• Nenhum resultado encontrado

Sabotage e a invasão das margens e do hip hop na cena cultural brasileira 89

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 103-130)

CAPÍTULO III. Identidade e pertencimento na cumbia villera e no hip hop: culturas juvenis 79

3.2.   Sabotage e a invasão das margens e do hip hop na cena cultural brasileira 89

O rap me resgatou e agora vou remando. Tenho um remo e um barco. Só espero não morrer antes do tempo.

Sabotage

Quem era Mauro Mateus dos Santos? Como chegou a ocupar um lugar tão destacado na cena hip hop brasileira, com o único CD que lançara dois anos antes de receber quatro tiros pelas costas, na manhã de 24 de janeiro de 2003, a menos de dois meses de completar 30 anos? Algumas das perguntas mais importantes sobre Sabotage são difíceis de responder. Um indício pode ser encontrado nas suas canções:

(Aê irmão...)

Sou da favela. Tô aqui: Sabotage! Tem certos lugar. Ligeiro. Criminalidade.

Eu to de pé (bum!), não arrisca o pescoço. (SABOTAGE, 2000, faixa 9, 5’29”).

O rapper que narrava longas histórias em suas letras tinha histórias para contar: perdeu a mãe cedo, o irmão morreu no Carandiru, teve vários parceiros no mundo do crime, foi preso pela polícia e virou soldado do tráfico. Tudo até ser resgatado pelo rap.

Compreender a metamorfose que leva o gerente de uma biqueira (boca de fumo) da favela da Paz, para onde havia se transferido após a remoção de grande parte da favela do Canão quando da construção, em 1998, da Avenida Águas Espraiadas, depois rebatizada co- mo Avenida Roberto Marinho, a abandonar o crime para se tornar compositor, ator e um dos rappers mais conhecidos do país, continua sendo um desafio.

Críticos, pesquisadores, investigadores policias, familiares, amigos, parceiros e inimi- gos já tentaram traçar retratos parciais de Maurinho, através dos quais cada um deles ajuda a

compor a imagem caleidoscópica do mito que só faz crescer desde sua morte aos vinte e nove anos. A soma dessas visões contraditórias pode, talvez, nos dar uma ideia aproximada da real dimensão do que se perdeu com sua morte. E da medida sua salvação pelo rap. Fracasso e sucesso em doses iguais. Fracasso da sociedade e sucesso pessoal e do movimento cultural do hip hop.

Segundo João Camillo Penna, o que está em cena, no caso de Sabotage, é o papel do rap desempenhado a sua “soberania estética”, “ao ressignificar a violência a que permanece intrinsecamente ligado, dela dissociando-se como veículo expressivo, passível de «salvar» alguns por meio da música, ao simbolizar a violência que veicula”(PENNA, 2013, pp. 244- 245), no limite entre as duas faces da violência na sociedade brasileira: uma particular e outra estatal. Sabotage invade a cena cultural e traz à luz a narrativa da violência estampada na sua própria figura (em sua biografia e em seu corpo), e na representação da margem que realiza em suas canções.

Nelas, o “Maestro do Canão”, como ficaria conhecido, estabelece e visibiliza os domí- nios do delitivo a partir da exemplaridade do código de conduta que coloca em circulação. É o

ethos da margem, entre encenação e realidade, em estado ambíguo, paradoxal, bruto e puro

que aflora sob as marcas do território de ancoragem, índice de identidade e de autoridade das narrativas que Sabotage empreende.

No filme O invasor, a personagem Anísio, interpretada por Paulo Miklos, é um espe- lho da margem tanto quanto é uma sombra de Sabotage. Uma ficcionalização que deixa entre- ver as marcas da preparação das falas e da atuação do ator pelo marginal, de uma construção simbólica de representação da realidade na margem desde um saber e uma experiência nativa. Anísio, no filme, é Sabotage no mundo real e é a partir desse papel empreendido na tradução da margem, pela margem, para a equipe de produção e direção da obra cinematográfica e para o público, que se dá a invasão do mano da quebrada no mundo da cultura. Antes mesmo de seu álbum de estreia, que seria o seu único produzido pessoalmente em estúdio, essa invasão já estava se concretizando.

É o que Penna assinala como o cumprimento de uma tripla intervenção na obra cine- matográfica, da ordem de uma forma de soberania que marcaria sua trajetória na cena artísti- ca: visual, linguística e musical. Uma soberania da margem nas narrativas, pelo testemunhal e pela crônica desses espaços, sujeitos e vidas, o surgimento “das ruas e do tráfico” (PENNA, 2013, p.259) no ambiente cultural atrelado às capacidades discursivas da própria margem para transformar e ressignificar o real em linguagem:

Estetizar a linguagem do tráfico, da violência armada, como os gangsta rappers dos Estados Unidos, fornece o modelo de uma possibilidade de subjetivação para o trafi- cante ou morador de favela: marca a sua intervenção estética com os sinais de um real da morte, que ele [Sabotage] abandona ao tematizá-lo, transformando-o em pro- duto artístico – o que lhe permite deixar o tráfico, profissionalizando-se como músi- co, e significando a violência que abandona (PENNA, 2013, p. 265).

No livro Sabotage: um bom lugar (2013) publicado dez anos e dois meses depois da- quela manhã, e no mesmo mês de abril em que nascera Sabotage, o qual reúne boa parte do material documental disponível sobre o mesmo, Toni C. relembra o dia do assassinato do mú- sico, falando do lugar daquele em que, ao invés de finalmente conhecê-lo, em um show que aconteceria no Fórum Social Mundial em Porto Alegre, teve que dar ao público a triste notícia de seu falecimento (TONI C., 2013, p. 244). Ali, na biografia do rapper, entre fotos, capas de CDs, cartazes, relatos da carreira meteórica e do processo judicial que condenou seu suposto assassino, Toni C. tenta refazer a trajetória de Maurinho, como escolhe chamá-lo: o homem antes do mito. Narra, assim, a história do “Maestro do Canão”, que iria se postar numa esqui- na do planeta favela não mais para vender drogas ou garantir a segurança da boca, mas para rabiscar o real da quebrada em cadernos que a família guardou como herança e relíquia do artista.

Para Mano Brown, vocalista e líder do Racionais MC’s, Sabotage ouvia música brasi- leira da melhor qualidade, sem preconceitos: escutava Caetano Veloso, Chico Buarque, Noel Rosa tanto quanto as canções de seus pares do rap. Nessa abertura para outros âmbitos da mú- sica e do mundo, Brown identifica a malandragem de Sabota. Aí está a diferença, segundo o líder dos Racionais. Dentro do gênero, o rapper desdentado se destacou pela capacidade de improviso, que classicamente assinala os melhores MC’s do hip hop, e de apropriação de rit- mos e letras, com referências que podiam vir a frequentar diferentes variações estéticas da cultura musical. Sua canção não tinha parâmetros na cena hip hop, não se detinha nela como referência única.

Fundiu músicas de distintos gêneros: pagode, samba, rock, trilha sonora de filmes ita- lianos, tudo junto e misturado numa forma de homenagear e digerir a musicalidade brasileira e sua relação com a produção internacional, à qual não se mantinha imune. Sua peculiar ma- neira de ser lhe permitira driblar o radicalismo e o mau humor do hip hop e, mais que evitar o confronto, transitar junto aos playboys, intelectuais ou cineastas, aproximando Sabotage de diferentes públicos e setores do campo artístico, mais de dez anos antes de Criolo e Emicida, figuras que hoje redescobriram o percurso aberto por Sabotage e cujas carreiras consagradas

devem muito à disposição que demonstram em negociar e misturar o rap com ritmos e âmbi- tos diversos do ambiente cultural contemporâneo.

Sua curta carreira tornou-se o alicerce de trabalhos posteriores que hoje reverberam na cena musical (e não tão-somente no nicho de mercado do hip hop, mas como produtos cros-

sover, entre-gêneros, do mainstream cultural, amplamente divulgados e consumidos massi-

vamente, atingindo públicos não mais de maneira segmentada), conquista que pode ser exem- plificada pelo sucesso de Criolo, quem, na canção “Sucrilhos”, dá a si mesmo nota cinco en- quanto reconhece que Sabotage era “nota 10” (2012, faixa 8, 4’01”).

Com seu temperamento sempre aberto para o diálogo, o homem que tantas vezes an- dou com uma pistola na cintura conseguiu superar as reservas dos íntimos e dos estranhos para transformar-se num negociador por natureza. João Camillo Penna o define como um guerreiro da periferia armado com a palavra do hip hop (cf. 2013, p. 266), um invasor que queria fundamentalmente traduzir em sua trajetória e na representação de seu território a de- núncia da violência e da invisibilidade da pobreza da periferia paulistana.

Foi o rapper Happin Hood – negro e alto, com o rosto e as mãos marcados pelo vitiligo –, na companhia de Sandrão, membro do grupo de rap RZO, quem decidiu um dia procurar Sabotage e fazer chegar até ele, pessoalmente, o chamado do rap. Intentavam tirá-lo do crime através do hip hop, baseados na crença compartilhada amplamente dentro do movimento de que o rap salva.

Eles haviam se conhecido aos 15 anos, ainda em 1988 (TONI C., 2006, pp. 206-209; 2013, pp. 99-102), quando Sabotage e Happin Hood frequentavam os mesmos bailes e con- cursos de rap e voltavam juntos de metrô rumo a suas casas na Zona Sul de São Paulo, e fica- riam sem se ver por muitos anos até o dia em que Sabotage apareceu no camarim de uma casa de espetáculos, em 1999, onde Happin Hood (a essa altura um músico respeitado) faria um show. Ali Sabotage entregaria ao amigo uma fita cassete, tal qual fizera com Sandrão algum tempo antes. Esse ato começaria a mudar a sua vida.

O chamado do rap delimitaria um momento de mudança na trajetória de vida de Sabo- tage. Sua aptidão fora reconhecida e justificava o esforço realizado por músicos já consagra- dos no meio para encontrá-lo em uma boca de fumo de uma favela desconhecida, negociando seu afastamento do tráfico de varejo com o seu empregador e quase imediatamente adotando- o como membro de um dos mais proeminentes grupos de rap naquele momento – a Família RZO, composta, além de Sandrão, por Negra Li e por seu líder Helião –, sinalizando que Sa- botage poderia superar as barreiras de uma existência balizada pela criminalidade e pela mar- ginalização e tornar-se algo que, naquele momento, apenas se insinuaria enquanto expectativa

de que aquele talento não seria perdido prematuramente, como de costume, enquanto mais uma baixa associada ao narcotráfico e à violência nas margens.

Sabotage transformou a situação de marginalidade e pobreza desesperada da periferia em sucesso estrondoso. Transformou o jargão do crime e da cadeia em poesia rimada na ca- dência sincopada de uma base melódica e uma batida poderosa que afetaria enormemente o campo cultural brasileiro no início do novo milênio. A maioria dos depoimentos define Sabo- tage como um dos artistas mais geniais que o Brasil já teve, um Garricha do rap, um mano humilde e de atitude que iluminou mentes confusas, comparável a Chico Science enquanto talento capaz de revolucionar a cena musical.

Mas essa imagem contrasta com a do homem que portou pistola na cintura e disparou um fuzil contra os inimigos seus e da biqueira, fato que não pode deixar de sinalizar que a sua transformação em mito, a partir de sua morte, tem como prejuízo o apagamento dessa faceta de sua vida – uma faceta que define boa parte de seu discurso autoral, sua temática e sua ele- vada capacidade de estetizar tanto a margem quanto a criminalidade em seus componentes éticos mais profundos, os que se alinham com o componente delitivo que abunda nas repre- sentações da realidade que Sabotage concretiza sobre os lugares e territórios à margem.

Suas letras assumem sua autoridade narrativa e seu pertencimento (“Pra quem o rap reproduz/ O crime, que não é creme:/ Eu faço parte também”, “Sou da favela”, “não é viagem o que sei”), e encenam denúncia: “Dá desgosto, porque aqui não tem socorro”, “Sistema cão: mandou meu irmão e vários pro jaz,/ Deixando tantos por aí, tristes e infeliz/ Não quero co- mentar mas vi./ E vi o que não quis./ Não deu para interferir,/ somente redimir” (SABOTA- GE, 2000, faixa 9, 5’29”).

Seus relatos musicados realizam também no âmbito da canção o testemunho e crônica da realidade nas periferias:

Tá cruel, Deus do céu!

O gosto do fel não é doce como mel. Eu vejo um carro: Desenvolve à mil e sai... Pelo que fez, os homem vão atrás.

Bem como em:

Finado Xó: morreu metendo o cano. Aquele tinha febre. Cabra da peste, Aos dezessete: “Ou dá ou desce!” (Éh!) Ficou muito encanado. Comento o fato, Até hoje relato com o Nonato.

Outros trechos continuam a revelar esse procedimento do cara de atitude, do sujeito cujo comportamento corresponde ao que os códigos de uma cultura grupal (da ilha urbana) espera dele: “Mas vô falá que sim,/ Já dei uns doisim.”, bem como iluminam dados do próprio código ético marginal: “humildade é minha lei”, “Cada lugar um lugar, cada lugar uma lei, okey?/ Só não dever para ninguém, porém, eu sei./Respeito é pra quem tem!”, “Pôr a mão no fogo pela lei, não, jamais”, “Paz, fraternidade, sem tirar ninguém./ Mas pode ter certeza:/ Respeito é pra quem tem!” e tanto a reflexão de sua salvação pelo hip hop quanto das expecta- tivas para o futuro como no verso “Eu sei que vou além”, da canção “Respeito é pra quem tem” ou em

Quero ao menos entender, tentar viver a vida. Estrela da periferia. Brilha a luz divina. Não me safei.

Perdão, talvez lucrei, okey? Não sou a bola da vez. (...)

Tô devagar, tô satisfeito (SABOTAGE, 2000, faixa 9, 5’29”).

Assim, não como mito, mas como homem, portador de uma competência autoral capaz de realizar através do discurso musical a representação da margem, se poderia explicar por- que, se no meio artístico ele pudesse ser uma unanimidade, querido tanto como sujeito como objeto de consumo do mercado cultural, Sabotage ainda guardava os sentidos despertos e a sensação de alerta de quem teme pela própria vida.

Sua consagração não legitimou toda a periferia paulistana. Seu sucesso não poderia transformá-lo no agente do resgate (ou salvação) amado por todos indistintamente. Sua ima- gem de indivíduo salvo pela cultura não apagaria seu passado, não o tornaria imune às “tre- tas” antigas e às balas de seus velhos inimigos.

O que se pode afirmar é que enquanto vivo abriu portas, e sinalizou caminhos. Foi par- te relevante da cena cultural de seu tempo e participou do momento de maior expressividade e visibilidade do movimento hip hop.

Pouco menos de três anos se passaram desde a visita de Happin Hood e Sandrão, du- rante os quais Sabotage tinha aproveitado para participar de dois filmes, fazer mais de vinte letras e colaborar na gravação de uma quinzena de músicas de artistas tanto do mundo do hip hop quanto associados a outros gêneros. Tornara-se uma figura de extrema importante na cena do rap e no movimento hip hop, de valor comparável ao de artistas com mais de uma década,

na época, de carreira, como Racionais MC’s e RZO, ou equiparável ainda ao prestígio e status daqueles que participaram do movimento nos seus primórdios, como Thaíde e DJ Hum.

Mauro Mateus dos Santos foi a encarnação de um dos preceitos máximos da doutrina do movimento hip hop brasileiro e de toda a “cultura da margem”: a cultura salva. E, em seu caso, a sua salvação viria modificar o estado das coisas, mudando inclusive o próprio hip hop: era o momento de abertura do movimento, principalmente de seu componente musical. Sabo- tage surge em um período de aproximação entre o rap e o mercado, de compatibilização entre as propostas do movimento e as demandas do business.

A ex-sogra, Dona Ana, tinha previsto sucesso e lhe garantira o corpo fechado. Sabota- ge acreditava nas forças que não conseguia entender. Sobrevivente do inferno, crescido no meio da maldade, cercado por um cotidiano problemático e violento, o Maestro do Canão soube identificar e traduzir em canções os sofrimentos e a insegurança que ameaçam os po- bres e pretos. Mas o encanto da rezadeira não seria suficiente. Ao contrário da imunidade e do encantamento contidos nas palavras rituais,

...Senhor do Bonfim, meu Bom Jesus da Lapa, que te livre de tudo que for ruim, da praga do mau vizinho, da inveja e da ambição, quebra a força do inimigo; o inimigo não tem força pra poder te ofender, nem de noite nem de dia, sete vela te alumeia, com as três vela benta da Santíssima Trindade. (...) Deus te salve, casa santa.... Teu peito será de aço, tuas costa será de bronze, nem faca, nem bala, nem corrente [teu corpo irá machucar]... (SABOTAGE, 2003, vídeo clipe)

o que fortalecia Sabotage era mesmo o rap. Mas a rima não pode conter o assalto do lado in- certo da vida do qual também fazia parte. Morreu pelo crime. Como ele próprio já cantava em “Rap é compromisso”: “é sempre um mano dos nossos”. Seus inimigos não esqueceram do seu passado.

Um negro morto de maneira violenta está caído na calçada. Sua mulher se aproxima e pega as mãos do marido, o acaricia, sussurra frases. Ao seu lado, os policiais colhem evidên- cias que só serão levadas ao tribunal sete anos depois. A música perdia uma das dicções mais promissoras do rap nacional, o mano que conhecia o certo e o errado, quem tinha contado a história da sua vida e da vida coletiva da margem: Mauro Martins dos Santos, o Sabotage.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: No sentido da margem... Mas em que sentido?

O que se espera destas linhas que encerram este trabalho acadêmico é que as mesmas se encarreguem de sinalizar o resultado de dois anos de uma pesquisa que buscou investigar um momento em que, com suas peculiaridades, tanto no Brasil quanto na Argentina a margem esteve sob o foco das atenções tanto do mercado cultural quanto das instâncias acadêmicas, seja na música ou na literatura, objetos do exame aqui empreendido, seja nas mais diversas formas que a cultura assume, tal como na produção cinematográfica, ou na teledramaturgia, ou mesmo nas montagens teatrais, saraus, espetáculos, shows e festas

Esta dissertação intentou investigar alguns dos objetos culturais, os quais têm como re- ferência a margem, pela delimitação de certos sentidos que assumem no recorte temporal aproximado de uma década, entre os anos de 2001 e 2010, tomando-os como valiosos marcos para o entendimento acerca das conquistas alcançadas pela periferia no campo cultural divisa- das naqueles primeiros anos do presente século. A partir de uma chave de leitura que privile- giasse a ancoragem territorial e identitária para a produção artística e a atuação política das margens, buscou-se realizar uma reflexão sobre o caráter de uma produção simbólica que co- locou em questão as bases do que se tem por cultura no contemporâneo.

Averiguou-se que, através da perspectivação e da ampliação das noções de cultura nas sociedades latino-americanas, o protagonismo periférico no mercado de bens culturais operou um processo de ampliação da percepção acerca do que se vem produzindo fora dos circuitos centrais de disseminação, revelando realidades até então pouco perceptíveis fora das frontei- ras que demarcam os espaços marginais de grandes aglomerados urbanos como São Paulo e Buenos Aires e suas regiões metropolitanas.

Não que não se tenha antes, nas décadas anteriores ao recorte temporal aqui privilegi- ado, revelado ou buscado representar as margens da sociedade. O que se pode perceber, afi- nal, é que nesses primeiros dez anos do século XXI, houve uma redefinição das expectativas das próprias margens frente a esse emprenho representacional, ou seja, os sujeitos da margem pretenderam, de forma bastante produtiva e com maior aceitação (talvez sem o mesmo exo- tismo que caracterizara as tentativas anteriores), tomar as rédeas do processo. E, como fica claro ao longo deste trabalho, houve avanços significativos no sentido da democratização do ato de representar (e de representar-se, vale sublinhar).

Nesse empenho, os sujeitos subalternos tomaram a palavra e se fizeram escutar, ou lançaram mão da pena e foram lidos, expressando-se através de seus próprios meios, iniciati- vas e valores. Mesmo estando historicamente alijados do acesso ao campo cultural por pro-

longadas décadas, puderam neste período demonstrar sua relevância no panorama sociocultu- ral.

Não são poucos os trabalhos que, nos dois países, ousaram buscar no espaço exterior ao cânone alguma das inúmeras atividades que pudessem descrever de maneira mais abran- gente o ambiente sociocultural que se processa no contemporâneo a partir do lugar de mirada das periferias. Um contemporâneo no qual as iniciativas artísticas, individuais e coletivas,

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 103-130)