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Editora cartonera: livros como reação à crise 73

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 87-93)

CAPÍTULO II.   Representação e Autorrepresentação nas margens 18

2.2.   Intervenções literárias e extraliterárias: ativismo social nas periferias 72

2.2.1.   Editora cartonera: livros como reação à crise 73

Em um contexto desfavorável para a Argentina tanto no cenário externo quanto inter- no e que tem como marco o ano de 1999, marcado pelos impactos econômicos causados por fatores como a crise econômica na Rússia no ano anterior, a desvalorização da moeda brasilei- ra frente ao dólar e o redução dos investimentos devido à retração do capital especulativo es- trangeiro frente ao risco elevado nos mercados financeiros internacionais – especialmente no que tange aos mercados de países emergentes, reflexo do período imediatamente anterior marcado pela crise dos países asiáticos –, e especialmente por um ambiente interno volatiliza- do por uma conjuntura que somaria declínio econômico a desequilíbrio fiscal e desemprego galopante, o biênio 2001-2002 é marcadamente relevante para se pensar o recorte temporal que compreende os objetos referenciados nesta dissertação.

Neste clima de desequilíbrio econômico, social, político e institucional, o governo ar- gentino acabaria com a paridade peso/dólar, uma ação que viria a desencadear um momento de convulsão, com o não cumprimento dos acordos firmados com o FMI e a concretização do “calote”, no que ficou conhecido como “ajuste”, e que teria consequências nefastas, para além da fuga de capitais e depósitos, para um extenso contingente populacional, tanto para as cha- madas classes médias como, principalmente, para as classes populares e de baixa renda.

A redução de salários e aposentadorias, o corte de verbas para as instituições de ensino e de saúde, a demissão de funcionários públicos e a instituição do “corralito” (como ficou conhecido o bloqueio das contas e depósitos bancários após uma aceleração no ritmo de sa- ques bancários), acabariam gerando uma intensa onda de revoltas, saques, manifestações (os populares e emblemáticos panelaços, noticiados mundo a fora em periódicos e telejornais).

Mas o reflexo da crise acabaria por se mostrar definitivamente cruel para os menos fa- vorecidos, com o aumento do desemprego que atiraria às ruas aos borbotões milhares de pes- soas que já se encontravam em condição socioeconômica precarizada e em condições de mo- radia e subsistência incertas. Muitos acabariam recorrendo à catação de material reciclável como sustento, e lançando-se às ruas que se apresentam inapelavelmente como destino e mo- radia. Aqueles com mais sorte acabariam nas villas miserias e na periferia pauperizada das grandes cidades.

Neste cenário de caos e incerteza, a coletivização de iniciativas, pela via da mobiliza- ção e do agenciamento cultural, na criação de cenas para a articulação de produtos culturais dos setores periféricos tem conseguido levar a cabo projetos de visibilização de construções subjetivas até então esparsas no cenário local. Por meio da projeção alcançada na articulação da cena mediática com o mercado literário – ainda que “independente” – diversos escritores tem conseguido certa projeção e uma extensa gama de projetos sociais tem sido elaborada a partir das premissas de um engajamento participativo derivando na proliferação de espaços de fomento à leitura e à produção de textos criados no entorno da escrita produzida fora dos cen- tros tradicionais.

Na Argentina, o contato entre editoras independentes e cooperativas de catadores de papelão vem criando, com as chamadas editoras cartoneras, um ambiente favorável para a mobilização e valorização de estratos sociais marginalizados enquanto cria espaços para a publicação de autores periféricos com temáticas e projetos estéticos alternativos aos dissemi- nados usualmente no mercado literário tradicional.

Autor de relevância na cena contemporânea argentina, Washington Cucurto realiza um esforço de, a partir de sua notoriedade, intervenção no contexto social e no mercado cultural bonaerense através da criação da editora Eloísa Cartonera, que completou dez anos em 2013. Além de abrir espaço para produtos que não teriam oportunidade no grande corredor editorial, como obras de sujeitos marginais, a iniciativa editorial pretende exercer papel social na agre- gação de valor ao trabalho dos catadores de papelão.

A partir do refugo, e do uso de mão de obra dos catadores, o projeto gráfico, bem co- mo o processo de composição dos livros editados, está condicionado a visibilizar e dar utili- dade à produção de estratos sociais marginalizados, bem como de produtos culturais despre- zados pelas editoras “comerciais”. Eloísa Cartonera é, conforme descrito na contracapa de suas publicações, um coletivo responsável pela edição de obras literária: “Editor Responsable: Cooperativa de trabajo gráfico, editorial y de reciclado Eloísa Cartonera Ltda.”. Ocupa hoje um espaço no bairro da Boca no qual são fotocopiados o miolo dos livros e a eles coladas, de

maneira artesanal, capas de papelão geralmente pintadas à mão. No lugar do colofão livro, onde deveriam estar a ficha catalográfica e demais informações técnicas da obra, também se pode ler “Tapa hecha con cartón comprado a los cartoneros en la vía pública. Cortado y pinta- do a mano e impreso en la cartonería «No hay cuchillo sin rosas», Aristóbulo del Valle 666, República de La Boca, Ciudad de Buenos Aires”. Localizada no bairro de La Boca, a editora acaba por cria vínculos com o território e produzir um processo de identificação com os habi- tantes locais.

2.2.2.1daSul, Editora Literatura Marginal e Selo Povo: Capão na moda e Literatura 

Marginal no livro 

Aquele ano ficaria marcado na vida de Ferréz. O motivo: o autor estava sendo proces- sado pelo Ministério Público de São Paulo. A acusação: apologia à violência. O episódio tal- vez explique o longo período sem publicar que somente se encerraria no ano de 2011, com seu último romance Deus foi almoçar (merece menção o fato de que, de 1997 até 2006, foram seis os livros lançados, um como organizador, em um espaço não maior que três anos entre cada um deles). O ano é 2007 e Ferréz, em sua já bem consolidada carreira de escritor – pu- blicara dez anos antes Fortaleza da desilusão, seu primeiro livro, de maneira independente e com o apoio da empresa onde trabalhara como arquivista. Três anos depois, em 2000, lançaria seu primeiro romance, Capão pecado, iria tornar-se colunista e agitador cultural num momen- to que representaria uma ocasião especialmente significativa, vindo a fazer do paulistano – então com 31 anos de idade, morador da favela do Capão Redondo, na periferia de São Paulo – objeto da atenção dos noticiários e de colunas de diversos veículos de comunicação. Sua aparição inesperada no circuito mediático, através da qual acabaria por conquistar repercussão e visibilidade junto à opinião pública, e que acabariam por cimentar e legitimar um status que vinha sendo gradativamente engendrado em sua trajetória de vida, de artista e de mediador nos processos de agenciamento social e cultural empreendidos na periferia: o de intelectual.

Faz-se necessária a resumida descrição de uma cena: dois homens em uma motocicleta assaltam um empresário em um sinal de trânsito da cidade de São Paulo.

Ocorrência bastante corriqueira em muitas cidades brasileiras, normalmente ignorada pela mídia, e apenas mais um caso que remotamente figuraria como dado estatístico na man- cha criminal da polícia investigativa, a cena dificilmente desbordaria o comezinho e ganharia os contornos de conflito de classes que adquiriu, não fosse a vítima uma celebridade televisiva

ou, em especial, não tivesse a mesma lançado mão dessa sua condição para dar publicidade ao acontecido em um dos maiores jornais do país, a Folha de São Paulo, em carta aberta publi- cada no dia seguinte na qual narra a subtração de seu relógio Rolex e a experiência de estar na mira de uma arma de fogo – e por meio da qual desfia críticas no que concerne à segurança como direito do cidadão que paga seus impostos e juízos sobre outros graves problemas do cotidiano social brasileiro.

No breve período de repercussão em que se evidenciavam as inúmeras réplicas e tré- plicas à carta do apresentador de TV Luciano Huck, que viriam a movimentar amplamente o noticiário28 e as discussões no interior e fora dos espaços tradicionais de circulação e de nego-

ciação de consensos dos meios de mediação, a internet, majoritariamente, acabaria por ser suporte dialógico profícuo para a reverberação da polêmica nos diferentes âmbitos que a mesma alcançaria, com intervenções críticas dos mais diversificados setores, de igualmente variados conteúdos e tendências político-ideológicas.

Naquela circunstância de quase comoção encenada em âmbito nacional nos meios de comunicação de massa, havendo naquele episódio singular o afiançamento do tema da violên- cia urbana e da marginalidade penal, como cerne fundamental da polêmica, Ferréz lograria constituir-se como sujeito portador de autoridade (adianto: ao que parece sua opinião fora solicitada) para intervir na construção dos discursos em circulação no meio sócio-histórico, por via da reflexibilidade de suas representações subjetivas e do alcance adquirido por estas, bem como através de sua trajetória de consagração no campo artístico. Uma intervenção para além das fronteiras da margem, do Capão, do nicho mercadológico, e na direção do mainstre-

am político e sociocultural brasileiro e de seus meios tradicionais de disseminação de discur-

sos. Uma “intromissão” de uma realidade à margem na qual as práticas delitivas fazem parte da vida e chegam a, de maneira recorrente, servir como chave de leitura (estigmatizante, cris- talizada, normalizante, ou para se aproximar de uma das referências teóricas deste trabalho, Edward Saïd, orientalizante) sobre a periferia e os sujeitos subalternos para uma generosa parcela da sociedade.

Publicado no mesmo veículo uma semana após do texto do apresentador, ambos na se- ção “opinião” do periódico Folha de São Paulo29, o texto de Ferréz – um conto intitulado

28 Para além das páginas criminais da mídia impressa, assomando com destaque, por exemplo, no programa de variedades dominical da Rede Globo de Televisão, o Fantástico, e em diversos outros programas de outras tantas emissoras ao longo, pelo menos, das duas semanas subsequentes.

29 O texto de Huck tem data de 1º de outubro daquele ano, e surge após o mesmo ser assaltado à mão armada por dois homens em uma motocicleta, na região onde se situa o centro financeiro da cidade de São Paulo, em episó- dio no qual foi levado seu relógio de pulso Rolex no valor de cerca de quarenta mil reais, à época, presente de sua esposa, a também apresentadora Angélica.

“Pensamentos de um «correria»”, no qual narra de modo ficcionalizado o assalto segundo a perspectiva dos criminosos e tece controversas considerações acerca do fato referido por Huck em carta aberta – precipita-se como uma ostensiva e contundente projeção do escritor enquanto sujeito portador de um discurso crítico espúrio (tanto em sua tipologia textual, por materializar-se narrativamente em um espaço tradicionalmente reservado à prosa dissertativa, quanto marcadamente na sua temática, na representação de um repertório ético oriundo das margens silenciadas e criminalizadas a que se vincula o escritor paulistano).

Agora não somente voltado para a própria periferia e para os subalternos, os quais muitas vezes afirmara o autor serem o público-alvo intencional de sua literatura, mas também para o grande público da sociedade hegemônica, em sua réplica, Ferréz interpela com o dis- senso as esferas centrais de disseminação de discursos na sociedade. A partir de sua atuação e de sua notoriedade no campo das artes – e ainda de seu reconhecimento como conhecedor e “autoridade”, mostra-se capaz de, com propriedade e de modo avalizado, opinar desde e sobre a margem. Desse lugar e com esse capital, intervém no debate público para tornar aparente a crítica cultural e política, estabelecendo suas posições morais nas orlas.

Impossível não fazer a analogia que aproxima “Pensamentos de um «correria»” do famoso “J’accuse” de Zola. O conto-réplica de Ferréz se desborda de sua condição essencial narrativa e acaba por se instituir como manifesto de introdução do escritor na condição de intelectual, figura de imprecisa definição fora do papel que assume a partir desse lugar que passa a ocupar.

Entre os anos de 2001 e 2004, o escritor e rapper paulistano Ferréz, que na época já havia alcançado alguma projeção no campo literário, organiza três edições especiais da revista

Caros Amigos com o nome Literatura Marginal: a cultura da periferia. Com a edição de 48

autores e 80 textos, de gêneros diversos como crônicas, contos, poemas e letras de rap, “deu visibilidade e legitimou, para além das fronteiras das periferias, a produção literária de muitos escritores e a própria literatura periférica ou marginal” (REYES, 2013, p. 20).

Ferréz ganhara notoriedade durante o período em que escrevia seu romance Capão pe-

cado (2000), por meio de duas notas na mídia impressa (ambas da Folha de S. Paulo, datadas

de 6 de janeiro e 26 de agosto de 2000), que o levaram a publicá-lo pela então recém-criada, e atualmente extinta, editora Labortexto (que se distinguiria por explorar o nicho de mercado do testemunho carcerário como, por exemplo, as obras de Jocenir (Diário de um detento: o livro, 2001) e de André du Rap (Sobrevivente André du Rap do massacre do Carandiru, ). Após a publicação, torna-se colunista fixo da revista mensal no mesmo ano e durante a fase em que

colaborou como “cronista do gueto”, veiculou em território nacional centenas de textos sobre rap, política, sonhos pessoais, literatura, experiências cotidianas, violência, periferia, amor.

Reunidos em torno da literatura marginal, os autores passavam a ocupar, assim, lugar no campo cultural, a partir da criação de um novo espaço (ou cena) associativo, espetacular, de acesso, apropriação, legitimação e divulgação. E uma nova via de entrada ao campo literá- rio pela criação de um cânone particular, com legitimidade de representação da realidade so- cial e de autorrepresentação do sujeito periférico, essa cena literária é proprietária de um dife- rencial no mercado, preenchendo um nicho específico dentro de um ambiente cultural já pro- pício, como demonstrado nas páginas iniciais deste trabalho. Como projeto literário, tem por finalidade retratar “o que é peculiar aos sujeitos e aos espaços marginais” e como

(...) projeto intelectual amplo, no qual está inserido tal projeto literário, abarca o objetivo de “dar voz” ao grupo de origem dos escritores, por meio de relatos dos problemas sociais que os atinge; e dar também nova significação à periferia, por meio da valorização da “cultura” [e do ethos] deste espaço e de uma atuação que busca estimular a produção, o consumo e a circulação de bens culturais. (NASCI- MENTO, 2009, pp. 105-106)

Vale ressaltar que são contemporâneas às publicações atreladas à literatura marginal obras que, na literatura e nos meios de comunicação (no mainstream) também abordam temas de exclusão social, violência, as periferias e o sujeito à margem, tais como Subúrbio, de Fer- nando Bonassi, O invasor, de Marçal Aquino, Carandirú, de Drauzio Varela, Cidade de Deus de Paulo Lins, e mesmo Abusado, de Caco Barcellos, sem estarem ligadas à cena da literatura marginal.

Havia também uma diferenciação no modo de circulação desses números especiais da revista: eles eram distribuídos, inicialmente, na periferia, com preço de capa menor, denotan- do uma intencionalidade específica quanto ao público alvo. Estes seriam os moradores da periferia, num esforço de disseminar, dentro das fronteiras da margem, os objetos culturais ali produzidos. A literatura marginal remete ainda a um “projeto pedagógico”, comum no âmbito do movimento hip hop, que atribui à literatura uma função “consciente”, “como um ato políti- co que visa dialogar com as populações das periferias urbanas brasileiras” (NASCIMENTO, 2009, p. 80), visando à construção de capacidades críticas enquanto dissemina suas práticas, linguagem e estilo de vida.

CAPÍTULO III. Identidade e pertencimento na cumbia villera e no hip hop: culturas

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 87-93)