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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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NO SENTIDO (de) DA(r) MARGEM (à literatura e à música):

rap, cumbia villera, Literatura Marginal e Realismo Atolondrado

THIAGO JOSÉ MORAES CARVALHAL

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Thiago José Moraes Carvalhal

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neo-latinos - Literaturas Hispânicas).

Orientador: Prof. Doutor Ary Pimentel

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Carvalhal. - Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2014. 130 f.; 31 cm.

Orientador: Ary Pimentel

Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2014.

Referências Bibliográficas: ff. 100-116.

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CARVALHAL, Thiago José Moraes. No sentido (de) da(r) margem (à literatura e à música): rap, cumbia villera, Literatura Marginal e Realismo Atolondrado. Rio de Janeiro, Universida-de FeUniversida-deral do Rio Universida-de Janeiro, FaculdaUniversida-de Universida-de Letras, 2014. Dissertação Universida-de Mestrado em Litera-turas Hispânicas.

A partir de construções simbólicas sobre cultura e realidade, concebidas no âmbito das produções discursivas da literatura e da música, pode-se divisar o surgimento de realizações no sentido de promover reapropriações e ressignificações com o intuito de superar os silêncios impostos à margem e aos subalternos. O rap, a cumbia villera e a literatura se apresentam como expedientes privilegiados na investigação de narrares sobre a vida e a experiência nas periferias. Como estratégias de autorrepresentação, assumem a condição de atualizar e colocar em circulação códigos e valores do sujeito periférico, dando forma a imagens persistentes sobre a vida e a cultura do subalterno nas margens das grandes cidades latino-americanas. Abordando a referida produção como formas discursivo-imagéticas, a presente dissertação pretende realizar uma investigação das temáticas e das narrativas da periferia e do subalterno através do processo de autorrepresentação dos sujeitos marginais pelos vieses dos discursos literários e musicais ancorados nos espaços periféricos das cidades de São Paulo e Buenos Aires. Operamos o estudo do ethos dos moradores das villas e favelas evidenciado, respecti-vamente, nas obras de ficção de Ferréz (cognome do paulistano Reginaldo Ferreira da Silva), e Washington Cucurto (pseudônimo do portenho Santiago Vega) e na produção musical de Damas Gratis, Flor de Piedra (cumbia villera) e de Sabotage (hip hop), no intento de contribu-ir com a análise de vozes subalternas e fenômenos culturais que têm sido pouco abordados, e de forma a aproximar movimentos culturais e territórios como lugares de leituras distintas, mas complementares, para a investigação da produção literária, artística e cultural na América Latina. A partir do método comparatista e utilizando-se do arcabouço teórico dos Estudos Culturais, privilegiados aqueles conhecimentos relativos aos Estudos Subalternos, e da Teoria Literária, pode-se divisar o retorno, no contemporâneo, às práticas literárias relacionadas ao realismo e a adesão aos expedientes da autoficção como modo de construção de estratégias de acesso ao campo artístico e cultural por parte de sujeitos marginais.

Palavras-chave: Cumbia Villera. Rap. Literatura Marginal. Realismo Atolondrado.

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rap, cumbia villera, Literatura Marginal e Realismo Atolondrado. Rio de Janeiro, Universida-de FeUniversida-deral do Rio Universida-de Janeiro, FaculdaUniversida-de Universida-de Letras, 2014. Dissertação Universida-de Mestrado em Litera-turas Hispânicas.

Desde construcciones simbólicas sobre cultura y realidad, concebido en el ámbito de las producciones discursivas de la literatura y de la música, uno puede discernir la aparición de realizaciones para promover reapropiaciones y resignificaciones a fin de superar el silencio impuesto sobre el margen y el subalterno. El rap, la cumbia villera y la literatura se presentan como expedientes privilegiados en la investigación de las narraciones sobre la vida y la expe-riencia en las periferias y, como autorrepresentación, asumen la condición de actualizar y po-ner en circulación los códigos y los valores del sujeto periférico, conformando imágenes per-sistentes de la vida y cultura de los subalternos en los márgenes de las principales ciudades de América Latina. Por lo tanto , esta tesis propone llevar a cabo la investigación sobre los te-mas, las narrativas de la periferia u del subalterno por medio de la autorrepresentación de los sujetos marginados por los sesgos de los discursos literarios y musicales anclados en las zonas periféricas de las ciudades de São Pablo y Buenos Aires, operando el estudio del ethos de los habitantes de las villas y favelas evidenciando, respectivamente , en las obras de ficción Fe-rréz (apodo Reginaldo Ferreira da Silva ) y Washington Cucurto (seudónimo Santiago Vega) y en la producción musical Damas Gratis, Flor de Piedra (cumbia villera ) y Sabotage (hip hop), con la intención de contribuir con el análisis de las voces subalternas y fenómenos cul-turales que han sido poco abordados de manera a acercar los movimientos culcul-turales y territo-rios como lugares de lecturas diferentes, pero complementaterrito-rios, para la investigación de la producción literaria, artística y cultural de América Latina. A partir del método comparativo y el uso del marco teórico de los estudios culturales, privilegiándose los conocimientos de los Estudios Subalternos, y de la teoría literaria, se puede percibir el retorno, en el contemporá-neo, de las prácticas relacionadas con el realismo literario y la adhesión a los expedientes de la autoficción como una manera de construir estrategias de acceso al campo artístico y cultu-ral de parte de sujetos subalternos.

Palabras-clave: Cumbia Villera. Rap. Literatura Marginal. Realismo Atolondrado.

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CARVALHAL, Thiago José Moraes. No sentido (de) da(r) margem (à literatura e à música): rap, cumbia villera, Literatura Marginal e Realismo Atolondrado. Rio de Janeiro, Universida-de FeUniversida-deral do Rio Universida-de Janeiro, FaculdaUniversida-de Universida-de Letras, 2014. Dissertação Universida-de Mestrado em Litera-turas Hispânicas.

From symbolic constructions of culture and reality, conceived within the discursive production of literature and music, one can discern the emergence of achievements that pro-mote reappropriations and reinterpretation in order to overcome the silence imposed on the margin and the subaltern. The rap, the cumbia villera and literature present themselves as privileged means for the investigation of the narratives about life and experience in the pe-ripheries. As self-representation strategies, these assume the condition to update and put into circulation codes and values of the peripheral subject, forming persistent images of the life and culture of the subaltern in the margins of the major Latin American cities. Approaching that referred production as discursive-visual forms, this dissertation intends to conduct re-search into the themes and narratives of the subaltern and of periphery through the self-representation of marginalized subjects by biases of the literary and musical discourses an-chored in the peripheral areas of the cities of São Paulo and Buenos Aires We operate the study of the villas and favelas residents ethos evidenced, respectively, in the fictional works of Ferréz (cognomen of Reginaldo Ferreira da Silva ), and Washington Cucurto (pseudonym of Santiago Vega) and Damas Gratis, Flor de Piedra’s ( cumbia villera ) and Sabotage’s ( hip hop) music production with the intent to contribute to the subaltern voices and cultural phe-nomena analysis that have been barely accosted with the purpose of approaching cultural movements and territories as places of different, but complementary, readings for the investi-gation of the literary, artistic and cultural production in Latin America. From the comparative method and using the theoretical framework of Cultural Studies, those privileged knowledge of the Subaltern Studies, and literary theory, one can envisage the return on contemporary practices related to literary realism and adherence to the expedients of autofiction as a way of building strategy access to the artistic and cultural field.

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Manifestar minha gratidão, tendo em conta a longa trajetória trilhada até aqui, é tarefa árdua e me obriga a refazer um percurso afetivo que remonta aos tempos de meus avós. Uma história de recomeços, que principio a divisar aos poucos enquanto escrevo estes agradeci-mentos, os quais escolho iniciar com minha avó paterna que não conheci, falecida muito antes de meu nascimento e a quem sou eternamente grato, pois foi através de seu esforço, vovó Etelvina, que aprendeu a ler o jornal sozinha em idade avançada, portuguesa batalhadora e obstinada, em seu investimento pessoal, que pude ter o pai que tenho. Agradeço também a seu marido, meu falecido avô Manuel, analfabeto, duro e trabalhador, que deixou sua pátria de-vastada pela miséria no pós-guerra e com sua família aportou nestas terras brasileiras em bus-ca de melhores dias e um lugar para criar dignamente seus filhos. Um recomeço repleto de penas e marcado pela luta diária do qual me considero parte. Sinto saudades dos tempos de infância e de seu sotaque carregado, de sua horta e de seu cajazeiro, e choro de saudades en-quanto escrevo estas linhas porque não pude dizer no devido tempo o en-quanto me orgulho de carregar seu sobrenome.

À minha família paterna, tios, tias, e à multidão de primos e primas que nas ocasiões festivas e nos finais de semana em São João de Meriti se reuniam em uma algazarra que ainda hoje me preenche de alegria e lembranças. Tia Ana, professora e exemplo, e tia Aurora, am-bas cozinheiras de mão cheia e risadas contagiantes: muito obrigado! Tio Luiz, vascaíno fer-renho, e sua esposa tia Sandra, que sempre receberam a mim e a minha irmã em sua casa nas animadas tardes de domingo em que brincávamos no quintal com os primos: obrigado! E obrigado a todos os Carvalhal, que fazem parte desta trajetória.

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copos de café preto nas manhãs barulhentas de Nilópolis, dos cafunés que ganhei com a cabe-ça pousada em seu colo e dos palavrões proferidos em segredo, para me fazer rir até chorar (sempre rio quando lembro que você me disse: “coração de mãe é uma merda!”). Te amo e agradeço, agradeço, agradeço... Força! Vamos – eu, você e sua bisnetinha – rir muito ainda. Pode contar com isso!

Sou muito mais que grato a meus pais, que em sua separação multiplicaram os amores, os seus, os meus e os nossos com um “paidrasto” e uma “mãedrasta” e com irmãos que com-partilham de toda essa ruidosa e gregária baderna familiar sem limites para a fraternidade e o companheirismo.

Não posso deixar de agradecer à minha irmã Carol, seu marido Leon e minha sobrinha querida Helena. Obrigado por ser, mana, essa pessoa enérgica e doce, mulher guerreira e de notável dedicação em tudo o que faz. Sua presença torna a vida mais completa, mais fácil de ser vivida. Seu bom gosto e olhar crítico são invejáveis e sua sinceridade uma característica que poucos têm a coragem de demonstrar, e menos ainda de exercer, com a presteza que lhe é característica. Espero que nossas filhas possam ser grandes amigas, primas-irmãs, e compa-nheiras para sempre. Amo vocês!

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o melhor legado de que disponho. Obrigado por me proporcionar com todos os sacrifícios o melhor que pôde, e aquilo que eu sei que você mesmo não teve, na sua vida de imigrante sem luxos, de superação e conquistas. Espero poder fazer, no mínimo, o mesmo para minha filha: quero ser para ela o pai que você é para mim. Não esquecerei jamais dos finais de semana a cada quinzena para os quais eu mesmo arrumava minha mala na expectativa de estarmos jun-tos. Tampouco das nossas longas viagens de férias a três, eu, você e Carol, nas quais, percebo agora, o que menos importava era o destino, sendo o trajeto o realmente essencial naquilo que, naqueles momentos, representava: uma oportunidade de estarmos juntos enquanto famí-lia, uma coisa preciosa que me inunda de doces memórias e de uma ponta de saudade e me-lancolia. Pai, você é o melhor amigo que eu poderia querer. Te amo!

Obrigado a todos os amigos, colegas e companheiros de caminhada! Não tenho cora-gem de nomeá-los por estar consciente do risco de esquecer alguém. Sem vocês a vida não vale nada, sem o apoio e o carinho dos amigos certamente o trajeto seria muito mais penoso. Valeu galera!!!

Agradeço também a meus professores. Aos que não lembro o nome mas guardo a lembrança, um sincero pedido de desculpas. Sou especialmente grato ao professor Cunha, dos tempos de São Bento, quem me motivou sem nunca ter sabido a trilhar o magistério. Aos mestres da Faculdade de Letras meu sincero obrigado, sobretudo à Teresa Salgado pela opor-tunidade dada nos primeiros passos na carreira acadêmica e pela paciência infindável para comigo em meus momentos de dificuldade, nos quais pude encontrar sempre uma ou duas palavras de motivação. Você, Teresa, faz parte desse trabalho.

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maior presente: nossa linda filha Teresa. Sem você ao meu lado eu não teria chegado nem perto. Seu apoio e sua paciência nos momentos difíceis, quando tudo parecia querer desmoro-nar, quando as pernas fraquejavam, quando eu não acreditava, foram fundamentais para que esse trabalho se tornasse realidade. Onze anos juntos parecem segundos marcados no silencio-so precipitar de florezinhas e no inaudível farfalhar de borboletas... Amarelas.

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INTRODUÇÃO ... 1 

CAPÍTULO I.  Subalterno, marginal: Um problema na origem (e uma justificativa) ... 4 

1.1. Um ambiente favorável ... 11 

CAPÍTULO II. Representação e Autorrepresentação nas margens ... 18 

2.1. A experiência da (auto)representação na margem: Os expedientes da autoficção e do realismo como procedimentos literários para a formulação do discurso marginal . 20  2.1.1. A Literatura Marginal e o Realismo Atolondrado: consolidando as categorias .... 27 

2.1.2. Entre tradição e vanguarda: dos novos realismos a um “realismo marginal” ... 34 

2.1.3. Revelando outros “Eus” na margem: Autoficção, identidade e performance ... 61 

2.2. Intervenções literárias e extraliterárias: ativismo social nas periferias ... 72 

2.2.1. Editora cartonera: livros como reação à crise ... 73 

2.2.2. 1daSul, Editora Literatura Marginal e Selo Povo: Capão na moda e Literatura Marginal no livro ... 75 

CAPÍTULO III. Identidade e pertencimento na cumbia villera e no hip hop: culturas juvenis . 79  3.1. Pablo Lescano e a cumbia villera como narrativa sônica das margens na Argentina .. 84 

3.2. Sabotage e a invasão das margens e do hip hop na cena cultural brasileira ... 89 

CONSIDERAÇÕES FINAIS: No sentido da margem... Mas em que sentido? ... 96 

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INTRODUÇÃO

O reconhecimento das elaborações da margem, enquanto produção discursiva realiza-da a partir de contextos marcados pela narrativa musical e literária como objetos de cultura (nas suas distintas formas de expressão estética) e dos esforços para a consagração de carrei-ras, obras e movimentos culturais, como legítimos e relevantes objetos de estudo tem o mérito de privilegiar uma produção não canônica naquilo que ela tem de força irreprimível, inovado-ra, reconfiguradoinovado-ra, constituída a partir de sucessivos silenciamentos e fragmentações, ruptu-ras e desvinculações a cada passo percorrido em direção ao reconhecimento, com suas estra-tégias de luta e afirmação de lugares não hegemônicos.

Este trabalho pretende contribuir para a análise das vozes subalternas e dos fenômenos culturais que têm como locus a periferia, sua temática, bem como do subalterno e da violên-cia, as quais têm sido pouco abordadas de forma a aproximar movimentos culturais e territó-rios como lugares de leituras distintas, mas complementares, para a investigação da produção literária, artística e cultural na América Latina. Esforços para a perspectivação e iluminação

das construções simbólicas têm sido feitos de maneira estanque e isolada, dando conta e privi-legiando separadamente ora a cumbia villera ora o hip hop, ora a literatura contemporânea brasileira ora a argentina, em suas pesquisas e discussões.

Dessa maneira, o esforço de congregar sob o mesmo olhar esses dois lugares geográfi-cos (as periferias urbanas de Buenos Aires e de São Paulo) tem a relevância de, mesmo sob o risco das aparentes divergências e assimetrias das particularidades de culturas e espaços tão distintos, trazer para o âmbito da academia produções e relatos das memórias e de um estilo de vida que falam em uníssono no esforço de revelar experiências coletivas, temáticas e ima-gens próprias do espaço do conurbano1. Tal atitude dá visibilidade a um novo modo de repre-sentar os setores populares que, a partir de suas próprias criações, constituem-se como sujeitos do discurso em tentativas de legitimação (tanto por balbucios quanto através dos elaborados produtos culturais que engendram) de um contingente de indivíduos que povoam de novas narrativas cenários nem sempre iluminados, nas sombras, às margens das instâncias de consa-gração e pertencimento ao que se reconhece prototipicamente como cultura.

Sem dignidade como objetos de pesquisa, a cumbia villera e o hip hop movimentam extensos contingentes humanos em seus bailes e eventos. Como produção musical são

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sumidos e disseminados dentro dos limites das fronteiras das favelas e das villas e para além delas, no rádio e na televisão, apesar dos esforços de criminalização e silenciamento que en-frentam por parte da mídia corporativa e do Estado. Rejeição também sofrida pelas narrativas e textos que atravessam a fronteira da margem e buscam seu espaço na série literária e no campo editorial.

Como se processa essa disseminação? Como se dá a sua concepção como objeto cultu-ral? Com que estratégias buscam a consagração, o reconhecimento e o prestígio cultural e social? Que temáticas e procedimentos recuperam e manifestam enquanto colocam em circu-lação as suas crônicas da vida na periferia?

Respostas a essas perguntas, ainda que apenas algumas possam ser respondidas neste trabalho, podem ser cruciais para o estudo destas manifestações em reconhecida condição de vulnerabilidade cultural que, em seus atos de fala e em suas produções estéticas, constroem um corpo discursivo no qual se articulam a ressignificação de uma identidade e a reivindica-ção dos códigos e formas de convivência de determinadas redes sociais que vivem sob uma lógica de poder e um regime de socialização diferenciados.

Estas formas distintas de expressão nos revelam uma rede esquecida de histórias, me-mórias e imagens que acabam por dar existência, para os leitores e ouvintes, à realidade dos subalternos, moradores de espaços como San Fernando e Constitución (Buenos Aires) ou Ca-pão Redondo e as favelas do Canão e do Boqueirão (Zona Sul de São Paulo). É das brechas e dos não-lugares onde começam a falar, rimar, cantar e narrar os subalternos em nem sempre toscos balbucios que começam a se manifestar a nova dicção da música e da literatura do sé-culo XXI.

Respostas às perguntas formuladas acima podem levar mais além: podem gerar refle-xões sobre a mais recente produção cultural latino-americana, deixando entrever o papel dos diferentes sujeitos que negociam e lutam no complexo campo que constitui a cena artística na contemporaneidade. Podem ainda ajudar no processo de problematização dos esquecimentos, das lacunas da memória que nos impedem de ler o presente, a partir do momento em que te-nhamos a coragem de aceitar o embate crítico envolvido na ação de pensar os locais de dispu-ta da cultura que hoje colocam em diálogo as margens da cidade e da sociedade e a academia. Como tema e objeto, esta dissertação recorta o estudo das temáticas e narrativas da pe-riferia e do subalterno, no interior do processo de agenciamento cultural, através dos proces-sos de autorrepresentação de sujeitos marginais no contexto das culturas juvenis da bailanta (mais especificamente, o conjunto de práticas associadas ao subgênero musical cumbia

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CAPÍTULO I. Subalterno, marginal: Um problema na origem (e uma justificativa)

Durante os dois anos em que a pesquisa que daria origem a esta dissertação estava sendo empreendida (e mesmo antes, ainda durante a iniciação científica, quando a mesma apenas dava seus primeiros passos), foram inúmeras as vezes em que, na apresentação de tra-balhos, houve questionamentos quanto às categorias e marcos teóricos que, já naqueles mo-mentos, eram estruturantes para os rumos que se pensou dar às discussões sobre todo o uni-verso temático que tem a periferia e os sujeitos que nela atuam como objetos centrais de in-vestigação. Não raros foram os episódios em que surgiram perguntas ou reprimendas acerca da escolha de se usar termos tais como “margem”, “marginal” e, principalmente, “subalter-no”.

Nesses momentos, mesmo afirmando-se que a mirada para a investigação se fundava nos marcos teóricos dos Estudos Culturais, e nestes, principalmente, aqueles relativos aos Estudos Subalternos, no movimento de recomposição que empreendem através da substitui-ção (do uso) do conceito de classe pelo conceito de sujeito (CIOTTA NEVES, 2010, p. 60),

éramos questionados quanto à pertinência da opção por categorias que continuamente traziam à discussão, mais que sendo artifícios de nomeação ou modelos teóricos para determinar luga-res específicos (como, por exemplo, no caso das “ilhas urbanas” situadas no limiar da cidade formal, conceitualmente bastante melhor aceito) ou a um conjunto particular de sujeitos e atores sociais (que operam naqueles espaços), sentidos nem sempre pacíficos, e na análise de muitos interlocutores, carregadas ainda de significados pejorativos, preconceituosos e estig-matizantes (possivelmente ainda atrelados ao problemático par exclusão-inclusão que parece fundamentar grande parte da discussão “habitual” sobre a temática da margem). Isso obrigou continuamente, como réplica, a tomada de uma posição em defesa daquelas escolhas primei-ras.

Assim, o que se pôde perceber foi que, como esperado, não só a escolha de objetos de pesquisa “problemáticos” necessitava de defesa e esforço de argumentação para se justificar a pertinência dos mesmos (fossem eles o rap ou a cumbia villera, a Literatura Marginal ou o

Realismo Atolondrado, as favelas do Capão Redondo, do Canão, a villa San Fernando ou a

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Afinal, tal fato acabou por acenar, no âmbito do texto desta dissertação, com uma ne-cessidade de, para além de se pensar o “estado da questão” acerca dos limites teórico-críticos dos conceitos escolhidos como marcos para a elaboração da mesma, assumir a empresa de também delimitar mais detida e cuidadosamente algumas categorias e seus usos aqui. Desta maneira, esta seção dá conta de, primeiramente, assumir o quanto antes a tarefa de iluminar duas daquelas categorias “questionáveis” – as de subalterno e de marginal – que possam gerar controvérsia mais adiante para que se possa, em seguida, propor usos para essas construções teóricas para além da “caixa de ferramentas”, de modo que se possa fazer, sim, um “resgate do[s] significante[s]” sinalizando que, diversamente do que indica Gilles Deleuze em interlo-cução com Michel Foucault no texto “Os intelectuais e o poder”, publicado no livro

Microfí-sica do poder2 (FOUCAULT, 1984, p.71), este nos é imprescindível, por dar destaque aos agentes e sujeitos de uma teia de sentidos cerzidos para a construção de subjetividades que carregam marcas próprias dos territórios de onde emanam e de todo um código de valores a estes atrelados, elaborados no entorno da adstrição ao grupo de convívio – ou a “nebulosa afetiva” como delineia Michel Maffesoli (2010).

Encena-se a esta altura o sentido dicotômico que prevalece em uma discussão que traz à tona as disputas que realizam aqueles espaços e sujeitos tomados como foco de análise, em função de outros lugares e atores no meio social – binarismos que distinguem a cidade formal de sua periferia, o hegemônico do subalterno, o formal do informal, o massivo e o popular do erudito e o centro da margem, para ensaiar alguns pares que aparecerão em profusão neste

2 A ênfase do que compõe a discussão dos dois autores está de fato na atuação, enquanto ação combativa, do intelectual e da teorização enquanto “instrumento de combate” e, assim, da proposição de alguns desdobramen-tos do certame acerca da dialética “teoria-prática” (FOUCAULT, 1984, p. 69) e da relação entre domínios – da teoria, “sempre local” – e suas aplicabilidades práticas em outros domínios “próximos”. A ação, “ação da teoria, ação de prática” (ibidem) seria a emenda da atuação de um novo tipo de intelectual que pudesse superar a máxi-ma máxi-marxista que vaticina sobre a necessidade de mediação da máxi-massa pelo intelectual, que a pudesse (e devesse) representar (porque ela mesma não o poderia fazê-lo). Ou seja, por aquilo que Foucault exprime de modo con-tundente ao dizer: “Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem” (op. cit., p. 72).

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trabalho. Em primeira análise, tais dicotomias realizam uma função estrita no sentido de defi-nir a distinção do caráter e dos limites do alcance das atuações referentes a cada um dos entes desses pares; contrários de um jogo de espelhos que acaba por atribuir para cada um deles a posse de características distintas e excludentes, o qual associa a um, em termos valorativos, caracteres positivos e ao seu par o reverso, ou seja, características radicalmente opostas e ne-gativas.

Na realidade, no entanto, o que se quer é realizar a desconstrução de uma ideia radical de pares rigidamente dicotômicos e propor uma forma de abordagem que, se ainda sinaliza que estas distinções são relevantes3, também se oriente à leitura das dinâmicas e resultados

dos contatos entre os mesmos. É a partir das interações surgidas nas fronteiras materiais e imateriais que demarcam margem e centro, subalterno e hegemônico, que passam a vigorar identidades e autoridades em constantes disputa e negociação pelo uso da narrativa, bem co-mo dos sentidos de sua circulação e da procedência e destino desses relatos. Dessa maneira, novos papéis e lugares passam a ser reivindicados como referenciais “de onde” e “para onde” emanam as elaborações discursivas no contemporâneo.

Como fronteira e enquanto “entre-lugares” – como os nomeia Homi Bhabha, enquanto lugares in-between de colaboração e questionamento (2010, p. 18) – e “zonas de contato”4 (para Mary Louise Pratt), nos quais se hibridizam as expressividades e, principalmente, são negociadas trocas simbólicas, estes contextos de interação atuam como “ponto que demarca a separação entre os sujeitos e grupos, mas (...) também [como] cenário que os põe em contato” (PIMENTEL, s.d., p. 3). Mais que lugares físicos ou geográficos, delimitados no espaço e contingentes, estes espaços dialógicos assinalam um “novo lugar de produção da cultura do presente, (...) de onde emergem os interstícios do mundo pós-moderno [e onde] as identidades e os interesses grupais são definidos e os valores culturais são negociados” (PIMENTEL, s.d., p. 4).

É necessário lembrar que, como sinaliza Burke (2010, p. 17), a fronteira entre as várias culturas (do povo, das elites; popular, letrada) é vaga e seria mais proveitoso concentrar esfor-ços na interação e não na divisão existente entre elas. E ainda: deve-se ter em mente que seja qual for a cultura, em relação a suas especificidades distintivas, esta coexiste com as outras no

3 Como será explicitado mais adiante, quando da delimitação da noção relativa à “margem” que será adotada neste trabalho, para a qual a definição distintiva tem ainda grande valia.

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meio social (segundo o preceito de policulturalidade defendido por Edgar Morin), projetando-se e atuando muitas vezes em interação e diálogo (afirmado no conceito bakhtiniano), em cir-cularidade (noção de Carlo Ginsburg, a partir de Bakhtin, e retomada por Burke) e por hibri-dação (García Canclini), na fratura de dicotomias e binarismos estanques, assim como no pre-enchimento de lacunas e lapsos que são característicos a uma leitura monológica do meio só-cio-histórico.

Não se pretende, no entanto, a desconstrução de categorias, nem estimular com essen-cialismos as contradições para a “crítica do sistema” – como apregoam alguns teóricos, como John Beverley, na afirmação da dicotomia subalterno/hegemônico pela incompatibilidade entre a luta da esquerda e “a globalização e a hegemonia neoliberal” (apud NOLASCO, 2010, p. 56). Delimitar o foco de análise sobre o subalterno, ou para fins deste trabalho na equiva-lência deste com o marginal, é apontar os arsenais discursivos e teóricos para um contingente de sujeitos que tem a representação sobre si (enquanto realizada por um outro) como um ex-pediente historicamente problemático, e na autorrepresentação um campo de experimentação para a sua própria redefinição – e na alteração de papéis, vozes, gostos, valores na margem e

fora dela – frente ao outro que detivera o poder de fazê-lo até então.

E neste processo de delimitação, nuançar a noção de um sujeito que dominaria, en-quanto hegemônico e letrado, a faculdade de representar a si e ao outro seria uma forma de estabelecer a heterogenia de uma relação de poder que, no contemporâneo, encontra-se em intensa disputa pelo direito à narrativa, ou neste caso, de narrativas especificamente assenta-das nos territórios assenta-das periferias de Buenos Aires e de São Paulo e nas culturas desses espaços nunca homogêneos, que agora cantam e escrevem suas vidas a partir de iniciativas próprias.

Pensar em uma cultura da margem estabelece a necessidade de deter-se na definição da categoria “margem” para que se possa, a partir deste lugar (nem sempre espacial), resgatar o sentido que adquire uma cultura que acena estar particularmente associada a um lugar de origem, articulada na orla e nos limites de uma outra cultura “do centro” e portanto, definidas ambas referencialmente. Margem e periferia, assim, caracterizam um ambiente e acabam por contextualizar um conjunto de sujeitos, produtos culturais e construções simbólicas no interior de um âmbito de proveniência externa, pertencente a outro mundo (ou, nas palavras do rapper Criolo, em sua canção “Grajauex”, outro “universo”5), na vizinhança – e portanto bastante

próximo, com limites comuns, e principalmente, acessíveis e franqueados a ambos lados

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tes limites – do centro, seja este a cidade formal, o campo artístico, ou mesmo os conteúdos culturais hegemônicos.

De maneira semelhante a como, tradicionalmente, se define massa e subalterno, atra-vés da noção de margem acaba-se por operar valorações a partir das distinções de status entre referenciais fundados em medidas qualitativas e em pares contrários. Verso que exigiria como anverso acepções (mensuráveis?) apreciadas, aprovadas e, mormente, dignificadas de espaço, sujeito, classe, cultura, e outros bens, propriedades ou valores para a resultante definição por contraste de tudo aquilo que tivesse como propriedade essencial, numa mirada hierárquica verticalizada, a faculdade de ser associado ao baixo, ao tosco e ao não refinado.

Factualmente, associa-se margem à pobreza e à defasagem em relação a uma referên-cia positiva (eminentemente econômica, territorial e cultural) (NASCIMENTO, 2009, p. 143), sempre sob o perigo de se redundar na problemática polêmica acerca da exclusão. Embora algumas vezes os termos marginalização e exclusão sejam tomados por equivalentes, o uso de “exclusão” e suas derivações (excluído, por exemplo) será aqui evitado pois esta definição quando se manifesta encontra-se habitualmente atrelada a um processo de vitimização que

deve ser, e será no decorrer deste trabalho, esquivado por perversamente destituir do sujeito subalterno a sua condição de agente. Além disso, “dificilmente (...) os indivíduos ou grupos estão excluídos de apenas um setor” (KOWARICK apud PEÇANHA, 2009, p. 146) e “não existe «exclusão social», mas sim «processos de exclusão integrativa» ou «modos de margi-nalização» (...) tratando-se, portanto, de uma inclusão «precária», «indecente», «perversa», «instável», «marginal» das pessoas mais pobres em diferentes âmbitos, como a cultura ou a política”, como afirma acertadamente José de Souza Martins (apud PEÇANHA, 2009, p. 146).

Assim, à ideia de margem, e ao conceito de marginalidade, foi comum associar um ambiente precário de habitação (e de desocupação, não de trabalho) no limite externo da di-nâmica urbano-industrial – o que se denomina como uma “interpretação físico-ecológica [a que] somou-se a ênfase nos aspectos socioculturais” e econômicos (através da teoria marxista, enquanto estabelece um lugar periférico à acumulação de capital precarizada) (PEÇANHA, 2009, p. 146).

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pelo processo de subjetivação que o assume como lugar de fala de um grupo cuja adesão pri-meira é ser proveniente deste território marcado pela carência de condições e infraestrutura, mas que encontra formas de superá-las para colocar em circulação um regime outro de expe-rienciar a vida, que não aquele preponderante aventado no âmbito do formal.

Margem, afinal, não se presta ao apagamento do sentido do léxico, estando aderida ao termo a noção de aparte, de distância frente ao padrão e ao estabelecido e em certas acepções figurativas que também se associam à noção de “dar margem”, ou seja, do motivo e do pre-texto, do ensejo e da oportunidade. Uma oportunidade construída no investimento de um capi-tal cultural que se define como massivo, popular, subalterno, o qual se despeja caudalosamen-te nos campos artístico, editorial e da indústria fonográfica, e que acaba por processar rumos alternativos para as construções simbólicas as quais denunciam e documentam uma realidade expandida, com novos dados para a leitura do quadro social latino-americano.

A partir de uma tradição dialética da esquerda marxista, consolidada nos preceitos da Escola de Frankfurt e cunhada segundo o paralelismo de uma hierarquia fundada no conceito de classes, a subalternidade pode ser entendida em função de seu oposto hegemônico. Os

su-balternos para Gramsci, quem primeiro se detém na análise destes como grupo social no pen-samento marxista, apresenta-se como um conjunto de setores sociais sem voz, parte de um contexto no qual o capital hierarquiza as relações entre classes e, com base em uma situação de dominância por parte das classes hegemônicas, estabelece papeis e funções para o contin-gente na periferia dessa relação de poder, ainda à margem do sistema capitalista, mas que não podem ser tomado como parte das classes exploradas tradicionais – para Gramsci “classes instrumentais” –, já delimitadas em Marx, do proletário e do campesinato.

Em Gramsci, o que se pode perceber é que o que se concretiza como subalterno é aquilo que está ausente na constelação social estratificada de Marx, alheio à lógica do trabalho da fábrica ou do campo (SEMERARO, 2012, p. 61), sendo aquele que não é passível de orga-nização, encontrando-se disperso, disseminado, fragmentado e desagregado, sem iniciativa para a luta de classes, heterogêneo socialmente, e que nas palavras de Isabel Monal,

de forma ampla incluiriam as classes exploradas e em geral o conjunto de oprimidos e marginalizados (...) que não constituem na realidade, forças de mudança social progressistas ou revolucionárias, e que [se] conduzem muitas vezes por caminhos carentes de verdadeiras perspectivas de superação ou liquidação da exploração e da opressão [e] também não podem constituir frente clara para a emancipação e a justi-ça social. (2006, sem paginação)

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insur-gem” (GRAMSCI apud DEL ROIO, 2007, p. 68.), é o quanto esta descrição se avizinha a algumas das acepções que assume o conceito de massa, enquanto sujeita a cooptação das for-ças hegemônicas: esvaziada de consciência e de racionalidade, dispersa, volátil e de difícil organização, incapaz de realizar, factualmente, a modificação da realidade circundante (cf. MARTÍN-BARBERO, 2010, pp. 56-60).6 O ponto no qual Gramsci ultrapassa essa linha tra-dicional de definição do caráter da massa e do subalterno parece se materializar na iniciativa autônoma e na “resistência e criatividade popular que exercem contínua pressão frente aos centros de poder” (GRAMSCI apud SEMERARO, 2012, p. 59)

O subalterno que pode falar e autorrepresentar-se, numa ruptura do que vaticina Ga-yatri Spivak (em sua irredutível armadilha retórica que torna impossível dirimir o subalterno de seu papel subalterno, uma vez que este ao falar já não o é), o faz através dos universos dis-ponibilizados pelo consumo: de dentro e de fora do mercado – e dos meios de comunicação – o sujeito à margem busca seu espaço de visibilização e de projeção de seu discurso nas ins-tâncias de consagração e difusão por meio da indústria cultural (alternativa ou do

mainstre-am), buscando reconhecimento e condições de escuta para a sua voz. O rapper, o cumbiero, o

escritor que narra as favelas e os centros silenciosos e silenciados (cf. SPIVAK, 2010, p. 54), seus códigos, experiências, e o ethos de seus residentes, não estão empreendendo seus balbu-cios a partir das instâncias do conhecimento de onde discursam os críticos, nem do lugar da filosofia política do marxismo e da episteme de esquerda (ou de direita).

Suas vozes estão disponíveis como objetos de troca, nos eventos de música, ao vivo e discotecados, nos lugares públicos onde acontecem as batalhas de MC’s, nas trilhas sonoras vendidas nas lojas, nas barracas do comércio informal (e da pirataria) e baixadas na internet, bem como na colcha de retalhos sônica dos autofalantes da favela. Seus narrares estão nas grandes livrarias, nos sebos, nos blogs e nos saraus da periferia. Todos querem ser vistos, ou-vidos, reconhecidos e consumidos como fieis produtos made in quebrada, representantes da margem e dos marginais.

Subalternidade como identidade pontual não monolítica, bem como instável, uma das diversas possibilidades de identificação do sujeito na pós-modernidade (sempre ajustável e cambiante, sempre contextual, como propõe Stuart Hall) também se coloca como uma possí-vel estratégia de acesso às esferas de consagração: aqueles que assumem, no presente, a con-dição de marginais no campo das artes, no mercado massivo, o assumem como emblema

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(também ele objeto de troca) e afirmação de uma identidade específica que não se sustenta fora de um contexto de mirada que abarque o componente do pertencimento.

Pertencendo ao lugar, afirma-se a condição de ser capaz de narrar de modo avalizado – o “eu represento!” que atesta o poder de falar (sobre, desde, por, para), através de uma per-missão muitas vezes implícita, conquistada ora no próprio discurso de “fazer parte” do con-texto (como território, como movimento, como faixa etária), ora a partir da condição de reco-nhecimento adquirido a partir dos códigos locais ou pela própria ascendência do grupo social.

1.1. Um ambiente favorável

Muitas vezes conflituosas, caracterizadas por uma relação sempre desigual de poder,

as interações culturais são essenciais para pensar a disputa que travam não tão-somente aque-les homens e mulheres de todas as idades (tomados aqui principalmente na categoria dos “jo-vens” para fins de pesquisa), mas suas subjetividades, suas narrativas e vozes emanadas dos espaços nem sempre iluminados que se encontram do lado “fraco”7 da fronteira. Não se pode deixar de observar que os movimentos culturais de juventude – do hip hop e do rap, da

cultu-ra de la calle (e da bailanta) e da cumbia –, bem como a litecultu-ratucultu-ra abordados nesta

disserta-ção, fenômenos da ordem do popular, como o samba ou o futebol, com aspectos relacionados à cultura tradicional, como a literatura de cordel, os gêneros musicais latinos, ou o artesanato, devem ser tomados como fenômenos da cultura de massas.

E como cultura de massas, os objetos aqui pesquisados são consumidos amplamente e disseminados pelos meios massivos de mediação (e todo o sistema de prestígio e autenticador de legitimação de que dispõe o mass-media – das gravadoras/majors, das grandes editoras, das emissoras de rádio e TV comerciais), bem como localmente, de formas distintas no que tange à cumbia villera, ao rap e aos textos de Ferréz e de Cucurto, ou de diversas outras for-mas alternativas, como nos eventos de música ao vivo, nas festas discotecadas, nos saraus literários e, majoritariamente, e de diversas outras formas, através dos caminhos virtuais da internet.

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Assim, assume-se que a sociedade latino-americana do presente se define também co-mo sociedade de consuco-mo e que o muito do que está sendo co-modificado na mesma “não se situa no âmbito da política, mas no da cultura, e não entendida aristocraticamente, mas como «os códigos de conduta de um grupo ou um povo»” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 66). Além disso, para Martín-Barbero, o que está se transformando profundamente ao “trocar o lugar desde o qual se mudam os estilos de vida” é todo o regime de socialização, que tem nos meios de comunicação massiva a função mediadora principal em substituição a instituições tradicionais como a escola e a família. Para o autor, “«os mentores da nova conduta são os filmes, a televisão, a publicidade», que começam transformando os modos de vestir e termi-nam provocando uma «metamorfose dos aspectos morais mais profundos»” (LUYTEN apud MARTÍN-BARBERO, 2009, pp. 66-67).

Mais adiante em seu texto, Martín-Barbero também acrescenta: “cada dia mais as rela-ções com o mundo exterior e consigo mesmo se produzem no fluxo da comunicação massiva” (2009, p. 68) e enfatiza a cultura de massa como âmbito das estratégias ou astúcias do fraco, a dizer que:

a cultura de massa é a primeira a possibilitar a comunicação entre os diferentes es-tratos da sociedade. E dado que é impossível uma sociedade que chegue a uma com-pleta unidade cultural, então o importante é que haja circulação. E quando existiu maior circulação cultural que na sociedade de massa? Enquanto o livro manteve e até reforçou durante muito tempo a segregação cultural entre as classes, o jornal co-meçou a possibilitar o fluxo, e o cinema e o rádio que intensificaram o encontro (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 67).

Diferentemente do objeto tradicional e elevado, os fenômenos estudados não são ame-açados pela desauratização ou pela produção e reprodutividade em massa descritas por Walter Benjamin, que historicamente levantaram questionamentos acerca da perda de valores tradici-onalmente associados à originalidade, aos gostos estéticos e padrões culturais refinados ou “elevados” da cultura hegemônica (MERTON, LAZARSFELD, 1969, p. 105). Nem tampou-co são, por isso, objetos de uma crítica que esteja familiarizada tampou-com os seus meandros e me-lindres, porque esta muitas vezes se mostrou incapaz de ler, para além dos preconceitos e do estranhamento do “exótico”, um conjunto de dados diante dos quais nem sempre se pode lan-çar mão dos mesmos processos “tradicionais” de aferição a que se acostumara, atrelados a uma produção relativa a uma cultura valorizada, canônica.

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tradicional e do popular, e mesmo da cultura letrada, tendo como destino um público “inespe-cífico” (a massa?), que em interação contínua são circularmente – o que compreende uma lógica de continuidade e de mutualismo – reprocessadas em sentido contrário, do massivo e do popular à cultura letrada e erudita. Nesse âmbito de circularidade, “a cultura de massa ar-rasta a tendência a confundir cultura com diversão e a misturar o genuíno e o bastardo até torná-los indistinguíveis” (ROSEMBERG apud MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 69).

Importa sinalizar que, a partir dessas referências tomadas como repertório, um conjun-to de obras e canções passa a entrar em circulação em cerconjun-to momenconjun-to, principalmente ao final dos anos de 1980 até a virada do século XX e na década inicial do presente século, de maneira ampla e inquietante, assumindo espaços na indústria cultural que não estavam disponíveis anteriormente para sua disseminação. Nesse período o que se pode perceber é o surgimento de todo um conjunto de ritmos, dicções, temáticas, códigos e vozes nos circuitos midiáticos e os efeitos destes novos modos de se fazer cultura que acenavam uma identificação com territó-rios comumente associados a um vazio cultural, e relacionados a uma histórica depauperação subjetiva, de um consumo acrítico daquilo que se encontra disseminado nos meios de

comu-nicação.

Nesse período que compreende três décadas, tendo os anos de 1980 como momento inaugural em muitos sentidos (leia-se o desenvolvimento do hip hop nacional como movimen-to propriamente dimovimen-to e de São Paulo como seu berço no Brasil, o surgimenmovimen-to dos bailes funk no Rio de Janeiro – sucedâneos dos bailes de “black music” dos anos 1970 –, e das primeiras transmissões de programas televisivos voltados para a “movida tropical” na Argentina), e em particular o final dos anos de 1990, passa a ser observado o surgimento de programas radialís-ticos e televisivos – e em seguida no cinema e na literatura – voltados para a difusão, tanto no Brasil quanto na Argentina, de canções, discursos, dicções e vocabulários, bem como de his-tórias e temáticas que privilegiariam um universo especificamente associado às periferias das grandes cidades.

Gêneros e subgêneros que não dispunham anteriormente de colocação nos grandes ve-ículos, desprestigiados pela crítica e pela grande audiência das emissoras, irrompem na mídia como produções “exóticas”, singularizadas pelo estranhamento que causavam aos espectado-res incautos. Tais fenômenos atingiriam, em curto espaço de tempo, índices de audiência rele-vantes, e repercussão tal que rapidamente acabariam sendo admitidos na programação das grandes emissoras e ganhariam espaço nos diversos âmbitos dos meios de comunicação.

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espaços marginais, as favelas (e os seus eventos, os bailes), antes consumida no interior de um nicho: a partir de seu “surgimento”, no início dos anos de 1980, o movimento gradativamente vai conquistando público até que, nos anos de 1990, acaba por ganhar espaço nas emissoras de rádio de maior audiência do Rio de Janeiro, com programas diários (em 1994 havia ao me-nos duas emissoras – 100.5 RPC FM e 98.1 Rádio 98 FM – os quais mantinham em sua grade programas de grande apelo popular que competiam diretamente por público e anunciantes e uma emissora cuja programação era majoritariamente voltada para o gênero – 107.9 Imprensa FM) e até o auge de sua popularização quando além de um programa televisivo de curta dura-ção (Furacão 2000) na CNT, emissora de pouco apelo, o funk ganha espaço em um programa da emissora de televisão Globo comandado pela apresentadora Xuxa Meneghel.

Antes associada ao público infantil, a apresentadora buscaria no funk uma maneira de aproximar-se do público jovem e atualizar sua carreira. Inicialmente um quadro do programa

Xuxa Park até 1994, Xuxa Hits ganha em janeiro do ano seguinte horário próprio aos sábados,

com a participação de uma plateia composta por adolescentes, atrações ligadas ao recente-mente criado star system do gênero funk (como os MC’s Marcinho, William e Duda, Danda e

Taffarel e outros tantos), e tendo os dançarinos do grupo You Can Dance, além do DJ Tuba-rão, como atrações residentes.

O caso argentino revela semelhanças com o que ocorreu no Brasil. Em certo momento, a partir da identificação de um mercado profícuo no entorno dos gêneros tradicionais, a

Movi-da Tropical, foram disponibilizados à ampla circulação conteúdos culturais antes invisíveis

para a indústria cultural que passaram a abocanhar espaços cada vez maiores nas programa-ções dos meios de comunicação portenhos. Nesse contexto da bailanta a cumbia villera aca-baria por se popularizar e visibilizar, como fica extensamente detalhado nos trabalhos reuni-dos por Pablo Semán e Pablo Vila no livro Cumbia: nación, etnia y género en Latinoamérica (2011), todo um elenco de conteúdos até aquele momento ainda pouco conhecido do grande público.

Para exemplificar como a cena cultural desse período parece favorecer as representa-ções dos territórios e sujeitos à margem, há que se atentar que são do mesmo recorte temporal do corpus desta dissertação8 obras cinematográficas emblemáticas deste novo interesse pela

8 Ou de um período bastante próximo, como nos casos de Diário de uma guerra particular (1999) e de Pizza,

cerveja, cigarro (1998) que se encontram no limite contíguo ao recorte temporal, sem prejuízos para o trabalho,

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margem tais como, no Brasil9, os documentários Diário de uma guerra particular (1999) de João Moreira Salles e Kátia Lund (que aparenta nortear, às vésperas da virada do milênio, uma nova trajetória para a futura safra cinematográfica da década seguinte), Babilônia 2000 (2001) de Eduardo Coutinho, Ônibus 174 (2002) de José Padilha, Edifício Master (2002) também de Eduardo Coutinho, Fala tu (2003) de Guilherme Coelho, À margem da imagem (2003) de Evaldo Mocarzel, Aqui favela, o rap representa (2003) de Júnia Torres e Rodrigo Siqueira, O prisioneiro da grade de ferro (auto-retratos) (2003) de Paulo Sacramento,

Garo-tas do ABC (2004) de Carlos Reichenbach, Justiça (2004) de Maria Augusta Ramos, Sou feia

mas tô na moda (2005) de Denise Garcia, Carnaval, bexiga, funk e sombrinhas (2006) de

Marcus Vinicius Faustini, Falcão: meninos do tráfico (2006), de Celso Athayde e MV Bill,

Capão: sintonia da quebrada (2007) de Camilo Tavares, Pro dia nascer feliz (2007) de João

Jardim, À margem do lixo (2008) de Evaldo Mocarzel, Favela on blast (2008) de Leandro HBL e Wesley Pentz, Morrinho: Deus sabe tudo mas não é X9 (2008) de Fábio Gavião e Markão Oliveira e Lixo extraordinário (2010) de Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley; e os longas de ficção O invasor (2001) de Beto Brant, Cidade de Deus (2002) de Fernando

Meirelles, Amarelo manga (2002) de Cláudio Assis, Carandiru (2003) de Héctor Babenco, O

homem que copiava (2003) de Jorge Furtado, O homem do ano de José Henrique Fonseca

(2003), Contra todos (2004) de Roberto Moreira, Quase dois irmãos (2004) de Lúcia Murat,

Cidade baixa (2005) de Sérgio Machado, Antônia: o filme (2006) de Tata Amaral, Baixio das

bestas (2006) de Cláudio Assis, Cidade dos homens (2006) de Paulo Morelli, Maré: nossa

história de amor (2006) de Lucia Murat, Estômago (2007) de Marcos Jorge, Tropa de elite (2007) de José Padilha, Era uma vez... (2008) de Breno Silveira, Linha de passe (2008) de Walter Salles e Daniela Thomas, Sonhos roubados (2009) de Sandra Werneck, Salve geral (2009) de Sérgio Rezende, 400 contra 1 (2010) de Caco Souza, 5xFavela: agora por nós mesmos (2010) de Manaíra Carneiro, Wagner Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal e Cadu Barcellos, Bróder (2010) de Jeferson De e Tropa de elite 2 (2010) de José Padilha.

No país vizinho, tal fenômeno também se faz notar nas grandes telas e pode ser expli-citado pela repercussão que obtiveram longas de ficção como Pizza, birra, faso (1998) de Adrián Caetano e Bruno Stagnaro, Bolivia (2001) de Adrián Caetano, El bonaerense (2002) de Pablo Trapero, El polaquito (2003) de Juan Carlos Desanzo, Luna de Avellaneda (2004) de

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Juan José Campanella e El asaltante (2007) de Pablo Fendrik, bem como o documentário

Memoria del saqueo (2004) de Fernando Solanas, para citar somente os que obtiveram

algu-ma exposição em telas brasileiras, especialmente em mostras e festivais e em algualgu-mas salas do circuito alternativo de cinema das grandes cidades.

Não se pode deixar de dar destaque, devido a sua relevância aqui, ao filme El

bonae-rense (Pablo Trapero, 2002), cuja trilha sonora (constituída em sua maior parte por canções de

cumbia villera) é de Pablo Lescano com interpretação de sua banda Damas Gratis, e aos

lon-ga-metragens de ficção O invasor (Beto Brant, 2001) e Carandiru (Héctor Babenco, 2003), que trazem como ator, personagem, e consultor Sabotage que, além das demais funções de-sempenhadas na realização do primeiro destes filmes, também foi o responsável por parte significativa de sua trilha sonora.

Se no cinema há, conforme os inúmeros exemplos citados acima, uma especial dili-gência e um vultoso investimento na representação da margem, no que tange às obras literá-rias desta mesma espécie (cuja enumeração detalhada seria, se não impossível, tão dispendi-osa e extensa que talvez ocupasse grande parte do tempo da pesquisa e das páginas deste

tra-balho), tal cenário é menos explícito. Tanto no Brasil quanto na Argentina a profusão de escri-tos associados à temática da margem e do subalterno pode ser minimamente divisada, exclu-indo-se textos acadêmicos e jornalísticos que se multiplicam em sua investigação, em obras de ficção e não ficção.

Novamente, parece-nos bastante mais natural, por sua acessibilidade, fazer referência aos escritos lançados no Brasil que tiveram expressivo êxito no mercado editorial, já a partir da década de 1990 e notório incremento na década seguinte: Cidade partida (1994), de Zuenir Ventura, O matador (1995), de Patrícia Melo, Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, Estação

Carandiru (1999), de Drauzio Varella, Inferno (2000), de Patrícia Melo, Memórias de um

sobrevivente (2001), de Luiz Alberto Mendes, O invasor (2002), de Marçal Aquino, Abusado:

o dono do morro Dona Marta (2003), de Caco Barcellos, Cabeça a prêmio (2003) e Famílias

terrivelmente felizes (2003), de Marçal Aquino, Cabeça de porco (2005), de Luiz Eduardo

Soares, MV Bill e Celso Athayde, Elite da tropa (2005), de Luiz Eduardo Soares, André Ba-tista e Rodrigo Pimentel, Falcão: meninos do tráfico (2006), de Celso Athayde e MV Bill,

Falcão: mulheres e o tráfico (2007), de Celso Athayde e MV Bill, e Guia afetivo da periferia

(2009), de Marcus Vinícius Faustini, bem como as obras de Ferréz e de autores ligados à Lite-ratura Marginal.

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como uma baixa demanda do mercado consumidor, ora como certa resistência de seu mercado editorial frente a esse tipo de produto, ou ainda por haver, finalmente, poucas obras que se possam relacionar a este ambiente mais pujante notabilizado no Brasil a listagem é bem me-nos vultosa: sob o risco de deixar de fora algum possível lançamento mais recente, enumera-mos os livros La villa (2001), de César Aira, Cuando me muera quiero que me toquen

cum-bia: vidas de pibes chorros (2003), de Cristián Alarcón, , Bolivia construcciones (2006), de

Bruno Morales, Bezarachussetts (2007), de Leandro Ávalos Blacha, Villa Celina (2008), de Juan Daniel Incardona, La virgen cabeza (2009), de Gabriela Cabezón Cámara, Grandeza

boliviana (2010), de Bruno Morales, Oscura monótona sangre (2009), de Sergio Olguín, e Si

me querés, quereme transa (2010), também de Alarcón, Kryptonita (2011), de Leonardo

Oyo-la, além das obras de Washington Cucurto. Apesar das ressalvas relativas a um mercado “marginal” menos pujante que o brasileiro e uma projeção menor da produção eu tem como tema a periferia, convém lembrar que, no ano de 2011, Ferréz lança a tradução de seu Manual

prático do ódio em terras argentinas (Manual práctico del odio. Tradução de Lucía Tennina.

Buenos Aires: Coregidor, 2011), o que no mínimo sugere que, se não há um ambiente tão

favorável, ainda existe algum interesse pelo tema.

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CAPÍTULO II. Representação e Autorrepresentação nas margens

O imaginário cultural integra uma massa de discursos que não provêm apenas das instituições educativas formais nem do campo intelectual. A indústria cultural assentada como indústria gráfica desde a segunda década do século põe em circulação conhecimentos estranhos às elites letradas. E não se trata apenas do conhecimento, mas também de no-vos gêneros do discurso (...) decisino-vos na formulação de narrativas so-ciais e na própria produção de uma categoria especializada de escritor.

Beatriz Sarlo

Poder representar o real através da narrativa não é, obvia e factualmente, uma disputa nova, insígnia das práticas do contemporâneo, nem particularidade das lutas internas ao cam-po e das negociações do recorte temcam-poral em análise nesta dissertação, com enfoque na pri-meira década do presente século. Objetiva ou subjetivamente, a partir de uma chave realista ou ficcional, parece imprescindível em cada momento da história e para cada homem no (seu) tempo, consciente ou inconscientemente, processar a vida escorregadia, vaporosa e o experi-enciado através das impressões (tanto pessoais quanto coletivas) no liame da representação. Narrar a vida é documentar e permanecer, é tornar memória e presença, é ousar tentar obrigar o tempo, ruína e óbito, a curvar-se, domando imperfeitamente a vertiginosa e efêmera exis-tência em qualquer coisa que se queira eterna (ou que, no mínimo, deixe rastros).

Rastros como pegadas humanas (ou quase) fossilizadas de 250 milhões de anos que registram e narram involuntariamente uma presença e fomentam, no homem com história que as espreita, as admissíveis narrativas de origem e de criação na tentativa da apreensão de um dos vértices nos limites imprecisos que demarcam a existência humana no tempo. Em muito pouco essas narrativas de situação do humano na história acabariam por se diferenciar

daque-las que se quiseram imunes ao tempo: os monumentos e os túmulos que, tais como as pegadas fossilizadas são apenas tentativas desesperadas, conscientes, de definição, com o atraso de uma vida (a vida de um homem, de uma sociedade) de um marco em uma trajetória que se sabe terminal e destinada à extinção, mas da qual não se pode precisar uma fundação que te-nha a solidez de certeza que há na morte.

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do lixo que descartamos e que nos superará, para os arqueólogos de um tempo após o fim do mundo? Quanto será rastro de uma narrativa do que “realmente” existiu, em cada detalhe des-crito nas representações, e quanto será imaginação e invenção, ficção que aproxima tangenci-almente ao que já foi do que se é no momento do contato com o rastro deixado, sem uma tra-dução fidedigna, sem uma Pedra de Roseta que deslinde um fiapo de verdade nos lapsos e fragmentos do resto.

Tornar-se matéria narrada no tempo é tornar-se tanto objeto quanto sujeito – e nessa dupla capacidade do narrar, afinal, repousa um campo de batalha das disputas discursivas do presente. É pela evidência de uma realidade subjetivada, marcadamente característica de nos-so tempo, construída através de sujeitos que narram e de um conjunto de narrares, nos-sobre a qual repousam as certezas de uma incapacidade tácita de abarcar a totalidade da vida e, por-tanto, repleta de desvios e impropriedades no discurso construído com laivos de univocidade, que se procede na tentativa de abarcamento do que é afinal o humano, um exercício de resis-tência e de imaginação do imanente, do completo, no espaço sócio-histórico tão coberto das sombras lançadas pela amplitude do real inapreensível em sua totalidade.

Ao invés de reduzir as distâncias, essas representações imperfeitas e localizadas aca-bam por solidificar e cristalizar imagens da vida nem sempre abertas ao diverso. O que sobra são arestas mal aparadas de vida contadas autonomamente, e o silêncio daqueles que não pu-deram participar do processo de representação, um processo delegado de empopu-deramento e criação de hierarquias – entre aqueles que existem no topo da relação, em seu polo positivo na escala valorativa, detentores dos meios que qualificam uma capacidade cognitiva e artística (como dom? Como herança?), e os que não possuindo tal capital são colocados à margem deste processo de definição de sujeitos sociais plenos.

Assim, narrar ficou circunscrito historicamente, como faculdade, a um centro que a partir de suas coordenadas acolhia aquilo que lhe pudesse garantir mais substância e solidez, mas que repelia num movimento contínuo e centrífugo toda a diversidade para fora de sua gravidade, em um processo de objetivação no qual o pejorativo e o preconceito se fizeram vigentes, de muitas formas, desde o distinto perigoso, ameaçador, ao outro exótico sedutor, estranho e deformado, sem a acuidade própria para narrar a si mesmo (qual objeto pode narrar a si mesmo sem constituir-se em sujeito?).

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regras particulares a eles, sem a mediação deformadora e parcial que caracterizara as suas representações?

2.1. A experiência da (auto)representação na margem: Os expedientes da autoficção e do realismo como procedimentos literários para a formulação do discurso marginal

Nas narrativas das margens (e sobre as margens) imagens do subalterno são postas em cena em grande profusão nos últimos anos. Representações, autorrepresentações, construções simbólicas sobre cultura e realidade – experienciadas pelo subalterno, pelo jornalista, elabora-das pelo ficcionista, pelo músico – externas e internas à margem, fronteiriças ou deslizantes, constituem uma característica dominante da virada do século XX para o século XXI. São re-presentações projetadas sobre as margens ou recolhidas das sombras no esforço de iluminar esses territórios, abrindo espaço para sujeitos, memórias e histórias, culturas e experiências oriundas das zonas de contato.

Reapropriações e ressignificações são engendradas de um lado e outro das fronteiras que demarcam espaços periféricos e áreas centrais da cultura e da cidade que se interpene-tram. São produzidas a partir de inúmeros fragmentos e restos – de experiências vitais, notí-cias, e imaginários coletivos. Atualizando e colocando em circulação códigos, valores e todo um ethos do sujeito periférico, constroem imagens persistentes sobre a vida e a cultura do subalterno.

A capoeira não vem mais, agora reagimos com a palavra, porque pouca coisa mudou, prin-cipalmente para nós. Não somos movimento, não somos os novos, não somos nada, nem pobres, porque pobre segundo os poetas da rua, é quem não tem as coisas. Cala a boca, ne-gro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca! Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve. (FERRÉZ, 2005, p. 9)

Assim exclama Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, no manifesto intitulado “Terro-rismo literário”, texto de abertura da antologia Literatura Marginal: Talentos da Escrita Peri-férica (2005). Frente aos preconceitos e à atitude excludente enfrentada há muito, emerge uma

produção abusada, desafiadora, violenta. Cada qual, o cumbiero, o rapper, o escritor periféri-co, assume seu discurso como arma, como máscara performática, e toma de assalto o micro-fone e a palavra (cantada, contada, oral, escrita).

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em todas as partes e em lugar nenhum (conforme afirma Pascal, aqui tomado a partir da leitu-ra de Borges). Derrubando barreileitu-ras e muleitu-ralhas, cavando trincheileitu-ras e ocupando posições, travam-se as novas lutas internas no campo da cultura.

Instrumentos importantes para a reconstrução de uma identidade juvenil e comunitária debilitada e mais diretamente associada aos estigmas, por conta de um forte preconceito de lugar que associa os indivíduos a uma espécie de essência derivada do território periférico no qual nasce ou mora, a cumbia villera, o hip hop e a literatura dos refugos (BAUMAN, 2005) se projetam como armas na luta pela reconstrução da identidade do subalterno.

Estes estilos musicais e literários que se manifestaram, se fortaleceram ou se reconfi-guraram nas cidades de Buenos Aires e São Paulo em meados da década de 1990, abriram espaço para um novo momento no universo das construções simbólicas. Neste contexto se afirma um novo modo de representar os setores periféricos das duas grandes urbes. Um mun-do antes associamun-do à falta de tumun-do o que caracterizava a cidade formal começa surgir também como espaço de cultura.

Os habitantes destes territórios populares, vistos fundamentalmente como vagabundos,

drogados, marginais, delinquentes e machistas, começam a balbuciar uma espécie de contra-discurso no qual contestam e questionam as injustiças de um sistema perverso ou buscam le-gitimar uma atitude hedonista, comunitária e que funda o seu prestígio em outros valores, em outro ethos e outras estratégias de pertencimento a certos cenários da vida urbana mais relaci-onados com os dramas da exclusão social, da violência e das drogas. Isso com uma forte carga de conscientização ou com ênfase em certa política dionisíaca do corpo e do “aqui e agora” centrada na espetacularização do ato sexual, no consumo de drogas (agora publicamente enunciáveis) e na crônica dos fatos comuns e correntes de um mundo onde os delitos se in-corporam ao cotidiano.

Representação de uma nova subjetividade (jovem, periférico, imigrante, pobre, estig-matizado) que transforma o discurso oral difundido através da música em instrumento de legi-timação e representação dos setores populares, a cumbia villera e o hip hop se fazem ouvir nas manifestações literárias dos contos e romances escritos pelos subalternos, constituindo com estes uma teia textual que articula diferentes formas discursivas com a realidade de certo espaço urbano que, ao mesmo tempo em que pauta, é pautada por estes atos de fala.

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autoex-pressão para toda [uma] geração” (DAVIS apud ROSE, 1994, p. 20). Dessa forma, estenden-do os seus alcances para a cumbia e aos movimentos culturais de que fazem parte ou a que remetem, tomar o rap e a cumbia como repertório e referencial para os expedientes autorre-presentacionais (a autoexpressão a que se refere Davis), focalizados nas manifestações literá-rias da Literatura Marginal de Ferréz e do Realismo Atolondrado de Cucurto, repercute no reconhecimento de uma matriz cultural fundada no ethos juvenil relativo aos lugares na mar-gem e que delimita o alcance das vozes que se fazem ouvir nas interseções entre periferia e centro.

Tais vozes e a própria vida – e em suma a realidade que se revela na representação empreendida pela via do literário, bem como nas letras das canções da cumbia villera e do rap –, portanto, encontram-se inscritas na estética, no estilo, na sonoridade e nas temáticas de ter-ritórios que possuem especificidades as quais, devido a estas idiossincrasias ancoradas em um tripé referencial espacial, temporal e simbólico, quando emergem do silenciamento e do des-conhecimento acabam por reformular as formas reconhecidas e canonizadas de representação para que se concretizem. A lógica e a estética do realismo não escapam a este processo de

profunda adequação e, mais determinantemente, de apropriação dos modos de execução a que se valem esses novos narrares.

Através do desempenho performativo de identidades alternativas e da tomada da posi-ção de sujeitos “fracos”, os chamados “novos realismos” emergem no contemporâneo ou co-mo releituras de uma maneira tradicional de tradução do real, atravessadas pelas condições relacionadas ao presente em que se concretizam, ou como um realismo que guarda da tradição os caracteres associados aos preceitos de veracidade e de verossimilhança, ainda que imiscuí-dos das inovações trazidas pelas vanguardas e pelas iniciativas de autonomização que marca-riam certo “declínio” ou “aversão” ao mesmo. Sobre este rechaço que a estética realista passa a experimentar com o despontar das vanguardas e seu “retorno”, Tânia Pellegrini afirma que

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De fato, o próprio ressurgimento e revalorização do modelo realista de representação, em suas novas roupagens pós-modernas10, com procedimentos que tanto processam rupturas quanto resgates frente às formas tradicionais, são primordiais para que se possa realizar a in-vestigação de muito do que vem sendo feito, principalmente na literatura, nas margens das sociedades pós-industriais contemporâneas que experienciam uma visibilização de suas peri-ferias.

Tal movimento de adequação do modelo denota uma necessidade intrínseca do próprio realismo em requerer “uma constante transformação e renovação” uma vez que “se muda o que entendemos por realidade e os modos de percebê-la, e se muda o que consideramos como verossímil, os modos de representação da realidade e as pautas que definem a verossimilhança também deveriam mudar” (HORNE, 2011, p. 14).

Desta forma, mais que apenas assinalar que ambos os autores que aqui são alvo de in-vestigação fazem uso em suas escritas dos expedientes realistas, faz-se necessário aprofundar, comparativamente, a produtividade e o alcance desses expedientes naquilo em que se aproxi-mam ou em que se distanciam no interior da obra de ambos. A intenção não está somente (e

talvez se detenha nesta direção de maneira apenas pontual) na disposição e correlação entre os dois autores periféricos e suas literaturas, mas na aproximação de seus narrares de algo que se possa reconhecer como um “realismo marginal”, que ostente as marcas da marginalidade, altamente territorializado.

Um prototípico realismo inscrito nas ilhas urbanas, conceitualizadas por Josefina Ludmer, e parte do repertório simbólico das “pequenas nações”11, que admita variações

10 Aqui o pós-moderno e o pós-modernismo serão lidados tanto enquanto dado temporal quanto como movimen-to artístico, naquilo que se encontra delimitado nas obras de Jean-François Lyotard, Linda Hutcheon, Fredric Jameson e Zygmunt Bauman.

Referências

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