipapos-descamar 29. shokô paka kashke-no

descamar taquara lâmina-FIN & de taquara-descamar 30. awe ana revo

POSS língua toco/pedaço/ponta afiada faca fez

31. te a-varã-sho

puxar AUX-DIRcentrip-MS/AA sua língua esticou

32. a-ri ashte-kãi

3DEM-RF cortar-INC foi sozinha cortando

33. vana a-ma raka-i

fala AUX-NEG ficar/jazer/estar-PAS1 & muda ficou

34. iki kavi a-ra

COP assim.como 3DEM-EV assim como vocês

35. e e e yo-nã-ke

falar/contar-FC-CMPL terminei de contar

Este yove está também brincando com os presentes que, preguiçosos e sonolentos, cochilam nos bancos enquanto ele canta. Diz que as pessoas outrora lotavam os bancos paralelos e comentavam suas falas com animação. Empresta mais uma vez a passagem de uma narrativa para montar seu ensinamento (ese) irônico: quando Roka decidiu deixar esta terra e partir para a Morada do Céu-Descamar, chamou seus parentes daqui para virem buscar as suas variadas pupunhas-descamar. Mas Topa, a mulher-jacaré, não escutou bem e entendeu que ele havia dito para cortarem uns dos outros suas línguas. Por isso, o jacaré tem hoje só um toco de língua e é mudo, assim como as pessoas daqui que, aliás, acabaram também por ficar com poucas e minguadas espécies de

pupunhas179. O locutor que, no início de seu canto, cita o chamado de Cherõpapa, é a pessoa-espírito dona (ivo) de seu bicho (awe yoini), o quati (chichi), e não o próprio bicho. No canto acima, parece que o locutor não chega a entrar dentro da maloca/oco de Cherõpapa. Como acontece frequentemente, o que ele canta a partir de sua colina (colinas, mato, são sempre índices para as moradas dos espíritos e pessoas) ressoa aqui para que escutemos, já que as vozes dos yovevo são muito fortes. No canto abaixo, um certo espírito cria uma imagem para seu bicho: “[o duplo,] que é gente mesmo, está falando sobre seu bicho”180, explicava Venãpa. O duplo da larva da envireira (shai

shena) projeta (cria...) a seguinte imagem de seu corpo-bicho-larva, através de uma

comparação com a arcada dentária de uma onça. O canto que segue é mais um instantâneo, uma imagem condensada, um flash através do qual o locutor se descreve para a audiência curiosa desta maloca:

Canto 12 – iniki (Espírito da Larva da Envireira)

1. yove nape mapo-nõ espírito mosca cabeça-FIN meu corpo emendado ea retia-ti-vo

1s emendado/junto-NMLZ-GENR à cabeça de mosca-espírito

yove kamã sheta espírito onça dente dentes de onça-espírito

awe sheta mãtoke

POSS dente molares/dentes.de.trásLE(LOsheta matxá) feito fileira de dentes

5. ea nato-ta-ti-vo

1s segmentos.do.corpo-DC-NMLZ-GENR é meu corpo anelado

noke awe shavo-vo 1p coisa mulher-PL as nossas irmãs yove shai vakoshe espírito envireira espuma

179A versão Katukina deste mito está em Coffacci de Lima (2000). Voltaremos a comentar o mito mais adiante.

180

A yoini a yoã-rivi, a vaká yora-rvi. 3DEM bicho 3DEM falar-ENF 3DEM duplo gente-ENF

com a espuma e peso-iri-no

1sGEN costas-dir-FIN da envireira-espírito acha kene awa-no

LEpadrão.de.desenhoshonõ.shena desenho fazer-FIN181 minhas costas desenham

10. neri mono-pake-ai

para.cá dançar-mov.desc-PR & desço dançando

vari shai wichi

sol envireira vincos/riscos nos vincos da envireira-sol

pelos caminhos-sol

wichi taná-pake-ai

vincos/riscos seguir-mov.desc-PR pelos vincos descendo

pelos caminhos descendo

txomi raka-pake-ai

‘rastejar’ deitar/jazer/estar-mov.desc-PR descendo rastejando

descendo andando

Embora marcado pelos pronomes da primeira pessoa no singular, o locutor (o chefe, kakaya) fala aí pela multidão de lagartas // coletividades de pessoas seus parentes. Também aqui as suas irmãs o acompanham quando ele sai de casa: os espíritos (e também os Marubo) não costumam andar sozinhos. É por conta deste paralelo que se torna necessária a dupla tradução livre (nas linhas em negrito e itálico): o sentido ambivalente da expressão metafórica está a serviço da cisão entre duplos (pessoas) e corpos (bichos), como veremos em outras circunstânica. Aqui, não se trata exatamente de encontrar o correspondente literal de uma sentença desviante (“o pé da mesa” para “barra de sustentação de um tampo retangular”), mas de bifurcar ou disparatar182 um

181

Este desenho é como um mapa, disseram.

182Foi assim que Viveiros de Castro, a partir de Gilbert Simondon, apropriou-se do termo para a compreensão dos perspectivismos ameríndios. O autor cita o filósofo: “A transdução funciona como a inversão do negativo em um positivo: é precisamente isso que determina a não-identidade entre os termos, aquilo que os torna disparatados (no sentido que a teoria da visão confere a este termo)”, e comenta na sequência: “nesse modelo de tradução, que eu creio coincidir com o presente no perspectivismo ameríndio, a diferença é uma condição da significação, e não um obstáculo. A identidade entre a ‘cerveja’ do jaguar e a ‘cerveja’ dos humanos é colocada apenas para que se otimize a diferença entre jaguares e humanos. Tal como na visão estereoscópica, é necessário que os dois olhos não vejam a

enunciado em dois significados possíveis. Isso não quer dizer que, em outros casos, a poética xamanística marubo não faça uso de metáforas lexicalizadas e de metáforas novas, tais como as fórmulas padronizadas “olho de onça-fogo” (txi kamã vero), cujo correspondente literal é “relógio” (vari oiti), ou outras tantas fórmulas novas que podem ser criadas via estruturas conhecidas de antemão. Se este é um funcionamento típico da língua ritual (shõki vana, a língua dos cantos de cura e feitiçaria), o outro, das metáforas bifurcadas, é mais frequente nas circunstâncias em que a (sempre presente) referência duplicada ocupa o foco da mensagem (os cantos iniki e os cantos-mito saiti). Ambas dependem da interpretação dos especialistas, mas esta é feita por direções distintas: em um caso, indica que os kechitxo querem dizer determinada coisa por suas palavras torcidas; em outro, que pessoas outras entendem por X o que é dito do modo Y nos cantos. Aí reside um dos desafios da tradução, que se depara com um mar de fórmulas poéticas e torções posicionais da linguagem. No seguinte fragmento de um canto, o duplo do pássaro peta (ariramba) emprega esquemas similares:

Canto 13- iniki (Espírito-Ariramba)

(...)

neri kaya-pake-ai

para.cá ir-mov.desc-PAS1 vim descendo para cá

noke awe shavoyai 1p irmã as nossas irmãs 15. rovo vo aivo japó NP mulher a moça Rovo Vo

yove mãse kene-ya espírito cuia desenho-ASP

mesma coisa para que uma outra coisa (a coisa real no campo de visão) possa ser vista, isto é, construída – contrainventada. Neste caso, traduzir é presumir uma diferença.” (Viveiros de Castro 2004: 19). É a diferença entre as duas referências (vincos da árvore // caminhos-espírito) causada pela cisão entre ‘duplo’ e ‘bicho’ que precisa ser indicada na tradução. Do contrário, estaríamos presupondo uma identidade metafórica entre um suposto sentido desviado e outro literal, como se terminássemos dizendo que ‘o vinco da árvore é o caminho dos espíritos’, o que não é o caso. Os complexos dilemas filosóficos derivados da cópula metafórica e dos problemas da identidade foram bem estudados por Ricoeur (1975). Turner (1991) aborda também problemas similares em um estudo sobre certas identificações rituais de povos ameríndios. O caso específico das metáforas ‘bifurcadas’ de que estou tratando aqui é distinto disso, exige outro aparato conceitual para ser interpretado. A se pensar, inclusive, se o modelo proposto por Turner se aplica às outra espécies de metáforas oferecidas pela mitopoiêsis xamanística, na medida em que repousa sobre uma relação entre parte/todo (idem: 155) que não traduz bem certas lógicas recursivas de sistemas como o marubo.

traz nas mãos

vevo sana-pake-mãi frente exibir-DISTR-CON a cuia-espírito desenhada

no-ri rivi io-nã

1p-RFL ENF contar/falar-FC enquanto nós falamos

e rovo piá kenô-ra

1sGEN japó lança(paka)LE pontaLE-ASS minha lança-japó

meu bico pontudo

20. veso-ta vi-vi-tã-i

fronte/frente-DC pegar/segurar-pegar/segurar-DIRcentrif-PR sigo adiante mostrando

sigo adiante apontando

shokoi-vo-ti grupo-PL-PASrem sempre juntos vivemos 22. ave noke pariki

LE 1p primeiro-ASS somos os primeiros

Também aí a referência está cindida entre a pessoa (o espírito yove) e seu bicho: é é lança para um o que é bico pontudo para outro. Note que, aqui como nos iniki acima, as irmãs acompanham o chefe (locutor) com seus alimentos/utensílios xamanísticos (os potes de ayahuasca e de rapé). Mais do que isso, as irmãs/mulheres fazem os desenhos/pensamento em seus corpos: elas fazem propriamente as suas pessoas, de maneira similar à qual, nesta referência, algumas mulheres sabem ainda trabalhar os corpos de seus parentes. É nesse sentido que os Shawãnãkovo, espíritos habitantes da Morada Arbórea (tama shavá) e tios maternos (koka) de Cherõpapa, a ele transmitem um recado e aproveitam também para passar ensinamentos aos presentes:

Canto 14 – iniki (espíritos Shawãnãkovo)

1. shawã ivi romeya shawã ivi pajé “pajé Shawã Ivi romeya-ta ea-ki pajé-DC 1s-ASS sou eu o pajé

koka-vo mã koka-vo e e e tio.materno-PL LE tio.materno-PL tios, meus tios

nãko shawã tsaka-sho

nãko araraúna flecharLE-MS/AA a araraúna-nãko flecharam

5. nãkõ shawã shaka-ki

NP araraúna couro/carcaça-ASS & couro de araraúna-nãko sheta revõ ota-sho

dente ponta furar-MS/AA com dente furaram e papit aoa

1sERG penduricalho ter/estar & nas costas

petsiverõ-sho

atrásLE(LOpetxi)-LOC o couro penduro e-nõ petareme-no

1sERG-FIN balançarLE-FIN para então balançar

10. neri mono-pake-ai

para.cá dançar-mov.desc-PAS1 vim descendo dançando

achtãnea shovo triangularLE maloca da maloca triangular shovo ene-pake-ai maloca beira/extremidade-mov.desc-PAS1 da maloca vim vevo kaniai-vo antes crescer/nascer-PL as irmãs todas atõ shavoyairi 3pPOSS mulheresLE183 dos antes nascidos 15. a sete-pake-sho

3DEM sentarLE-DISTR-MS/AA sentavam-se juntas

183O termo recebe uma sufixação da língua dos antigos (asãikiki vana), que não nos arriscamos a segmentar aqui: -yairi (LE) aí se pospõe ao radical shavo-, assim como em echko-kairi, cujo equivalente

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