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Revelando outros “Eus” na margem: Autoficção, identidade e performance 61

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 75-86)

CAPÍTULO II.   Representação e Autorrepresentação nas margens 18

2.1.   A experiência da (auto)representação na margem: Os expedientes da autoficção e

2.1.3.   Revelando outros “Eus” na margem: Autoficção, identidade e performance 61

¡Todo es personal, imbéciles! Lo único que importa es la persona. ¡La 1ra Persona!

Tyson Grande (Washington Cucurto)

Para lidar com o dado da autoficção nas obras de Washington Cucurto e de Ferréz, e com as particularidades do discurso autoral e a perspectiva da identidade (bem como da no- meação) frente às caracterizações propostas sobre a escrita autoficcional, de maneira a obser- var como o expediente da representação encontra-se imbricado com as questões relativas à subalternidade e ao acesso da margem ao campo cultural através de estratégias associadas à apropriação e à negociação, faz-se necessário investigar o modo de adesão desses autores ao gênero em percursos marcados pelo ímpeto de apropriação a partir de rupturas e desvios, no sentido da conquista de autonomia e acesso ao campo cultural. Apropriando-se daquilo que é disseminado pela cultura de massas, do popular e das produções simbólicas do outro hegemô- nico, e por um senso de oportunidade característico à “braconagem”26 (DE CERTEAU, 1994),

26 O conceito dá conta de lidar com esse fazer marginal com maior refinamento, como explicita Simon Harel (2005, p. 211): “O conceito de braconagem, que tomamos emprestado de Michel de Certeau, nos possibilita identificar as estratégias de resistência ou de sobrevivência empregadas pelo sujeito (tanto individual quanto coletivo) em seu meio. Essas estratégias são variadas em gênero e em número; declinam-se de acordo com os contextos: sobreviver em uma favela no Rio, pensar sob um regime totalitário, traduzir um texto sem a ele sub- meter-se ou sobreviver a um trauma psicológico. Essas estratégias têm por característica comum serem contra

ambos compartilham de um labor narrativo pelo qual constroem, em suas poéticas, recusa e negociação com o vigente. Assim, em seus projetos estéticos e literários que se processam às margens das instâncias de consagração e pertencimento do que se concebe como cultura, e pela afirmação de lugares não-hegemônicos, manifestam as temáticas das periferias e dos su- balternos, bem como representações, memórias e histórias que revelam experiências e ima- gens próprias do conurbano latino-americano.

Manuel Alberca (2007, p. 31), em sua tarefa de conceitualizar o relato autoficcional, afirma que as autoficções têm como fundamento a demanda de um “entre lugar” de contornos imprecisos e de fronteiras permeáveis e instáveis, localizado entre o romance de ficção e a autobiografia (negociando, assim, com a liberdade de imaginar e a obrigação de ser verídico) e que se regem por normas particulares, pela alternância entre ambos os códigos que descre- vem aqueles gêneros, ou pela criação de um conjunto de regras próprias e ambíguas.

O mesmo teórico também destaca que nesses relatos a identidade visível ou reconhe- cível do autor, narrador e personagem, também é uma marca distintiva. Tal proposta pode, ainda, servir como uma abordagem comparatista das obras literárias de Washington Cucurto e Ferréz, escritores que assumem o relato autoficcional – ainda que o segundo o faça de manei- ra irregular (em menor frequência e de aplicação menos explícita para a sua obra) –, como um dos procedimentos profícuos para as suas literaturas.

Uma análise mais detalhada em relação ao fazer literário de Cucurto nos leva a atentar para uma característica distintiva de sua maneira de adesão ao modelo da narrativa de autofic- ção que se evidencia na persona (literária e extraliterária) que o escritor assume como vetor de seu discurso autoral. Quem se investe da pena em sua escrita é a personagem Cucurto, e não, como se pode notar em parte do extenso conjunto das obras de autoficção e em parte das es- critas autoficcionais de Ferréz, um “outro” eu tomado como personagem do próprio autor. Se o que é comumente assumido por autoficção está fundamentado na “confusão” entre persona,

produtivas aos olhos das autoridades política, econômica e estética. Atividade ao mesmo tempo ilícita e contin- gente, a braconagem é uma invasão, um transbordamento, uma camuflagem que permite a um sujeito de se imis- cuir, sujeitando-se aos perigos, no território do outro (proprietário de terra, território nacional, propriedade inte- lectual). A noção de braconagem tem o mérito de situar tanto o indivíduo quanto a coletividade o mais próximo possível do seu espaço de ação (texto, corpo. espaço social). Sujeito e meio não são mais independentes: este constitui-se das opressões impostas por aquele. Assim, a prática da escritura como a da vida em sociedade não são mais vistas como naturais; elas procedem de estratégias de resistência dirigidas contra as autoridades locais, quer se trate de instituição literária dominante (língua standard, belo estilo) ou de conformismos sociais (gentile- za, boa educação). Mais comumente a braconagem descreve um modo singular de enunciado estético, político ou histórico - muitas vezes dificilmente aprazível - engajado no espaço que é o seu. Referindo-se à questão da "di- versidade" cultural, a braconagem permite reavaliar as relações sociopolíticas entre culturas. Longe da harmonia da mestiçagem ou da justaposição do comunitarismo, a braconagem apoia as relações interculturais nos termos camuflagem, mimetismo, tradução ou resistência, bem mais precisos e refinados”.

personalidade e personagem – “insinuando, de maneira confusa e contraditória, que esse per- sonagem é e não é o autor” (ALBERCA, 2007, p. 32) –, Cucurto surpreende por apresentar ali uma ruptura já neste princípio, uma vez que a personagem do negro dominicano não é o escri- tor argentino, mas é um outro autor que narra uma vida ficcional a qual nenhum dos dois “re- almente” viveu (nem Cucurto ou Ferréz, a priori entes “ficcionais”, nem Santiago Vega ou Reginaldo Ferreira da Silva, “reais”). O que entabula seus discursos é a farsa da identidade, como fio condutor de uma consciência reiterada do caráter fictício da identidade, bem como dos enunciados (auto)biográficos na pós-modernidade, gesto que prenuncia uma “relação cru- zada” na qual o sujeito se apresenta como criador de discursos e efeito destes.

Ao trabalhar com a questão da coincidência onomástica, Alberca adverte que a mesma produz uma instabilidade na recepção do relato (notada, por exemplo, em “O Ônibus branco” de Ferréz, enquanto parábola que situa, e representa, a personagem do sujeito “real” numa narrativa ficcional), afirmação esta que nos leva a inferir que, para o caso de Cucurto, a não coincidência acaba por gerar uma instabilidade (e consequentemente mobilidade e desloca- mento) na produção do relato, que acentuaria as marcas da performatividade, o que por sua vez, sem abrir mão daquela instabilidade na recepção, resulta em uma complexidade ainda maior, tendo como altamente contraditório o papel do autor e seu relato autoficcional (ampli- ficado?), desarrumando, assim, a expectativa do leitor – e do crítico... – devido a suas múlti- plas chaves de leitura.

No que se tem podido observar em relação à persona que assume o discurso nos rela- tos autoficcionais do escritor argentino, como nomeia aquele mesmo teórico, a mesma seria um “simulador de identidades” (ALBERCA, 2007, p. 33) ou, por extrapolação, um performer, naquilo que ele escolhe representar, levar à cena, em uma atuação que excede o literário e se alinha ao espetacular – no qual a criação de relatos sobre a margem poderia ocupar o centro de sua obra.

Se “o nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio como os outros” (FOUCAULT, 2001, p. 273), o pseudônimo “Washington Cucurto”27 (bem como os demais pseudônimos dos quais lança mão, tais como Tyson Grande ou Zelarayán) adotado por Santi- ago Vega evidencia ainda mais essa distinção na medida em que o autor escolhe para sua per-

27 Em Washington Cucurto, o prenome está relacionado a seu porte físico e à cor de sua pele, uma vez que no círculo de amizades do qual fazia parte ele era o mais corpulento e com traços étnicos relacionados ao que na Argentina se denomina “negro”, enquanto “não-branco” ou não caucasiano, e de sua condição social, encontran- do-se associado a estratos socioeconômicos cujas escolhas para nomes tendem a ser consideradas inusitadas ou excêntricas – Washington seria, assim, um nome de “pobre” ou de “favelado”. O sobrenome Cucurto surge a partir da costume que Santiago Vega tinha, à época, de declarar “no curto” acerca de seus gostos pessoais quan- do questionado. Em certo momento, ao repetir algumas vezes essa negativa (algo como, em português, “não curto” ou “não gosto”), acaba por exprimir-se através da cacofonia “no cucurto... cucurto”.

sona literária nomes para colocar-se em cena como o Outro (marginal, subalterno), diferenci- ando-se de um Eu (hegemônico, estabelecido, estável) que se assenta nas construções simbó- licas da nação, uma vez que a troca do nome acaba por favorecer o surgimento de representa- ções distintas daquelas processadas através das estratégias da “atitude textual” (SAÏD, 1990) – uma expectativa sobre a alteridade e a margem inerente ao discurso da autoridade –, bem co- mo possibilitar designações de sujeitos a partir da aderência de identidades cambiantes, desli- zantes e instáveis.

O que empreende, em uma das possíveis perspectivas de leitura de seus atos espetacu- lares e performáticos, é afirmar-se (e ao marginal) a partir do preconceito e do estigma, recor- rendo expedientes relacionados às “tretas del débil” (LUDMER, 1985, p. 71), e constituir-se como detentor de um discurso portador de uma “função autor” (FOUCAULT, 2001, p. 272), capaz de reorganizar a figuração do Outro em função de um olhar que não é mais (tão somen- te) o do hegemônico. Tal empresa é elucidada nas palavras de Diane Klinger quando afirma que “Santiago Vega, ao se apresentar como um «negro» dominicano (Cucurto), assume em si mesmo o lugar do objeto do preconceito social” (2007, p. 130).

No que se refere ao pseudônimo “Ferréz”, ressaltando-se que essa nomeação também está ligada em parte a mesma funcionalidade, a opção está colocada de forma distinta, de mo- do a relacionar, à maneira da escolha dos “nomes artísticos” dos grafiteiros e dos rappers, à pessoa “de carne e osso” um significado identitário que se quer rígido, sólido enquanto evoca- ção a um estado crítico através de um posicionamento “consciente”, ou a um lugar de perten- cimento ao campo (no caso, o que compreende o movimento hip hop, primeiramente, bem como, em um segundo momento, ao campo literário). Ferréz associa a escolha de seu pseudô- nimo a uma homenagem a dois símbolos nacionais da luta de resistência. “Ferréz” surgiria pela fusão do nome de Virgulino Ferreira, o cangaceiro Lampião, ao nome do líder negro Zumbi dos Palmares. Desta maneira, símbolos da identidade da Nação, cristalizados como índice de episódios de luta contra o hegemônico por parte de um elemento popular revoltoso, são tomados pelos conteúdos que emergem no sentido oposto à imagem estereotipada de es- cravo fugido e bandido sanguinário, o de sujeitos que ousaram enfrentar o “sistema”, atuali- zados no contemporâneo em emblemas dos movimentos sociais das minorias.

Ambas as empresas, tanto a de Cucurto como a de Ferréz, têm também por função ne- gociar o acesso ao campo artístico (como estratégia de consagração e de acesso ao campo literário): García Canclini assinala que o que constitui um campo está associado à existência de dois elementos primordiais: “a existência de um capital comum e a luta pela sua apropria- ção” e que esse campo cultural com a passagem do tempo “acumula capital (...) em relação ao

qual se formam duas posições: a daqueles que detém o capital e a daqueles que aspiram a de- tê-lo” (2005, p. 76). Para o estudioso, “quem domina o capital acumulado, fundamento do poder ou da autoridade de um campo, tende a adotar estratégias de conservação e ortodoxia, enquanto os mais desprovidos de capital, ou recém-chegados, preferem as estratégias de sub- versão ou heresia” (GARCÍA CANCLINI, 2005, p. 76).

Em certa medida, o discurso do subalterno mediado e negociado como perso- na/discurso do autor fornece um status positivo à subalternidade em função do expediente autoficcional e performático de que lança mão, numa estratégia de valorização das vozes à margem. Essa ação articulada desde um outro lugar da cultura faz referência ao discurso da autorrepresentação, pela assunção do papel de subalterno pelo escritor que empreende seu fazer narrativo a partir de “dentro”, abalizado pela condição de pertencimento, ou na encena- ção de uma atuação no interior das fronteiras que demarcam o lugar à margem das constru- ções culturais das periferias – tal como as referências ao território e à cumbia, marcantes no universo ficcional da obra de Cucurto, ao território e ao rap, na de Ferréz.

Se, ainda conforme afirma Foucault, o anonimato literário seria insuportável e buscar o autor conforma-se como necessidade para não somente “indicar a origem, mas de conferir um certo índice de «credibilidade»” (2001, p. 16) a um texto, o artifício da autoficcionaliza- ção e da autodesignação do nome em Cucurto e em Ferréz inverte essa lógica, pois atém-se a indicar uma origem (do sujeito e de seu discurso) e não avança no empreendimento de confe- rir qualquer índice de credibilidade. Pelo contrário, aliado a recursos próprios da autoficção como condições de seu “estar entre” a ficção e autobiografia, o que se pode perceber é a poro- sidade que adquire a questão da verossimilhança (tanto interna quanto externa) no texto, e do papel impreciso que ela desempenha entre afirmar ora um pacto ficcional, ora um pacto “(au- to)referencial” (KLINGER, 2007, p. 11) e, na maior parte das vezes ambos, pela afirmação de uma fratura no interior das dicotomias fato-ficção e público-privado. Diana Klinger ainda afirma que “a autoficção se inscreve no paradoxo deste final de século XX [e que permanece vigente nestas primeiras décadas do presente século]: entre o desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento de exprimir uma «verdade» na escrita” (KLINGER, 2007, p. 22). Vale citar o que a autora afirma sobre esse narcisismo: “A autoficção (...) surge em sintonia com o nar- cisismo exacerbado pela sociedade midiática contemporânea mas, ao mesmo tempo, produz um reflexão crítica sobre ele.” (KLINGER, 2007, p. 40).

Nossos autores subvertem ainda as características apontadas por Foucault para definir a “função autor” no interior do discurso, pois a questão do nome em suas obras tem como efeito uma quebra parcial naquilo que permeia o “retorno do autor” e da autoficção em função

de um personagem-narrador que se iguala ao autor, uma vez que permite explicar a presença de certos acontecimentos em uma obra somente pela permuta da persona “autoral” pela per- sona do subalterno. Ou seja, em vez se “explicar” pela provável identificação de um autor “Santiago Vega/Reginaldo Ferreira da Silva” e uma personagem sua “igual”, o escritor tudo baralha ao interpor uma persona mediadora na figura de uma personagem performática nome- ada Washington Cucurto/Ferréz, com, no caso do primeiro, história e memórias diferentes daqueles dados da biografia do autor “real”. Aquela presença do autor que, para Foucault, regularia a proliferação “incontrolável” de sentidos, na escritura de ambos faz o radicalmente oposto.

Para Alberca “nosso tempo é caracterizado por um refúgio no individualismo que so- lapa a doutrina [da morte do autor] e permite ler nos textos a presença, voluntária ou involun- tária, oblíqua ou paródica, da voz, da figura e do mundo privado do autor” (2007, p. 27). Também nesse âmbito “o texto ficcional implica uma dramatização de si que supõe, da mes- ma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem” e esta dramatização implicando na simultaneidade da conforma- ção tanto de autor como de narrador (KLINGER, 2007, p. 48) e “uma exposição radical de si mesmo, do sujeito enunciador assim como do local da enunciação” (KLINGER, 2007, p. 51, grifo nosso).

Apesar desse mudança, ainda é possível reconhecer certa unidade de escrita (outra das caracterizações da “função autor”) nesse discurso, mantida como um eu que congrega um/uns outro(s), que vem a ser designada pela manutenção da alteridade e não como apaziguamento de diferenças. Tal deformação ainda se perpetua de maneira que, nesse âmbito textual relacio- nado à dupla ficcionalização do sujeito escritor, seu discurso não permite superar contradi- ções, mas sim espetacularizá-las (e, assim, problematizá-las), e no mesmo movimento acaba por negar continuamente o nexo ou a lógica, estabelecendo o desacordo e a discrepância em lugar de promover a conciliação para afirmar a alteridade e seu lugar na urdidura de uma co- munidade.

Por último, para estabelecer uma derradeira relação de fratura frente às características do discurso autoral levantadas por Foucault, o fazer literário desses autores apresenta como resultado um estilo (uma poética da narrativa) e um projeto (o Realismo Atolondrado e a Lite-

ratura Marginal), que não podem ser tomados como continuidade, mas como aportes da mul-

tiplicidade de personas (alter egos) que assumem como fontes do discurso. Citamos Foucault quanto a esse papel de estabelecimento de outros eus:

É sabido que, em um romance que se apresenta como o relato de um narrador, o pronome da primeira pessoa, o presente do indicativo, os signos da localização jamais remetem ao escritor, nem ao momento em que ele escreve, nem ao próprio gesto de sua escrita: mas a um alter ego cuja distância em relação ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao longo da mesma obra. (2001, p. 279)

Assim, por colocar em perspectiva uma não-unidade do sujeito, capaz de assumir iden- tidades em função de contextos, como é notório no questionamento da identidade na pós- modernidade (cf. Stuart Hall, que esquadrinha este tipo de questionamento bastante detida- mente), ao invés de identidade entre autor e narrador (como no pacto autobiográfico de Le- jeune), o que se visibiliza é a fratura entre o sujeito do enunciado e o da enunciação e a im- possibilidade de se decidir entre realidade e ficção, identidade e alteridade (KLINGER, 2007, p. 66).

Justamente por assumir seus alter egos (“Washington Cucurto”, “Ferréz”) aprioristi- camente (ao próprio ato de escrever e, em suma, extraliterariamente), a cisão que assinala Foucault no citado não se alia a um ato discursivo restrito ao texto, mas a ele extravasa e ad- quire aspecto de performance reveladora do caráter de uma cultura. Uma performance que não pode apagar a figura biológica do ator, que ancora e desempenha as representações, mas que não despe a personagem ao sair de cena (se é que chega a dela sair), e que “não remete pura e simplesmente a um indivíduo real”, mas sim a um ser ficcional, corporificado que “po- de dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes podem vir a ocupar” (FOUCAULT, 2001, pp. 279-280). Muito do que empreendem naquelas suas narrativas de teor autoficcional pode ser tomado como uma atitude de subjetivação dos discursos à margem pela atribuição de um narrar (a memória, a história, e também o imaginá- rio cultural, o inventado) e de uma função do subalterno como sujeito do (e com) discurso.

Em seus expedientes literários, mas principalmente por suas performatividades, ambos assumem um papel de autor bem como um papel de “fundador de discursividade”, delimitado por Foucault como aquele que não apenas torna possível um certo número de analogias (dis- cursos assemelhados em função do tema, da maneira com que serve de modelo ou princípio), mas sobretudo por tornar possível um certo número de diferenças dentro do discurso sobre a margem, que “abriram o espaço para outra coisa diferente” (2001, p. 281). Dessa maneira, desvinculando “autoria de autoridade” (KLINGER, 2007, p. 40), reafirma-se o papel de San- tiago Vega, na Argentina, e Reginaldo Ferreira da Silva, no Brasil, como transmissores de uma autoria do discurso da margem no qual “o representado seria uma presença e não uma representação” (KLINGER, 2007, p. 44) como parte de um momento privilegiado para repen- sar o espaço sócio-histórico circundante, fato reiterado nas palavras de Diana Klinger:

Com “Noites vazias” e “Coisa de negros” pela primeira vez a literatura argentina se envolve com a cultura marginal urbana contemporânea (como já o estavam fazendo o cinema e a televisão). Essa cultura marginal apareceu com a chegada recente de imigrantes que, mesmo morando no centro da cidade, tem sua língua e sua cultura relegadas às margens da “cultura oficial”. Trata-se de imigrantes latino-americanos (paraguaios, peruanos, bolivianos, equatorianos) que, nas últimas décadas, vêm trazendo diversidade linguística, cultural e étnica à paisagem urbana. (2007, p. 128)

Nesse momento “inaugural”, evidenciam-se as diferenças e os conflitos no corpo da cidade, e da nação, e o discurso autoral é instrumento de negociação pela aquisição de voz de todo um contingente alijado historicamente do direito a autorrepresentação – ou pior: capaz apenas de reproduzir as representações feitas sobre si, autoetnograficamente.

Nas palavras do próprio Cucurto: “Num momento tive a necessidade de contar esse mundo, toda essa coisa da imigração. Pensava que se eu não contasse, ninguém ia contar. Ia se perder no tempo” (JACOBY, apud KLINGER, 2007, p. 138). A partir de um procedimento de representação do real (no caso, de uma realidade pouco ou insatisfatoriamente referencia- da) mais comumente associado ao realismo, ainda que imiscuído das práticas experimentais

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 75-86)