Xamanismo e mitologia
1. shata rono tosha
leve cobra pedaço
no pedaço de cobra-leve146 nos bancos paralelos
nasotanairino
em.cimaLE147 ali em cima
yove keno keneya espírito poteLE desenho148 o pote-espírito desenhado veõ koi i-ni-sho
estar/jazer bem pendurado-?-MS/AA foi bem pendurado
146As linhas em negrito e itálico indicam a tradução das metáforas, que estão reproduzidas na linha acima, em negrito apenas. Algumas vezes, troco a ordem dos versos nas traduções livres, a fim de conferir sentido à solução em português. As traduções livres não são literais e já comportam aí algum grau de recriação. O leitor deve se reportar às glosas intralineares para informações mais precisas sobre as letras dos cantos.
147
A expressão se refere à língua especial. Embora possua seu equivalente na língua ordinária pelo qual os Marubo frequentemente traduzem expressões como essa, não segmentarei nenhuma de tais expressões ao longo desta tese, uma vez que os morfemas do marubo cotidiano não são necessariamente os mesmos do marubo ritual. Um estudo comparativo minucioso de outras línguas pano, tal como o que está sendo desenvolvido por David Fleck (com. pess.), certamente jogaria luz sobre estes detalhes que, por ora, não podem ser apresentados aqui.
148Os marubo chamam de chomo a pequena garrafa de barro que guarda ayahuasca (oni); os yove, porém, chamam de keno keneya. O canto começa dizendo que esta garrafa está ao lado do inalador de rapé, pendurada no alto da porta da maloca interna de Cherõpapa. Os yove podem por isso ali entrar (rapé e ayahuasca são seus alimentos para quando eles vêm nesta terra).
5. yové chiá poto
espírito [picante/ardido pó]rapéLE ali ao lado takea-ki veo-sho par-ASS colocar-LOC do ardido pó-espírito do rapé-espírito
matõ yora kena-i 3p gente chamar-PR por vocês chamo
e rome otxi-vo
1sGEN pajé irmão.mais.velho-PL meus irmãos pajés149
e rome epa-vo
1sGEN pajé tio.paterno/pai-PL meus pais pajés
10. e rome koka-vo
1sGEN pajé tio.materno-PL meus tios pajés
yove vai shava-ya
espírito caminho espaço-ATR livre, o caminho-espírito
yove shovo ikoti
espírito maloca portaLOC à porta da maloca-espírito150 ãti aka a-ke-sho
ligar/atar fazer AUX-CMPL-MS/AA já foi ligado
yove rome pei-no espírito tabaco folha-FIN o caminho com folhas
15. vai nashõv aya
caminho forrado/cobertoLE ter/estar de tabaco-espírito
raká koi a-ke-sho
jazer/dispor bem AUX-CMPL-MS/AA foi bem forrado
ano rivi shokosho aí ENF viver
149
EB, FB e MB (linhas 8, 9 e 10, respectivamente). 150Isto é, o ‘oco’ (shaki) de Cherõpapa.
vocês que vivem aí
mã vana-ya-rao 3p fala-ATR-ASS com muitas falas
matõ yove vana-yaí 3pGEN espírito fala-ATR
seus cantares-espírito
20. nea mai shava-ya esta terra morada-ATR a morada desta terra
matõ yove vana-nõ 3pGEN espírito fala-FIN com cantares-espírito metsa-ai vená-we
alegre-PR vir-IMP venham logo alegrar! yove moti kene-ya espírito estojo desenho-ATR o estojo-espírito desenhado minha grave voz
yove shovo retoko espírito maloca portaLE
na porta da maloca-espírito
em minha garganta 25. ronõ koi a-ke-sho
pendurado bem AUX-CMPL-MS/AA foi bem pendurado
foi bem ajeitada
yove moti kene-ya
espírito estojo desenho-ATR o estojo-espírito desenhado minha grave voz
veso-a-ke iki-rao
virar-VBLZ-MOVcirc dizer/cantar-ASS lá e cá canta
e aya shovi-ti
1sGEN ter/haver surgir-NMLZ eu já surgi
yove tachi owa-ki espírito tachi flor-ASS151 com a flor-espírito
30. e chinã shakin-ash152
1sGEN peitopensar oco/dentro-prov em meu peitopensar
ãso-a-ke i-ma-i
farfalhar-VBLZ-MOVcirc fazer-CS-PR lá e cá farfalhando
mato ame kena-i 3p LE chamar-PR por vocês chamo
e keshá tsitsonash 1sGEN lábio tatuado com meu lábio tatuado yove mawã vake
espírito sabiáGEN filhote filhote de sabiá-espírito 35. e iná aoa
1sGEN xerimbabo haver/estar meu filhote criado
e keshá tsitsonash 1sGEN lábio tatuado
com meu lábio tatuado vana make make-pai
fala direito/corretoLE direito/corretoLE-COMP fala e fala bem
a-ri rivi i-maino
3DEM-RFL ENF falar-CON enquanto também ela yove shawã vake espírito arara filhote
filhote de arara-espírito minha esposa-espírito
40. e poyã toko-sho
1sGEN ombro pousado-LOCprov
em meu ombro pousado
ao meu lado sentada
a-ri rivi vana-i
3DEM-RFL ENF falar/cantar-PR vai sozinha falando
kayõ iki vana-mãi
152
O verso une as noções de chinã e shaki, que discutíamos: e chinã shakin-ash, “a partir do oco de meu peitopensar”.
psitacídeos dizer falar/cantar-CON
sua fala de arara
seu belo canto e meta revõ-sho
1sGEN mão/dedos ponta/extremidade-LOCprov & em minhas mãos
tsaro vawã vake
LE papagaioGEN filhote filhote de papagaio
45. e iná aoa
1sGEN xerimbabo haver/estar meu filhote criado
kayo iki vana-mãi
psitacídeos AUX falar/cantar-CON
diz seu belo canto
e-ri rivi io-nã 1s-RFL ENF contar-FC enquanto vou contando
vevo i-shõ nia-vo
antes AUX-MS/AA viver-PL os que antes viveram
yove kaya a-pai
espírito/pajé principal/mais.forte 3DEM-COMP os pajés principais
50. i-ti-vo noni-sho AUX-PASrem-PL rastro/marca-MS/AA deixaram suas marcas
e-ri rivi iõ-nã
1s-RFL ENF contar-FC estou mesmo contando
Os cantos iniki, assim como os shõki e os saiti, são repletos de imagens
metafóricas, muitas das quais solidificadas em fórmulas153 que cada canto dispõe e reitera de acordo com seu contexto específico. Embora tais metáforas possuam autonomia imagética; embora sejam ícones visuais que compõem a cena veiculada pelos cantos, elas trazem também um sentido próprio compreendido apenas por aqueles que
153
Uso aqui ‘fórmula’ no sentido de Parry e Lord. Este último assim o define, citando os termos de seu mestre (Parry): “fórmulas são ‘um grupo de palavras empregado regularmente sob as mesmas condições métricas para expressar uma determinada idéia essencial’” (Lord 1965: 30). Mais adiante, o autor completa: “... a fórmula é a cria do casamento entre pensamento e verso cantado. Enquanto o pensamento, ao menos teoricamente, pode ser livre, o verso cantado impõe restrições que variam em grau de rigidez de cultura para cultura, mas conferem forma ao pensamento.” (idem: 31).
conhecem as falas e modos dos espíritos e, de um modo geral, da língua ritual ou especial. Mesmo que eu entenda o vocabulário e gramática, só posso compreender seu sentido (já que, muitas vezes, constituem um estoque formulaico preciso e fixo) se traduzo junto com pajés kechitxo ou romeya: de início, estou na mesma posição de um jovem marubo que entende as palavras dos cantos, mas não compreende o seu sentido velado. Quando corrigia e organizava as traduções com Venãpa e outros em algum escritório nas cidades, constantemente comparavam a nossa configuração (eu sentado na frente do computador enquanto eles, ao meu lado, esclareciam e explicavam) com as suas relações com os espíritos (tais como sabiá, japiim, Broto de Ayahuasca e outros), que se colocam também ao lado dos pajés ensinando-lhes cantos. Estamos assim ‘ligando pensamento’ (chinã ãti-nãnã-i, pensamento ligar-REC-PR).
Seguindo uma característica difundida entre os cantos xamanísticos (ameríndios e asiáticos), os cantos iniki são compostos de “palavras torcidas” (Townsley 1993, Viveiros de Castro 1986, Cesarino 2003), de fórmulas e expressões metafóricas, de metáforas vivas e mortas. No canto acima, por exemplo, os versos 23 a 27 são fórmulas metafóricas para designar a voz grave (oi txarãka) de Cherõpapa, ainda que este seja mesmo dito possuir um estojo de armazenar rapé (mõti keneya) disposto em sua garganta para conferir um timbre suave e denso (pajés com vozes rápidas e agudas, oi
torõka, têm, por sua vez, o longo inalador de rapé rewe disposto na traquéia). Os versos
28 a 31 formam uma imagem para o conhecimento de Cherõpapa, para o saber trazido pelo vegetal tachi, que é metonimicamente referido através de sua flor (o pajé não tem uma flor em seu peito, trata-se apenas de um modo de dizer). Os versos 33 a 37, por sua vez, são metáforas para a loquacidade de Cherõpapa. Os seguintes (39 a 42) são metáforas para sua mulher, que o acompanha (assim como as mulheres dos espíritos a seus maridos) e é também sabida e falante à maneira das aves kayõ (tucanos, araraúnas, araras, papagaios, entre outras), admiradas por sua loquacidade. Finalmente, os versos 43 a 46 formam também uma imagem para os conhecimentos (yosí) de Cherõpapa, que não tem papagaios como xerimbabos. Com suas palavras torcidas, o romeya quer mostrar que ele ou, antes, o seu duplo dono da casa interna, é uma pessoa-espírito e que os antigos romeya e espíritos yovevo por ele convocados podem, portanto, visitar seu oco/maloca.
Após cantar o iniki acima, Cherõpapa deita-se na rede e sai. Aqui, seu
corpo/casca está pétreo, imóvel. Segue-se um período de silêncio, até que escutemos um canto murmurado vindo de longe. É alguém que chega dentro de seu oco/maloca. Aqui,
seu corpo chacoalha na rede // o duplo ou espírito entra na maloca. Através de seu corpo/casca senta-se alguém, que recebe ayahuasca e rapé do auxiliar rewepei // o espírito recebe ayahuasca e rapé do rewepei interno. O visitante canta então para que possamos escutá-lo, alegrando este mundo-morte com seus belos cantos. Foi assim que Isko Mene, o duplo do falecido irmão do pai de Cherõpapa, seu epa (FB), cantou/contou certa noite na maloca da aldeia Alegria. Ele fala sobre onde vive, no Mundo Arbóreo (tama shavapa), junto com o Povo-Espírito da Samaúma (shono yove nawavo):
Canto 4 – iniki (Isko Mene)
1. yove mõti kene-ya
espírito estojo desenho-ATR154 o estojo-espírito desenhado minha grave voz
yove shono pei-ki
espírito samaúma folha-LOC
na folha da samaúma-espírito na maloca-samaúma pesotanairinõ nas.costas/em.cimaLE ali em cima dentro, na maloca
nitxi i-ni o-ti-vo
estar AUX-? vir-PASrem-PL há tempos colocaram
há tempos canta
5. yove mõti oi-ki
espírito estojo voz-ASS som de estojo-espírito
minha grave voz
oi kavi yosi-sho
canto/voz assim.como aprender-MS/AA grave cantar aprendeu
e-ri rivi yo-nã 1s-RFL ENF contar-FC assim estou dizendo
aivo yora-sho 3DEMdist gente-CON tendo aquela pessoa
154
A fala/canto é uma metonimia para o morador da dimensão-samaúma. Sua maloca é metaforizada no verso seguinte como “em cima da folha de samaúma-espírito”
ã anõ iki-nã 3sERG FIN cantar-FC a pessoa cantado
10. e-ki i-o-i i-nõ-vo
1sERG-ASS cantar-vir-PR AUX-FIN-? de novo venho cantar
e ese vana-yai
1sGEN saber.ensinamento fala-ATR meu saber loquaz155
ese vana iki-ro saber fala dizer-TP o saber digo a-ki aya-ke-tã-i viajar-ASS ter/haver-CMPL-DIRcentrif-PAS1 para lá viajei noke-ivo yora-mai 1p-GENR gente-NEG são distintos de nós 15. a shoko-a-ivo 3DEm viver.junto-REL-PL os que lá vivem e ano iki-mai
1sGEN FIN COP-NEG distintos de mim
e ese vana-nõ
1sGEN saber fala-FIN meu saber loquaz ato aya-ke-tã-i
3pDEM ter/haver-CMPL-DIRcentrif-PAS1 lá viajando aprendi
e rome epa-vo
1sGEN pajé tio.paterno-PL meus pais pajés
20. inõ vake nawa-vo jaguar filho povo-PL filhos do Povo-Jaguar yove rome chinã-yai filho pajé pensar-ATR pajés-espírito pesantes
155
Isto é, o seu ese (ensinamento, saber, conselho): “é como a fala dos crentes”, explica Venãpa enquanto traduzimos o canto.
chinã-yai shoko-sho pensar-ATR viver-MS/AA pensando juntos viveram
e-nõ vake-ya-ti-vo 1s-FIN criar-PRF-NMLZ-PL para me criar neweramairino de.um.ladoLE de um lado
25. yove wani imi
espírito pupunha sangue sangue de espírito-pupunha
imi rakã-i-ni-ti
sangue dispor/colocar-PR-ERG-NMLZ o sangue colocaram
yove vake a-ti-vo
espírito filho fazer-NMLZ-PL & fizeram criança-espírito noke sheni txovo
1pGEN antepassado-PL os nossos antigos atõ chinã vana-yai
3pGEN pensamento fala-ATR seus pensares falantes156
30. vana-yai shoko-sho
fala-ATR viver.junto-MS/AA juntos falando viveram noke ishõtivo
1p antepassados/antigosLE os nossos antigos
a noke koka-vo
3DEM 1p tio.materno-PL eles, os nossos tios ato yove vana-yai 3DEM espírito fala-ATR seus cantos-espírito vana-yai shoko-sho
fala-ATR viver.junto-MS/AA cantando juntos viveram
156
Chinã vana é outra expressão para shõki vana, shõti, os cantossopros, ensinados pelos espíritos/antigos a seus irmãos mais novos (txo), isto é, os viventes.
35. noke ishõtivo
1p antepassados/antigos os nossos antigos
Nas pajelanças noturnas, os duplos dos parentes mortos (yora vaká) costumam chegar primeiro e ser seguidos pelos espíritos auxiliares rewepei, mais outros espíritos
yovevo. Nos primeiros versos do canto acima, o morto locutor identifica sua
procedência, a maloca-samaúma. É assim que muitos cantos iniki costumam começar, a fim de que os ouvintes identifiquem o visitante que chega no corpo/casa do romeya. Nos versos 8, 9 e 10, Isko Mene, irmão do pai de Cherõpapa, diz que veio novamente visitar esta morada após ouvir Cherõpapa cantar aqui: ficou sabendo que a maloca estava aberta para receber visitas, enquanto seu dono, o vaká de Cherõpapa, aguarda na Colina Mata-Pasto. Na sequência dos versos 12 a 22, o duplo do morto conta que visitou outras partes e que volta para cá a fim de ensinar a seus parentes o que aprendeu. É por viver alhures que o locutor pode saber como Cherõpapa foi feito criança-espírito: no verso 23, que apresenta curto-circuito polifônico (quem fala é locutor Mene, mas o referente do pronome eu é o enunciador, Cherõpapa), diz que o
vaká de Cherõpapa foi criado como criança-espírito porque sua mãe mantinha relações
com os yove, embora ela (shaká, sua ‘carcaça’) nada disso soubesse. Cherõpapa, explicam-me meus interlocutores, tem então os sangues misturados de seus três pais pajés-espírito (yove kechi): sangue de espíritos do Povo-Jaguar (Inonawavo), do Povo- Japó (Iskonawavo) e do Povo-Pupunha (Wanivo), embora este último seja o único referido no canto.
O canto é uma mensagem instantânea, reflete uma situação que se dissolve tão logo o locutor decida partir. Ainda que sejam sempre novos, os iniki veiculam experiências através de fórmulas conhecidas tais como yove rome chinãyai / chinãyai
shokosho, “pajés-espírito pensantes/ pensando juntos viveram”. O duplo do tipo paterno
de Cherõpapa vai então embora. Instantes depois, começam a cantar os espíritos auxiliares rewepei, que cuidam do oco/corpo de Cherõpapa. Este que canta é um Chai Yove Nawavo, membro do Povo-Espírito Pássaro:
Canto 5 – iniki (Povo-Espírito Pássaro)
1. awe ano shovi-ti
algo/coisa para fazer/transformar-NMLZ a coisa de transformar
yove rome keti
espírito tabaco cuiaLE(mãseLO) a cuia de rapé-espírito
nasotanairi-sho no.meioLE-CON foi no meio colocada yove rome tsipase espírito tabaco restoLE pó de rapé-espírito 5. tsipas veo-a-tosho resto colocar-VBLZ-CNS do pó colocado
yove niá iná-ti
espírito viver criar-PASrem espírito foi criado
ave noke pari-ki LE 1p primeiro-ASS somos os primeiros awe yoé rakáti
POSS bom/espírito malocaLE da maloca dele
veso-shoi shoko-sho
cuidar/olhar-DB junto-MS/AA juntos já cuidamos
10. awe ano yove-ti
algo/coisa para espírito-NMLZ
da coisa de empajezar
yove rewe kene-ya
espírito inalador.de.rapé desenho-ATR157 do caniço desenhado
de seu duplo
veso-shoi shoko-sho
cuidar/olhar-DB junto-MS/AA juntos já cuidamos
no-ri rivi vana-i
1p-RFL ENF falar-PR nós apenas falamos
yove shãta ene-no
espírito urucumLE(mashe) caldo-FIN caldo de urucum-espírito
15. veso metsa a-ti-vo
rosto passar AUX-PASrem-PL sempre no rosto passamos yove rane sai-nõ
espírito adorno vestir-FIN são como contas-espírito
vero siná a-ti-vo
olho sério/bravo/firme AUX-PASrem-PL nossos olhos austeros
ave noke pari-ki LE 1p primeiro-ASS somos os primeiros yove mako poko
espírito algodãoLE(washmeLO) chumaço de algodão-espírito 20. no txipaniti 1sGEN saiaLE as saias vestimos e tsíso-ri-sho 1sGEN traseiro-DIR-LOC em meu traseiro toa-raka-maino chacoalhar/fazer.barulhoLE-DISTR-CON ela balança enquanto
e-ri rivi yo-nã 1s-RFL ENF contar-FC vou mesmo contando
É do resto de rapé depositado no fundo de uma cuia/cabaça que surge o espírito
rewepei. O rapé, assim como a ayahuasca, são coisas anõ yove-a (para; espírito/pajé +
verbalizador), coisas para ‘espiritizar’ ou para ‘empajezar’. Os espíritos se formaram há muito tempo, mas estão agora aqui cuidando do corpo/casa do romeya: o tempo mítico incide na pessoa, de modo similar ao que notou Déléage (2006) no caso dos cantos rabi sharanawa. O rewepei visualiza em seguida por imagens metafóricas as suas próprias características: rostos pintados de urucum, saias brilhantes de algodão que balançam
enquanto se movimenta, olhos austeros. Quem diz é um espírito rewepei que, no entanto, fala por sua coletividade (são vários os auxiliares que cuidam do corpo do pajé). Os espíritos têm mesmo olhos de outra cor, disseram-me. Possuem todavia rostos sérios e altivos; são mesmo bravos, mas com pensamentos bons (chinã roaka).
Instantes depois, um outro rewepei, mas desta vez do Povo-Azulão, dá lugar ao precedente. Ele vive junto com Oni Westí, Homem Só, que outrora restou sozinho quando seu povo foi massacrado por Shoma Wetsa, mulher monstruosa canibal que muitos matava com as lâminas afiadas pendentes de seus braços158. Oni Westí ensinaria ainda nos tempos míticos o cultivo de alimentos aos antepassados dos Marubo e, agora, segue vivendo na “colina do rio grande” (noa mato wetsã), em alguma terra do grande rio localizado a jusante, na região de Manaus, Rio de Janeiro ou Brasília. O rewepei segue o percurso hidrográfico, subindo deste grande rio em direção às cabeceiras (manari), onde estamos:
Canto 6 – iniki (Shane Rewepei)
1. neno awe-sho-mai
aqui coisa-prov-NEG não é perto daqui
oni westí shenitsi homem só antepassado aquela outra morada
anõ vesõkãiã aldeia/comunidadeLE(shaváLO) do velho Homem Só yove imãwenene espírito terreiroLE do terreiro-espírito 5. wa shokopakei DEMdist conjunto.de.árvores daqueles galhos todos yove shõpa txapake-sh espírito mamão galho-prov dos mamoeiros-espírito
neri teki-ina-i
para.cá alt.posição-MOV.ASC-PR para cá vim subindo
mã-ta e o-chia
afirm.-DC 1sERG vir-PAS3 há tempos cheguei
awe yoe rakati POSS malocaLE na maloca dele 10. veso-shoi shoko-sho
cuidar/olhar-DB grupo-MS/AA juntos já cuidamos
no-ri rivi vana-i 1p-RFL ENF falar-PR nós apenas falamos
vevo kaniai-vo
antes crescer/nascer-PL os antes nascidos
yove rome shãkõ-sho espírito tabaco broto-LOC no broto de tabaco-espírito
a-ri rivi yove-sho
3DEM-RF ENF espírito-MS/AA espiritizam-se sozinhos
15. shoko me aivõ
viver.junto LE DEMdist-PL em suas malocas
atõ yoe rakati 3pGEN malocaLE nós vivíamos todos
veso-shoi shoko-sho
cuidar/olhar-DB grupo/junto-MS/AA & juntos cuidávamos
mã-ta neská-paoi afirm-DC assim-TEMP assim sempre foi
Shane Rewepei está dizendo que há tempos espíritos como ele vivem junto dos pajés romeya para protegê-los. Mudando-se de sua morada para vir viver junto de Cherõpapa, o rewepei não vem sozinho: a oscilação entre “eu” e “nós” (versos 7 a 11,