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Economia do compartilhamento e os mecanismos de autorregulação

4.5 OS DESAFIOS JURÍDICOS NA TUTELA DAS RELAÇÕES DE CONSUMO NA

4.5.2. Economia do compartilhamento e os mecanismos de autorregulação

As plataformas de compartilhamento, por ser modalidade substancialmente diversa do modelo tradicional, não possuem norma reguladora especifica, nem se enquadra perfeitamente aos quadros regulatórios existentes e, em alguns casos, até enfrentam a insegurança proporcionada por lacunas ou ambiguidades na lei. Frente a isso, muitas plataformas têm defendido fortemente novas regras especificadas para disciplinar tal modalidade de consumo que não necessariamente relacionadas à regulação362.

Quem se opõe a regulamentação aduz que outros elementos também devem ser levados em consideração no debate a esse despeito. Vários são os argumentos suscitados conexos com questões que suscitam a desconfiança da eficiência da regulação estatal, como o crescente distanciamento entre legislação e realidade; as dificuldades em aplicar os programas dos Estados; e a relativização de público e privado caraterísticos dos Estados contemporâneos363.

Um dos elementos a ser considerado trata-se do denominado “captura regulamentar” que consiste na influência desempenhada pelas empresas detentoras de poderio econômico sobre os políticos reguladores em troca da percepção de vantagens, em que o dinheiro e votos privados que a indústrias podem fornecer aos políticos através de subornos em dinheiro ou doações de campanha é fato corrente e notório em todo mundo364.

Inclusive, destaca-se que a superioridade organizacional e informacional coloca as empresas tradicionais em situação de vantagem em relação não só ao consumidor, mas também aos regulares que tem interesse no domínio informacional pertencentes as empresas o que, inclusive, torna-se moeda de troca em relação a influência reguladora desejada, assim, não raras vezes, empresas economicamente influentes acabam por "capturar" o sistema regulatório que deveria constrangê-los 365.

Nesse sentindo, o enfoque argumentativo é que os reguladores, na maior parte das vezes, não atuam em nome do interesse público e difuso dos consumidores, mas como árbitro para

361 RANCHORDÁS, Sofa. Does sharing mean caring? Regulating innovation in the sharing economy. Minnesota Journal of Law, Science and Technology, Minnesota, v. 16, 2015, p. 413-476.

361 SILVA, Raphael Andrade; PAIVA, Matheus Silva de; DINIX, Gustavo Saad, op. cit., p. 13. 362 KATZ, Vanessa, op. cit., p. 11.

363 FARIAS, José Eduardo, op. cit., p. 15.

364 KOOPMAN, Christopher; MITCHELL, Matthew; THIERER, Adam, op. cit., p. 8. 365 KOOPMAN, Christopher; MITCHELL, Matthew; THIERER, Adam, op. cit., p. 8-9.

satisfazer grupos de interesses. Nessa dinâmica, as empresas saem em vantagem, enquanto os consumidores acabam arcando com os custos no final, assim, a regulação finda por prejudicar o consumidor366. De tal modo, os argumentos de que as propostas de regulação da economia do compartilhamento têm como principal objetivo proteger os consumidores devem ser considerados com ceticismo367.

Nesses termos, observa-se que, ao invés de destinarem esforços para conceber novas formas de criar valor, os empreendedores preocupam-se em manter esses privilégios regulamentares, criando barreiras à inovação e empreendedorismo, além de reforçar o total desinteresse em resguardar os interesses difusos dos consumidores368.

Ademais, o excesso de regulamentação específica poderia inibir a formação de um ambiente seguro para inovação que afugente os agentes econômicos, mediante a temeridade em saber se os novos modelos de negócios serão aceitos pelos reguladores ou, em caso de aceitação, se os seus modelos de negócios não serão alvos de constantes revisões legislativas ou judiciais a respeito desses modelos369.

Em via de consequência, argumenta-se também que frequentemente a regulamentação poderia minar a concorrência, através da limitação da entrada de novos concorrentes com homogeneização de preço e da qualidade do produto/serviço. Assim, isoladas da concorrência de novos operadores, as empresas tradicionais podem exercer um monopólio ou poder de precificação. Com efeito, algumas consequências são geradas como a alta de preço, diminuição de oferta e os serviços tendendo a ser de menor qualidade e alheios a modernização, tudo isso em detrimento do bem-estar do consumidor e em prol do lucro do produtor consolidado370.

Revela-se, assim, uma relação simbiótica de interesses recíprocos entre reguladores e setor privado, no qual os reguladores fornecem barreiras ao novo modelo de negócio em troca em troca de recursos e apoio político. Contudo, como não poderia ser diferente, a economia do compartilhamento vem subvertendo tais barreiras, pois as plataformas atuam reiteradamente ignorando as limitações regulamentares e vem ampliando cada vez mais sua rede de usuários371. De outro modo, para garantir sua plena sobrevivência naquele mercado, algumas plataformas são flexíveis em amoldar seus modelos de negócios as particularidades legais de cidades e estados, preocupando-se com a opinião pública se elidindo das críticas de que estaria

366 Ibid., p. 7.

367 MARTINS, João Victor Ruiz; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira, op. cit., p. 15. 368 KOOPMAN, Christopher; MITCHELL, Matthew; THIERER, Adam, op. cit., p. 9.

369 SILVA, Raphael Andrade; PAIVA, Matheus Silva de; DINIX, Gustavo Saad, op. cit., p. 19-20. 370 KOOPMAN, Christopher; MITCHELL, Matthew; THIERER, Adam, op. cit., p. 11-12. 371 ALLEN, Darcy et al, op. cit..

atuando a margem da legalidade e, por isso, sofrer as consequências legais ou rejeição da comunidade.

Esse foi o caso do Airbnb e sua atuação em alguns locais do Estados Unidos em que, proativamente, a plataforma passou a agir no sentido de ajudar aos legisladores a elaborar ou ajustar a legislação, deixando bem claro aos seus usuários que nesses locais os anfitriões estão sujeitos as leis locais. Uma das iniciativas foi a cobrança direta do imposto incidente sobre serviços hoteleiros dos usuários anfitriões em nome das autoridades, aplicada em cidades como Washington e São Francisco, que recebem diretamente da plataforma os fundos coletados, em um nítido sinal de equiparação jurídica e dinâmica na qual todos saem ganhando, embora nenhuma legislação tenha sido necessária para tanto372.

Assim, quem se opõe a regulamentação aduz que não se pode olvidar que os mercados são dinâmicos e, mediante o cenário no qual inexistam proteções legais aos consumidores, chega-se à conclusão de que o próprio mercado se encarregaria em providenciar mecanismos e instrumentos de proteção ao consumidor373.

Nesse pórtico, uma regulação iria na contramão dos pensamentos capitalistas mais liberais, pois representa a interferência do Estado no mercado econômico contradizendo completamente a lógica liberal capitalista. A tendência é que a própria economia de mercado sofra novas mutações e com isso novos problemas jurídicos também surgirão, nesse sentido, surge o questionamento se um novo marco regulatório iria acompanhar essas novas expressões de relação jurídica ou, além disso, se o mesmo já não nasceria fadado a obsolescência.

Do mesmo modo, importante considerar que a economia do compartilhamento passou a integrar o mercado e, mesmo sem a existência de nenhuma regulamentação especifica, vem conquistando e fidelizando novos consumidores, o que demonstra a confiabilidade despertada nos mesmos. De modo tal, a própria necessidade de regulação é posta em xeque, já que preocupações que ensejavam demasiada regulação não são mais relevantes no novo modelo de negócio374.

Essa confiabilidade decorre dos mecanismos disponibilizados pelas plataformas que possibilitam, a grosso modo, a avaliações da qualidade de bens e serviços e da reputação das empresas ou indivíduos provedores, que diminuem a incerteza e se demonstram eficientes de

372 ZRENNER, Alexandra, op. cit., p. 4.

373 MARTINS, João Victor Ruiz; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira, op. cit., p. 13.

374 BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria de Acompanhamento Econômico. Nota Técnica nº 06013/2016/DF/COGUN/SEAE/MF. Fev/2016, op. cit.

proteção ao consumidor, muitas vezes, até mais do que as leis e políticas implantadas pelo poder público375.

A supramencionada cobrança direta de impostos sem a interferência das autoridades pelo Airbnb também é uma expressão desses mecanismos e consiste em uma espécie de cooperação em que, apesar das pressões desempenhadas pelas autoridades, é operada livremente pela plataforma376.

Nesse cenário, espécies de proteções não-jurídicas se insurgiram em um nítido processo autorregulatório com iniciativas que já são preliminarmente praticadas pelas plataformas de compartilhamento. Exemplos disso é a própria vigência de novos modelos contratuais como de termos de uso, a ampliação de garantias aos consumidores contra a má prestação de bens/serviços e, nesses casos, com a criação de espécies de seguros próprios das plataformas instituídos para auxiliar seus consumidores377.

Na perspectiva do consumidor, tem-se que os mecanismos também despertam uma sensação de segurança, pois ao possibilitar a forma de pagamento por meio de cartão de crédito, através de um clique no aplicativo, permite-se que o usuário não fique transitando com dinheiro físico e que não perca tempo pagando ou recebendo troco. Além do mais, as plataformas divulgam as informações relacionadas ao usuário provedor, necessários para que o consumidor tenha prévio contato com mesmo, o que passa uma sensação de segurança, ainda mais se o serviço for prestado em cidades mais violentas, como comumente o é no Brasil378.

No mais, o sistema de classificação que possibilita que os consumidores embasem sua escolha por determinada empresa a partir da reputação aferida por outros consumidores e, como naturalmente ocorre na livre concorrência, as plataformas acabam tratando melhor seus consumidores para não os perder379. Dá-se assim a relevância dos mecanismos de reputação e dos feedbacks anônimos.

Nesses termos, aparentemente, a proteção ao direito do consumidor se dá mais incisivamente pelos mecanismos propiciados pelas inovações tecnológicas dos que pela própria regulação especifica vigente, vez que aqueles oferecem uma gama expandida de produtos e

375 MARTINS, João Victor Ruiz; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira, op. cit., p. 15. 376 ARRIBAS, Gracia Vara; STEIBLE, Bettina; DE BONDT, Anthony, op. cit., p. 67.

377 O Airbnb oferecer uma espécie de seguro denominada "Garantia Anfitriã" que cobre perdas limitadas ou danos a pessoas que alugam um quarto. Do mesmo modo ocorre com a Uber que oferece um seguro comercial que garante a segurança de todos os usuários consumidores durante o trajeto percorrido.

378 ARRIBAS, Gracia Vara; STEIBLE, Bettina; DE BONDT, Anthony, op. cit., p. 67. 379 MARTINS, João Victor Ruiz; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira, op. cit., p. 14.

serviços, disponibilizam mais aos consumidores e estabelecem fortes incentivos de reputação para as empresas melhorarem o nível de serviço fornecido380.

Considera-se também que, de fato, a aplicação de regulações defasadas ou aparentemente inócuas, podem surtir efeitos contraproducentes inibindo o livre desenvolvimento da economia do compartilhamento podendo representar, por fim, em mais uma forma de boicotar o melhor interesse do consumidor. Nesses termos, também justificados pela garantia do melhor interesse do consumidor, que apoiadores tendem a suportar a autorregulação definida pelo próprio mercado.

Ressalte-se, pois, que desregulamentar é diferente de autorregular, vez que aquela é a total inexistência de regras delimitadoras de uma atividade, enquanto essa trata-se de um processo em que grupos de empresas de um determinado setor que concordam em agir de maneira prescrita, de acordo com um conjunto de regras ou princípios, em que a participação de empresas nos grupos é geralmente voluntária, mas também pode ser legalmente exigida381.

Cientes que a regulação da economia do compartilhamento é um ajuste desafiador dada a velocidade com que as interações sociais mudam, as limitações das modelos regulatórios, e os aspectos políticos e culturais que a influenciam, contudo, a regulação se demonstra como melhor opção para enfrentar a complexidade envolvida no tema, especialmente em comparação à total desregulamentação, conforme será a seguir demonstrado. A regulação, assim, é um complexo problema sem uma solução fácil382.