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Estado actual das pescarias e as políticas governamentais

Os recursos da pesca, à semelhança dos recursos flores- tais, estão em permanente renovação. Tal facto, consolidado com a crença da inesgotabilidade dos recursos marinhos com- parativamente com os recursos terrestres, resultou em que, até meados do século XX, a investigação científica na área da pesca se baseasse fundamentalmente em estudos que aperfeiçoassem as pescarias em termos produtivos. O desenrolar da actividade da pesca tem sido marcado pelo aperfeiçoamento de processos de captura e de feitura de artes de pesca com materiais mais finos, resistentes, duradouros e baratos. Estes, juntamente com a substituição da força humana por maquinaria, pela introdução de novos sistemas electrónicos de navegação/detecção, e pela automatização dos processos de captura contribuíram, para um crescente esgotamento dos recursos piscícolas.

O “livre uso” dos mares e a liberdade de pescar foram no passado considerados como princípios inderrogáveis e inaliená- veis de cada Estado-Nação, exercendo estes a sua soberania nas respectivas águas territoriais. Contudo, nas últimas décadas, devido ao aumento da poluição e à delapidação dos recursos naturais, diversos organismos supranacionais publicaram um conjunto legislativo de medidas preventivas, com um cariz essencialmente conservacionista. É por este prisma que podem ser entendidos os condicionamentos, cada vez maiores, do exercício da pesca, decorrentes da regulamentação do estado português, consistindo fundamentalmente na transposição de directivas comunitárias da UE. Esta regulamentação sustenta-se

num discurso de base científica e ecologista, que contém um carácter de preservação dos recursos marítimos, fundamentado na constatação da vulnerabilidade cada vez maior dos stocks piscícolas. O enfoque da maioria das medidas incide directa- mente na actividade económica dos pescadores, através de entraves cada vez maiores para a carreira profissional de novos trabalhadores, o progressivo impedimento da renovação de licenças de pesca, e a proibiçãodo uso de diversas artes de pesca. O agravamento dos custos de produção, o não acompanhamento da variação dos preços do pescado, e a perda de oportunidades de pesca em pesqueiros externos à UE são factores não exclu- sivos da realidade portuguesa, mas que adquirem dimensões exponenciais pela realidade estrutural do país.

Num primeiro momento a UE, através da Política Comum das Pescas (PCP), criou instrumentos de dinamização do sector pesqueiro, por exemplo através de projectos de construção e de modernização de embarcações, conferindo apoio financeiro a armadores, renovando a frota de pesca com o argumento da possibilidade de os pescadores operarem distantes da costa, sobre espécies menos exploradas e com artes de pesca mais selectivas. Os últimos Programas de Orientação Plurianuais (POP)41 têm fixado objectivos de redução do esforço de pesca para todos os estados-membros, ajustamento que tem como resultados mais visíveis as medidas de abate de forma definitiva de embarcações de pesca ou da sua transferência para países exteriores à UE, ou ainda, a sua transformação para outros fins que não a pesca, como o turismo ou museus.

41 Estes programas são considerados pela EU como elementos-chave da sua política estrutural, onde são definidos objectivos e medidas para o sector das pescas numa perspectiva global entre os diversos estados-membros. Mediante a aprovação prévia da Comissão Europeia cada país concebe objectivos para a sua frota pesqueira, em termos de capacidade e esforço de pesca. Desde 1983 foram elaborados cinco programas, estando neste momento a vigorar o POP V (2007-2013).

O turismo de sol e praia não é um fenómeno recente, tendo-se tornado um fenómeno global massificado desde meados do século XX. Seja por um esgotamento intrínseco desse modelo, seja pela procura cada vez maior de um turismo cultural e patrimonial, a consequência tem sido um aumento exponencial da oferta deste segmento até aqui minoritário42. A indústria turística consciente de que a “cultura” é um artigo que vende cada vez melhor, tenta convertê-la numa matéria-prima criadora de um estilo, tornando-a numa importante mais-valia econó- mica, política e simbólica. Este processo de mercantilização da cultura (HANDLER, 1988) assenta normalmente num processo de foclorização onde o passado “morto” do património e o presente “vivo” das pessoas é seleccionado e reencenado e o futuro é muitas vezes idealizado. As actuais políticas de incentivo do Estado português para a diversificação e reestruturação das actividades económicas dos pescadores indicam actividades baseadas no ecoturismo costeiro como constituintes de uma possibilidade de articulação entre os recursos endógenos das comunidades piscatórias e uma potencial procura turística. É assim criada uma relação património→turismo→desenvolvi- mento, não se prevendo os mecanismos de inclusão e exclusão social que a construção desta realidade poderá trazer, e dos custos necessários para que o património activado continue a ser representado.

Num quadro geral tanto de escassez de recursos piscícolas como de sobrepesca, as instituições supranacionais elegem como uma das políticas prioritárias43 para a resolução dos proble-

42 Segundo o actual secretário de Estado do Turismo, Bernardo Trindade, em Portugal os números ainda são inferiores a 10 % (Fonte: Público, 1 Fevereiro 08), mas, segundo as suas previsões para este sector,a tendência de apresentação de programas culturais irá aumentar. 43 Os três eixos restantes baseiam-se na adequação da frota aos recur-

sos pesqueiros disponíveis, na promoção do desenvolvimento da aquicultura e na criação de mais-valia na produção da indústria transformadora.

mas do sector o desenvolvimento sustentável das zonas mais dependentes da pesca concomitante com a melhoria da quali- dade de vida das suas comunidades piscatórias44. Detenho-me brevemente neste ponto. As principais medidas incidindo sobre o conceito de “comunidade sustentável” estabelecem-se no “reforço da competitividade das zonas de pesca e valorização dos seus produtos”; na “diversificação e reestruturação das actividades económicas e sociais” e na “promoção e valori- zação da qualidade do ambiente costeiro e das comunidades” (POP, 2007, p. 20). O aproveitamento dos fundos comunitários previstos para o período de 2007-2013, continua a depender do empenhamento dos estados membros da UE, mas também se apoia na “massa crítica” das organizações de pescadores e armadores e das diferentes autarquias.

Promoção e valorização da qualidade do ambiente costeiro e das comunidades: A valorização e protecção paisagística e a recuperação ambiental costeira de âmbito local a fim de manter o carácter atraente das zonas dependentes da pesca; A valorização da imagem social dos profissionais do sector e das comunidades piscatórias recuperando-a da erosão acentuada de que tem sido alvo, nomeadamente a dignificação da profissão de pescador, e a recuperação e divulgação das práticas e tradições culturais; A criação ou recuperação de equipamentos colectivos relativos a serviços sociais de proximidade para apoio à infância, aos jovens e a idosos; A valorização e recuperação do património histórico local, incluindo as estruturas edificadas (com excepção do património classificado) ou outros valores culturais locais a preservar e a recuperação e desenvolvimento de lugares e aldeias ou freguesias costeiras com actividades de pesca, potenciando o turismo local (POP, 2007, p. 77).

44 A selecção das zonas e comunidades piscatórias mais dependentes da pesca assentou na análise de indicadores de baixa densidade demo- gráfica (menos de 120 habitantes por km²); população dependente da pesca (mínimo de 3% da população activa do município) e zonas de pesca em declínio (nível médio de desembarques de pescado negativo no período de 1999/2005) (POP, 2007, p. 20).

Este conjunto de acções e discursos visam, portanto, à transformação de usos e costumes populares, edifícios e paisagens, em objectos culturais numa lógica de preservação e da sua consequente valorização a fim de serem expostos e observados. A intenção de transformação do espaço costeiro e das comunidades piscatórias, numa simbiose entre recuperação ambiental e reconversão profissional, sustentada na dimensão patrimonial e no fenómeno turístico, remete-nos para um paradoxo temporal de uma modernidade acelerada onde as “tradições” culturais do passado e do presente necessitam de serem protegidas. A recuperação e valorização são dois dos eixos chave nas políticas estatais para o sector. No discurso sobre as comunidades piscatórias estas são consideradas como se tratassem de uma paisagem frágil e valiosa. A patrimonia- lização da cultura, através de uma reactivação do passado, visa à concentração de elementos culturais e históricos tendo em vista a constituição de um património cultural operando numa dupla dinâmica. A primeira é baseada em tentativas de legitimação, que procuram conceder valorizações semânticas, de carácter cultural e simbólico, a um conjunto de objectos, edifícios, práticas e espaços. A segunda salienta um determinado interesse, local, regional ou nacional, por via da recuperação social de uma determinada entidade.

É neste panorama de alterações profundas do sector produtivo primário português, que se pondera a tentativa de uma reflexão sobre diversas alterações económicas, sociais e culturais ocorridas no país. A percepção das estratégias nacio- nais e comunitárias é clarificadora das tendências gerais que têm acentuado o tipo de desenvolvimento surgido nas últimas décadas. Assim, o estudo do sector das pescas só será compreen- dido de forma mais dinâmica encarando o constante movimento migratório para os centros urbanos do litoral ocorrido num contexto de abandonos dos campos agrícolas. Este fenómeno teve a sua expressão máxima nos anos 60, com um fluxo acen- tuado de pessoas em direcção às áreas mais industrializadas

de Portugal, mas também para outros países da Europa ou para a América do Norte. Num estudo recente sobre o turismo em espaços rurais, Luís Silva aponta a importância de se considerar a distribuição da população do território para a análise dos fenómenos surgidos num contexto de uma neo-ruralidade pois “a população distribui-se de forma irregular pelo país, […] constata-se que a maior parte da mesma se encontra no eixo litoral compreendido entre Braga e Setúbal, onde se regista a presença de cerca de 85 % da população e 76 % dos lugares do Continente” (SILVA, 2007, p. 33). É também sobre este aspecto que o discurso das políticas governamentais se fundamenta, reconhecendo a situação territorial complexa criada com o abandono dos campos e do sobrepovoamento do litoral. Assim, é num quadro de uma cada vez maior pressão urbanística no litoral, com a consequente delapidação dos recursos naturais, que a análise do sector das pescas pode ser compreendida de uma forma integrada.

A consciencialização de um triplo movimento, de retrac- ção da actividade piscatória, do potencial desenvolvimento da indústria do turismo, e do aumento da pressão demográfica no litoral, torna operativo às comunidades piscatórias defrontarem- se com a possibilidade de se balancearem no equilíbrio precário da sua subsistência provocado pelas alterações estruturais ocorridas na sociedade onde estão inseridas. A patrimoniali- zação das suas respectivas culturas, debate actual lançado em parte pelas políticas estatais e comunitárias, coloca-se como uma questão premente.