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Antes de descartar sumariamente o índio ecológico, seria bom examinar com cuidado varias incógnitas importantes. A primeira se refere à relação que os povos autóctones mantinham, antes de sua inserção forcada no complexo colonial euroame- ricano, com isso que chamamos natureza. As investigações a

esse respeito têm sido abundantes, e ricas em resultados não tão fáceis de interpretar.

Nos estudos de ecologia cultural – não necessariamente identificados com os propósitos do ecologismo ético-político – essa convivência se reduz à limitação. As formas culturais e sociais são o produto da adaptação à finitude dos recursos: à pobreza dos solos agriculturáveis, ou à escassez de proteínas, por exemplo6. A Natureza é uma mãe, sim, mas uma mãe dura que submete os seus filhos a um duro regime, a não ser que se libertem dela mediante novas técnicas de exploração. A carreira contra a escassez é tão disputada na selva como o tem sido em paisagens mais áridas, e o índio ecológico é, simplesmente, um lutador mal armado, abrumado por um meio natural que ultrapassa as suas forças. Mas esse pessimismo do materialismo ecológico tem se visto progressivamente assediado por estudos detalhados que mostram que populações indígenas recentes dedicam poucas horas do seu tempo a essa desesperada luta pela vida – reservando o resto a atividades pouco produtivas – e mantém a exploração do meio ambiente muito abaixo de suas possibilidades agrícolas ou cinegéticas7. Aparentemente, o trabalho esforçado tem mais sentido como causa da escassez natural que como resposta a ela.

Também não parece evidente que o primitivo ecológico tenha estado tão mal equipado, e cada vez há mais evidências de que, qualquer que tenha sido o pacto que ele estabeleceu com a natureza, não se fundamentou numa fatal irrelevância humana. A arqueologia amazônica, por exemplo, tem desmentido que o mundo indígena da grande floresta fosse uma rede de grupos

6 O pessimismo ecológico assumiu durante decênios muitas formas, da síntese geral de Ester Boserup (1981) à divulgação sensacionalista, de considerável sucesso, de Marvin Harris (1975, entre outros). Desde o texto clássico de Betty Meggers [...], a Amazônia tem sido um campo propício para o ensaio e discussão do ecologismo cultural, cf. a análise de Almeida (1988).

minúsculos dissolvidos no meio ambiente. A demografia rala e a atomizaçao como norma são posteriores ao ingresso do homem branco e seus efeitos deletérios diretos ou indiretos. O “deserto verde” é em boa parte um produto da conquista, e, pelo contrário, há, para a época precolombiana, dados segu- ros de uma ocupação humana da Amazônia mais densa que a que pode se encontrar ainda na atualidade8. Essa ocupação se baseava na alta produtividade do cultivo do milho, recorria a um bom uso das enchentes periódicas do vale amazônico ou a notáveis engenhos como o uso agrícola de ilhas flutuantes. Mas, o que é mais interessante, deixava ainda espaço para o incremento da biodiversidade. A chamada “terra preta de índio”, um dos solos mais produtivos o vale amazônico, identifica-se com as áreas de longa ocupação aborígine e alberga uma taxa de biodiversidade maior que a de áreas de mata mais próximas à “virgindade” 9. Investigações já clássicas como as de Darrell Posey (POSEY, 2002; POSEY; BALÉE, 1989) principalmente entre os Kayapo ou as de Philippe Descola (1986) entre os Ashuar têm inventariado uma série de práticas que permitem imaginar como esse resultado poderia ter sido obtido: criação de ilhas artificiais de diversidade, um plantio sistemático mas às vezes não totalmente consciente (como aquele que se dá pelo cos- tume de enterrar ao passo, com o pé, as sementes de plantas dignas de interesse que se encontram no caminho), o cuidado de semear a beira-rio árvores importantes na dieta dos peixes. Ou um colecionismo in vivo, como o das horticultoras Ashuar que, longe de limitar-se a plantar a mandioca ou o chili mais produtivos, aplicam-se ao cultivo de espécies e variedades selecionadas por uma enorme gama de critérios: tempos de maturação diferentes, adaptação à falta ou ao excesso d’água, textura, cor do fruto ou das folhas... Aquela generosidade de uma selva onde – assim diziam as descrições edênicas – bastava

8 Vejam-se os estudos de Anna Roosevelt (1993) e, antes dela, de Donald Lathrap (1970).

9 A reavaliação da floresta “virgem” aparece nos trabalhos de William Balée (1993).

estender a mão para encontrar todo o necessário à subsistência, faz-se mais verossímil quando percebemos que a suposta mata virgem é antes um jardim. Inclusive práticas, como a do uso extensivo do fogo, que durante muito tempo esgrimiram-se como provas do caráter rudimentar e destrutivo da agrono- mia indígena, têm se revelado, na Amazônia ou nos Estados Unidos10, como exemplos de um manejo provavelmente sábio e sem dúvida acertado. Na selva amazônica, os fogos abrem clareiras que permitem o auge de plantas coibidas pela sombra das grandes árvores, e que quebram a expansão imperial de uma única espécie. Nos parques naturais americanos, já esvaziados de índios e protegidos radicalmente do fogo pelos serviços florestais, a mesma prudência indígena veio a ser provada, ao contrário, quando os bosques vieram a ser vítimas de grandes incêndios casuais em que a biomassa acumulada durante anos serviu de combustível a uma destruição fatal, antes evitada por queimas periódicas na estação certa.

É verdade que as práticas indígenas nem sempre têm levado a resultados tão alvissareiros. Provavelmente o mais famoso de todos, o da extinção da megafauna do pleistoceno pelas mãos dos povos caçadores primitivos, não passa de um relato ideológico –sutil, ou não tão sutilmente anti-indígena – que tem exagerado e generalizado escassos dados sobre caçadas massivas, desestimando outros fatores, como os climáticos. Mas é provável que o sistema de irrigação dos Hohokan, em que pese a sua sofisticação, ou por causa dela, tenha contribu- ído poderosamente à salinização e à desertificação de amplas regiões do Arizona, e que a queda da civilização urbana maia (cujos grandiosos centros cerimoniais estavam já desertos quando da chegada dos espanhóis) tenha se devido à quebra de limites ecológicos. Mais próxima à nossa experiência histórica e ocupando um lugar de grande peso simbólico, a extinção dos

10 A avaliação das praticas ecológicas dos índios norte-americanos, desde o uso do fogo até a caçada de búfalos ou castores, passando pela revisão das teorias sobre a extinção da megafauna do pleistoceno,

búfalos norte-americanos foi obviamente um resultado da invasão branca; e na sua reta final, inclusive, um meio consciente para aniquilar indiretamente a população indígena. Mas parece claro que um tipo de caça abusiva – na qual, conduzidos em estouro até um precipício, centenas de búfalos eram sacrifica- dos para se aproveitar apenas de algumas peças, ou em que os búfalos eram mortos para não usar mais do que a sua língua e a pele de sua corcunda – não era desconhecida entre os grupos indígenas que comerciavam com os brancos, nem, o que é mais importante, entre os caçadores que ainda não tinham trato com esses novos mercadores. De castores ou veados pode se dizer o mesmo: práticas ponderadas de caca, que respeitavam mínimos de reprodução, alternavam, de um grupo a outro ou dentro de um mesmo grupo, com modos de exploração predatórios e pouco preocupados com seus limites.