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e e yonã-ke ê ê contar-CMPL

No documento Oniska Cesarino Doutorado (páginas 79-85)

xamanismo, replicação e parentesco

PESSOA, PESSOAS

21. e e yonã-ke ê ê contar-CMPL

eeee termino de falar eeee

O duplo do pai de Cherõpapa está aí contando por duas fórmulas paralelas aos presentes como foi gerado pelo sangue de dois pais-espírito, um do Povo-Jaguar, outro do Povo-Pássaro: ino tama imi/ imi rakãiniki, “sangue da árvore-jaguar/ o sangue colocaram” e chai tama imi/ imi rakãiniki “sangue da árvore-pássaro/ o sangue

68Os cantos Marubo são compostos por metáforas. A linha em negrito as transcreve; a linha em negrito e itálico é sua tradução/interpretação. Mais sbre isso nos próximos capítulos.

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A criança-espírito (isto é, o duplo do pai de Cherõpapa) cresce com o saber de seus pais-espírito, toma o saber/pensamento deles (ã papã chinã keská, a chinã viaya).

colocaram”, dizem as fórmulas. “Árvore” é uma metáfora para os homens que o gestaram na referência paralela: tendo assim crescido com sangue melhor, sangue- espírito, e com o conhecimento de seus pais-espírito, ele podia outrora curar seus parentes. Mas agora está morto e só pode ajudá-los através do ‘oco/maloca’ de seu filho. Não pude saber se o sangue dos yovevo é transmitido pelo esperma (ere), tal como para os viventes. De toda forma, ‘substâncias’ transmissoras de chinã (tal como a ayahuasca, o rapé, os vegetais psicoativos e, no limite, o próprio sangue), ao assim fazerem, tornam a pessoa múltipla e híbrida, hiper-humana, hiper-parente, espiritizada.70 O processo é semelhante ao interpretado recentemente por Viveiros de Castro a partir da terminologia deleuzeana:

“Todo devir é uma aliança. O que não quer dizer, repita-se, que toda aliança seja um devir. Há aliança extensiva, cultural e sociopolítica, e há aliança intensiva, anti-natural e cosmopolítica. Se a primeira distingue filiações, a segunda confunde espécies, ou melhor, contra-efetua por síntese implicativa as diferenças contínuas que são atualizadas, no outro sentido (o caminho não é o mesmo nos dois sentindos), pela síntese limitativa da especiação descontínua. Quando um xamã ativa um devir-onça, ele não ‘produz’ uma onça, tampouco se ‘filia’ à descendência dos jaguares. Ele faz uma aliança (...).” (Viveiros de Castro 2007: 119)

A contigüidade estabelecida pela aliança contra-natureza, observa o autor, não se resume “a uma identificação ou indiferenciação imaginária entre os ‘dois termos’ [natureza e cultura]” (ibidem). O ponto não poderia ser mais preciso, na medida em que ‘sangue’ não está aqui para constituir uma ideologia da descendência (a etnologia americanista já discorreu ad nauseam sobre o assunto), mas para se colocar como resultado do processo de parentesco, isto é, do processo de aliança interespecífica. E o parentesco estendido das múltiplas pessoas engendra dilemas propriamente cosmopolíticos, para os quais a figura do pajé como diplomata, tradutor e transportador se faz essencial (cf., Carneiro da Cunha 1998). Não queremos com o termo ‘interespecífico’ levar o leitor a imaginar que existem espécies (a serem transgredidas) no pensamento marubo, ou coisas tais como a ‘natureza’. Para manter tais termos em nossa intepretação, seria necessário subvertê-los pela conceitualidade marubo, cuja

70

Os Shipibo-Conibo também estabelecem uma relação direta entre sangue (jími) e pensamento (shinán) (cf., Colpron 2004: 205).

dinâmica classificatória é um modo de pensar e manipular a diluição dos corpos, sejam eles quais forem, no fundo virtual de parentesco e socialidade.

Muito do que foi dito acima partiu da seguinte conversa que entreti com a viúva de João Pajé, Nazaré Rosãewa. Irmã de Lauro Panpapa e de Antonio Tekãpapa, Rosãewa vive em Alegria e é considerada uma das mulheres mais sábias do alto Ituí. Embora não seja ela própria uma pajé, Rosãewa é ‘espiritizada’, tem duplos vivendo alhures, escuta desde sempre as falas dos espíritos yovevo e dos duplos dos mortos veiculadas pelos romeya. Na conversa que segue traduzida abaixo, Rosãewa me contava como seu marido se tornou criança-espírito e, posteriormente, romeya:

Rosãewa: A papa ronõ nachia-mainõ,

3DEMgen cobraERG morder-CON Quando uma cobra mordeu o pai dele... Tae Sheni ronõ nachia-mainõ

NP cobraERG morder-CON

Quando uma cobra mordeu Tae Sheni...

Awe aská-mainõ yora sheniwetsa-rasi-ni anõ vana yoi-ki, quando assim-CON gente velhos-COL-ASS para canto dizer-VLBZ

E então, para que as pessoas velhas cantassem,

yove yora-rasi tasa-ma-ki, yove yora-rasi tasa-ma-ki

espírito gente-COL aproximar-CS-MS/AS espírito gente-COL aproximar-CS-MS/AS

as pessoas-espírito se aproximam, as pessoas-espírito se aproximam

shõ-ka-vo kechitxo-rasi vanã, anõ vana, kechitxo-rasi shõ-ti-nã,

soprocantar-AUX PL pajé-COL falaGEN para fala pajé-COL soprocant-NMLZ-FC

e soprocantam as falas dos pajés, para falar, os soprocantos dos pajés,

wa Txomãpa a-vai-tõ-ki.

DEMdist NP AUX-PAS2-COMP-ASS

do mesmo modo como aconteceu com Txomãpa71.

Aská-ki shõ-ka-vo, ã papa-nã, assim-ASS sopro-AUX-PL 3DEMgen pai-FC

Assim mesmo eles soprocantam o pai dele, o pai dele,

ã papa aská-ka-tõsho, 3DEMgen pai assim-AUX-CNS

assim fazendo ao pai dele

askai-vo yora, aská-rasi yove chai-rasi kena-i-ti,

assim-PL gente assim-COL espírito pássaro-COL chamar-PR-NMLZ

71Txomãpa era um velho kechitxo que, em 2006, ficou gravemente doente, sendo assim acompanhado durante cerca de um mês por diversos kechitxo que o tentavam curar através dos cantos shõki (soprocantos), até que terminasse por falecer. A sua doença será examinada no capítulo 10.

aquele tipo de gente, os espíritos-pássaro eles vão chamando

mawa, shatxi tapõ, rovo kechi, aká-rasi anõ kena-vo, sabiá japó pajé estes-COL FIN chamar-PL

sabiá, shatxi tapõ72, pajé-japó,73 estes todos eles chamam,

a yora anõ kena-i-ti-nã.

3DEM gente FIN chamar-PR-NMLZ-FC

eles vão chamando as suas pessoas.

Aská aka-vo yora ni-shõ, yove-vo neská ni-shõ, assim AUX-PL gente viver-MS/AA espírito-PL SML viver-MS/AA

Assim tendo feito, as pessoas ali viveram, espíritos como estes ali viveram

ã papa enõ vakeya-ti-sho. 3DEM pai para criar-NMLZ-MS/AA

para que seu pai o criasse.

Yove vake keská ea shovi-ti i-ka i-kãi-shna-ta. espírito criança SML 1sABS formar-PASrem AUX-? AUX-INC-PAS3-DC

“Eu fui me formando há tempos como criança-espírito”. 74

Aská-ka vake-rasi-ro-tse. SML-ATR criança-COL-TP-CON

Assim são estas crianças.

Awe papa rovo vechã nachi-a-ki,

POSS pai japó sucuri morder-REAL-ASS

O pai dele é mordido pela sucuri-japó

awe ewa rovo vechã nachi-a-ki, POSS mãe japó sucuri morder-REAL-ASS

a mãe dele é mordida pela sucuri-japó,

a ewa i-ni-ki-nã

3DEM mãe AUX-ASSOC-ASS-FC

a mãe dele é mordida junto também.

Aská a-ki aská a-ki a vechã nachia-ya aká-tõsho assim AUX-MS/AS assim AUX-MS/AS 3DEM sucuri morder-PRF AUX-CNS

Fazendo assim, fazendo assim, pela sucuri ter mordido assim

rovo vecha ni-shõ anõ vake-ya-i japó sucuri viver-MS/AA para criar-VBLZ-PR

Sucuri-Japó ali vivia para criá-lo.

Rovo vecha a ai nachia-ki. japó sucuri 3DEM mulher morder-ASS

72

Pássaro não identificado. 73

Não um monstro ornitomorfo, mas um pajé dos Rovonawavo (Povo-Japó). Da mesma maneira, Sucuri- Japó que aparecerá adiante é o nome de uma pessoa-sucuri da seção dos Rovonawavo.

74Rosãewa se refere aos espíritos yove que ficaram vivendo provavelmente dentro (do corpo/maloca) ou próximos a Tae Sheni, pai de Ravepa (João Pajé). Note que ela constrói a sua narrativa a partir de citações diretas das falas de seu marido.

Sucuri-Japó morde a mulher dele.

Nachia-tski a ai aka-ki morder-EQ 3DEM mulher copular-ASS

Morde, isto é, copula com a mulher dele.

A-nã vechã aská aka-nã. A ai aka. 3DEM-FC sucuri assim AUX-FC 3DEM mulher copular

Sucuri faz mesmo assim, ela faz. Copula com a mulher dele.

Aská a-ki awe nachia-tõsho aská a-shõ a ai a-shõ assim AUX-MS/AS POSS morder-CNS assim AUX-MS/AA 3DEM mulher AUX-

MS/AA

Fazendo assim, por ter mordido, por ter feito assim, por ter copulado com a mulher

e anõ vakeya-ti, anõ vakeya-ti-ni-se i-kai-kãi-shna-katá e vene. 1sGEN para criar-NMLZ para criar-NMLZ-?-EXT dizer-?-INC-PAS3-TEMP 1sGEN marido

“para que eu me criasse, foi para que eu me criasse”, dizia há tempos o meu marido.

Anõ vakeya-ki, a shovi-ma-ki-ro-tse, ãtõ a nane-a para criar-Hsay 3DEM fazer-CS-MS/AS-TP-EQ 3sERG 3DEM dentro-REL

Para que fosse criado, ele disse, para que ele fosse feito é que Sucuri o colocou dentro.

vake iki-tõ-ki toi-nã, to nane-ai criança COP-COMP-ASS gravidez-FC feto dentro-PR

Assim como uma criança embuchada, o feto ali colocado,

aská-i-s aivo yora shovi-ai e vene-nã. assim-PR-EXT DEMdist gente fazer-PR 1sGEN marido-FC

assim é que aquela pessoa foi se formando, o meu marido.

Kana Ina-nã, vechã vake-rasi. Arara Cauda-FC sucuri filho-COL

Kana Ina, filhos de sucuri.

Ea vecha-ya. 1sABS sucuri-PRF

“Sou sucurizado.

Naivo, neno na oi, neno tae pemane-ki kene aya, estes aqui DEMprox ver aqui pé costas-LOC desenho ter

Estes, olhe aqui, aqui nas costas do pé têm desenho

naivo kene aya, kene mashte-ya. estes desenho ter desenho terminar-PRF

têm estes desenhos, o desenho terminado.

Na mevi petxiri kene aya DEM mão atrás desenho ter

Nas costas das mãos têm desenho

neno shotxi-namã kene aya aqui peito-LOC desenho ter

neno tame pespã neno kene aya ea, aská ea aqui bochecha em.cima aqui desenho ter 1s assim 1s

aqui no rosto tem desenho, eu sou assim.”75 Pedro: Eu quem?76

R: i-ni-s-keikei-shna-ta Kana Ina-nã. falar-?-EXT-HAB-PAS4-DC Cauda Arara-FC

Aquele que dizia há tempos, Kana Ina.

Aská-sho vecha yora-rvi, assim-CON sucuri gente-ENF

Então sucuri é gente mesmo,

aská-sho wa yora iki-tõ-ki manã i-mis-ma-rvi, assim-CON DEM gente COP-COMP-ASS terraLOC viver-HABdes-NEG-ENF

então aquele que é como gente não costumam viver na terra,

wakã, waka niá. rioLOC rio viver

no rio. vive no rio.

Paya Waka, Vari Waka, Ase Waka, Rovo Waka, Kana Waka ? rio sol rio ? rio japó rio arara rio

“Rio Paya, rio Sol, rio Ase, rio Japó, rio Arara,

aská-ivo ea niá ea, aivo wakã nia-ya ea. SML-GNR 1sABS viver 1sABS estes rioLOC viver-ATR 1sABS

nestes rios todos eu vivo, sou morador destes rios, eu.

Aivo wakã nitxi-ro-tse DEM.PL rioLOC estar-TP-EQ

Morando nestes rios

waka shõpa a-ki, kapi a-ki a-vai lírio beber-MS/AS mata.pasto beber-MS/AS beber-CON

eu bebo lírio, bebo mata-pasto e então

aivo we-s teki ina-i a-ki este vento-EXT alt.posiç MOVasc-PR AUX-MS/AS

em seus ventos vou viajando77

ea niá ea i-miska i-kai-kãi-shna-katá 1sABS viver 1sABS AUX-HAB dizer-?-INC-PAS3-TEMP

assim costumo viver”, dizia ele há tempos.

75

Tratam-se dos padrões kene de que falamos acima: os pajés-sucuri têm os corpos inteiro desenhados, veículos do seu chinã.

76As dúvidas do antropólogo giram sempre em torno de dois problemas: quem exatamente fala (já que os pronomes pessoais e demonstrativos frequentemente substituem os nomes pessoais) e de onde fala (pois também os deíticos substituem frequentemente os nomes de lugares). Tais particularidades gramaticais do marubo (a substituição de nomes próprios e nomes de lugares por pronomes pessoais, demonstrativos e deíticos) estão intimamente ligadas ao estatuto mútiplo e ubíquo da pessoa (e de sua enunciação).

77

Os agentes psicoativos possuem ventos, que são utilizados como instrumentos pelos pajés. Examinaremos isso com detalhes na parte II.

ato-vo ea vake i-kai-kãi-shna-tski 3DEM-PL 1sABS filho criar-?-INC-PAS3-ENF

“Eu é que costumava criá-los”, dizia ele,

a-nã Kana Ina ato-vo vake-ya-ina Venãpa, Venãpa vake-ki. 3DEM-FC Arara Cauda 3DEM-PL criar-ATR-CONint Venãpa Venãpa criança-AUX

Kana Ina é que os criou. Venãpa, criou Venãpa.

Venãpa papa-nã Kana Ina, Venãpa pai-FC Kana Ina

O pai de Venãpa é Kana Ina,

a vaká-nã Kana Ina vake-tski, 3DEM duplo-FC Arara Cauda filho-ENF

o seu duplo é filho de Kana Ina,

Isko Osho-nã Kana Ina vake-tski. Japó Branco-FC Kana Ina filho-ENF

Isko Osho é filho de Kana Ina.

Askámãi ã shaka-pa papa-ro wetsa-rvi, mas 3DEMgen carcaça-GEN pai-TP outro-ENF

Mas o pai de sua carcaça é mesmo outro,

Raimundo-tski, atõ papa-nã. Raimundo-ENF 3DEM pai-FC

é Raimundo, o pai destas crianças.

(...)

Kana Ina ã papa-ro vecha, Rovo Vecha, a ewa-ro Kana Ina 3DEMgen pai-TP sucuri Japó Sucuri 3DEM mãe-TP

Mas o pai de Kana Ina é sucuri, Sucuri-Japó, e a mãe...

shono yove nawa-vo e ewa i-kai-kãi-shna samaúma espírito povo-P 1sGEN mãe dizer-?-INC-PAS3

“minha mãe é do Povo-Espírito da Samaúma”, costumava dizer ele há tempos.

shono yove nawa-vo ewa-vo i-kai-kãi-shna samaúma espírito povo-PL mãe-PL dizer-?-INC-PAS3

“Minhas mães são do Povo Espírito da Samaúma”, costumava dizer há tempos. P: Kana Ina tem esposa na Terra do Tabaco Branco?

R: Ai aya, ã awe shavo aya, neno awe shavo yama i-kai-kãi-shna,

esposa ter 3DEM [irmãs] ter aqui [irmãs] morrer AUX-?-INC-PAS3 Tem esposa, tem suas irmãs, as irmãs que faleceram aqui há muito tempo

ano awe shavo aya, a ai aya-ka. lá [irmãs] ter 3DEM esposa ter-?

suas irmãs lá estão, sua esposa também. P: Lá ele também tem filho?

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