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Educação do Campo para o desenvolvimento (in)sustentável do capital: os novos direcionamentos da política educacional no meio rural

1 O DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA E A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL: As diferentes formas de subordinação do trabalho ao capital e suas

4 A FORMAÇÃO DOS TRABALHADORES DO CAMPO PROPOSTA PELAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DO ESTADO NEODESENVOLVIMENTISTA (2001-

4.1 Educação do Campo para o desenvolvimento (in)sustentável do capital: os novos direcionamentos da política educacional no meio rural

A relação indissociável entre desenvolvimento e educação é uma constante afirmação nos diferentes documentos que orientam a política pública de Educação do Campo no período neodesenvolvimentista. Embora essa não seja uma novidade inaugurada pelas políticas do período, é importante observar que o caráter atribuído às perspectivas de desenvolvimento e de formação dos trabalhadores sofreram modificações significativas em relação às políticas educativas de períodos anteriores.

Como analisamos, no período desenvolvimentista as políticas educacionais voltadas ao meio rural apresentavam o propósito de evitar problemas que prejudicassem a ampliação da produtividade, como o êxodo rural e a desqualificação da mão de obra para os novos processos produtivos em emergência. As propostas do Estado para a formação dos trabalhadores, nesse contexto, apresentaram um caráter predominantemente instrumental e economicista.

No período neoliberal, por sua vez, a ruptura com o modo de acumulação centrado no modelo produtivista e a consolidação de um novo modo de acumulação altamente financeirizado implicou no processo de reorganização do Estado e, consequentemente, no redirecionamento de suas políticas educacionais. Diante do agravamento das desigualdades causado pela precarização e redução drástica no emprego da força de trabalho, as políticas educacionais passaram a atuar de forma conjunta com os programas sociais de cunho assistencialista. A formação dos trabalhadores, proposta pelo Estado a partir desse período, passa a dar uma ênfase maior aos aspectos da cultura local e às questões ambientais, entendidos como importantes elementos no contexto de globalização.

Como já analisado anteriormente, sendo um projeto de desenvolvimento intermediário entre o nacional-desenvolvimentismo e o neoliberalismo, o neodesenvolvimentismo procurou combinar o produtivismo com o modelo

194 econômico altamente financeirizado e apoiado em políticas sociais. Assim, buscou promover o crescimento econômico a partir do estímulo à produção industrial e à produção da agricultura familiar, sem, no entanto, romper com o padrão agroexportador e financeirizado de produção, que favorece prioritariamente o agronegócio.

As políticas de Educação do Campo nesse período foram marcadas pelo duplo movimento do processo de mundialização do capital que, especialmente a partir das últimas décadas do século XX, promoveu a crescente internacionalização das atividades econômicas, destituindo as fronteiras para a expansão e a acumulação do capital em nível global, paralelamente ao movimento de reconstrução dos territórios locais e regionais, pautado na perspectiva de um desenvolvimento endógeno.

Esse processo, que no campo brasileiro se expressou pelo apoio do Estado

ao agronegócio e à agricultura familiar212, caracterizou-se pela busca de

melhoramento das estratégias de articulação entre as diferentes regiões do globo, tendo em vista uma maior descentralização das atividades econômicas em âmbito global e uma maior centralização e concentração do capital.

Por estar voltado tanto para as demandas da globalização econômica quanto para o desenvolvimento do local, o processo de ‘qualificação’ dos territórios para sua melhor inserção na dinâmica global do sistema capitalista não teve como objetivo a homogeneização do espaço global, mas, ao contrário, pautou-se pelo processo de maior diferenciação e especialização dos diferentes territórios, uma vez que esses se tornaram fontes de vantagens concorrenciais (PIRES, 2016). Pires (2016) enfatiza que os territórios locais passaram a configurar importantes fontes de vantagens concorrenciais em um mercado cada vez mais internacionalizado e competitivo. Nesse contexto, cresce a importância da gestão de bens coletivos locais como a educação, a formação, as infraestruturas e as diferentes relações sociais regionalizadas.

Assim, mesmo diante do objetivo de promover os ajustes necessários para a melhor convergência das atividades agrárias, industriais e de serviços locais com as

212 Como analisamos nos capítulos anteriores, os incentivos do projeto neodesenvolvimentista ao

agronegócio foram significativamente maiores do que os incentivos voltados à agricultura familiar, o que indica o caráter ‘acessório’ que a produção em pequena escala cumpriu nesse projeto.

195 demandas do mercado internacional postas pela reestruturação produtiva, foi possível ao projeto neodesenvolvimentista contemplar também algumas demandas importantes para os movimentos sociais populares.

Segundo a análise que realizamos dos documentos oficiais da política pública de Educação do Campo, esse processo resultou em um caráter ambíguo do projeto de formação dos trabalhadores do campo proposto pelo Estado no período. Isso se deu pela tentativa de estabelecer uma combinação entre alguns pilares fundamentais da formação dos trabalhadores na perspectiva dos movimentos sociais populares do campo com algumas das demandas relacionadas ao processo de reestruturação do modo de produção capitalista e à reconfiguração do Estado e de suas políticas.

Um dos aspectos que contribuiu para ‘afirmar’ a falsa possibilidade de conjunção de perspectivas antagônicas em um mesmo projeto de desenvolvimento e de formação dos trabalhadores foi a concepção ampliada de desenvolvimento adotada como referência para as políticas de Educação do Campo. Nos documentos analisados, encontramos como recorrente a afirmação de que o desenvolvimento não deve ser compreendido apenas por aspectos referentes ao crescimento econômico, mas também as dimensões política, social, ambiental e cultural devem ser consideradas como elementos importantes para sua viabilização.

As políticas neodesenvolvimentistas, diante do agravamento das

desigualdades e conflitos de classe decorrentes do projeto neoliberal, passaram a reconhecer a necessidade de controlar e coordenar as relações humanas para além do mercado, contemplando outros aspectos da vida social, como se observa na citação do documento que se refere ao projeto de desenvolvimento voltado ao meio rural:

A partir do ano de 2003 o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA optou pelo planejamento do desenvolvimento rural com base em territórios, buscando com isso superar tanto a excessiva centralização da formulação das políticas nacionais, que considerava o país todo como homogêneo como eliminar a pulverização de implantação das políticas públicas, que reduziam demasiadamente sua eficácia. Assim, o Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA definiu ‘territórios’ prioritários para o desenvolvimento rural sustentável com o objetivo de (i) Fortalecer a Gestão Social; (ii) Fortalecer as Redes Sociais de Cooperação; (iii) Dinamizar Economicamente os Territórios; (iv) Promover a Articulação das Políticas Públicas (BRASIL, MDA). [...] Essa abordagem territorial do MDA procurou garantir a sustentabilidade do desenvolvimento a partir de quatro

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dimensões: (i) Sociocultural; (ii) Ambiental; (iii) Econômica (iv) Político- Institucional. Esse é um bom exemplo da ideia de que os territórios são multi-dimensionais, ou seja, possuem aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais e ambientais (Documento 21, p. 30 e 31).

Assim, a demanda dos movimentos sociais populares por políticas específicas de Educação do Campo pôde ser contemplada pelo projeto neodesenvolvimentista, uma vez que para esse a educação é entendida como estratégia ‘para’ o desenvolvimento e a valorização dos territórios, como é possível observar em um dos trechos de um documento referente ao ‘Programa Saberes da Terra’:

A educação para o desenvolvimento leva em conta a sustentabilidade ambiental, agrícola, agrária, econômica, social, política, cultural, a equidade de gênero, racial, étnica e intergeracional. Realizar uma educação com o desenvolvimento sustentável é considerar que o local e o território podem ser reinventados por meio das suas potencialidades (Documento 27, p. 35).

Ao serem formalmente incorporadas pela política de Educação do Campo, as demandas dos movimentos sociais populares do campo, referentes à

sustentabilidade “ambiental, agrícola, agrária, econômica, social, política, cultural, a

[à] equidade de gênero, racial, étnica e intergeracional”(Documento 27, p. 35), não

representaram uma oposição direta aos objetivos centrais do projeto neodesenvolvimentista, visto que puderam ser consideradas funcionais a ele, na medida em que contribuem para um melhor aproveitamento dos recursos locais, promovendo suas potencialidades com o mínimo de desperdício. Como analisaremos mais adiante, a incorporação das demandas dos movimentos sociais às políticas públicas ocorreu de maneira mais formal do que efetiva, dado que sua efetivação exigiria rupturas estruturais que o projeto neodesenvolvimentista não se propôs a realizar.

Diante do objetivo de promover uma adequação do desenvolvimento local, regional e nacional ao capitalismo global, o projeto neodesenvolvimentista adotou o desenvolvimento territorial e sustentável como uma de suas metas, o que justifica a ênfase dos documentos da política de Educação do Campo na valorização das iniciativas alternativas implementadas pelos movimentos sociais. Além disso, como se evidenciou nas referidas citações dos documentos, o foco no ‘desenvolvimento

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territorial sustentável’213 revela um significativo ‘otimismo’ em relação às

perspectivas endogenistas de desenvolvimento por parte dessas políticas.

Embora se considere a importância que essas políticas tiveram no incentivo às propostas de desenvolvimento local implementadas pelos movimentos sociais populares, é preciso destacar que o projeto neodesenvolvimentista apresenta certo desprezo em relação aos impactos globais do sistema capitalista sobre os territórios locais, que no meio rural tem se expressado, principalmente, pela expansão do agronegócio sobre os territórios camponeses. Diante desse contexto, é necessário considerar os limites materiais produzidos pelo desenvolvimento capitalista que, como analisamos nos capítulos anteriores, impossibilitam um dos objetivos centrais da política de Educação do Campo sob esse sistema: o desenvolvimento sustentável.

É preciso também considerar os limites do ‘fortalecimento do mundo rural’ em todas as suas dimensões: econômica, social, ambiental, política, cultural e ética,

como especialmente se destaca nos documentos do PRONERA214. Nos manuais do

PRONERA215, em suas diferentes versões, encontramos a afirmação de que seus

princípios “baseiam-se na relação indissociável da educação e do desenvolvimento territorial sustentável como condição essencial para qualificação do modo de vida da população envolvida nos projetos” (Documento 11.1, p. 14).

A qualificação, a valorização e a reprodução do modo de vida camponês, que são defendidas pelos movimentos sociais do campo, estão presentes nos documentos dos diferentes programas analisados e se encontram alinhadas com a proposição de um desenvolvimento sustentável. Em pelo menos um dos documentos de referência de cada programa analisado encontramos a afirmação do

213 O território, nessa perspectiva, assume papel central enquanto base material da governança, uma

vez que é nele que os conflitos e compromissos estabelecidos devem ser ‘gerenciados’ em articulação com os ‘pactos’ estabelecidos em nível regional, nacional e internacional.

214 Em relação ao PRONERA, foram analisados cinco (05) documentos, sendo o Decreto nº 7.352, de

4 de novembro de 2010, e as quatro versões do Manual de Operações (2004, 2011, 2014, 2016), que são versões atualizadas após o lançamento das Diretrizes Operacionais da Educação do Campo.

215 Como afirmamos anteriormente, o PRONERA apresenta a particularidade de estar vinculado ao

fortalecimento da reforma agrária, além de desenvolver propostas oriundas dos movimentos sociais populares do campo em parceria com instituições públicas de ensino. Embora a reforma agrária no período neodesenvolvimentista não tenha avançado significativamente, como demonstramos anteriormente, esse aspecto representa uma diferença fundamental entre esse programa e as demais políticas de Educação do Campo, pois, ao garantir o protagonismo dos sujeitos do campo organizados coletivamente e ter como foco uma reforma estrutural fundamental, a reforma agrária, contribuiu de forma mais efetiva na consolidação de experiências coletivas de resistência por parte desses movimentos.

198 objetivo de desenvolver e consolidar um projeto de desenvolvimento sustentável, o que nos permite afirmar que a promoção do desenvolvimento sustentável é apresentada como o objetivo central da Educação do Campo no projeto neodesenvolvimentista.

Nos documentos do PRONERA, o desenvolvimento sustentável é definido como “[...] desenvolvimento social, economicamente justo e ambientalmente sustentável, em articulação com o mundo do trabalho [...]” (Documento 11, p. 14). Nesse mesmo sentido, o ‘PRONACAMPO’, especialmente através do ‘Programa Saberes da Terra’, apresenta a intenção de contribuir para o desenvolvimento sustentável vinculado a pressupostos fundamentais da formação defendida pelos movimentos sociais populares, como a formação integral:

Mais amplamente, é objetivo do Programa contribuir para a formação integral do jovem do campo, potencializando a sua ação no desenvolvimento sustentável e solidário de seus núcleos familiares e comunidades, por meio de atividades curriculares e pedagógicas, em conformidade com o que estabelecem as Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo – Resolução CNE/CEB nº 1 de 03 de abril de 2002 (Documento 27, p. 7).

Como é possível observar, trata-se de uma perspectiva de desenvolvimento que não se opõe à proposta defendida pelos movimentos sociais populares do campo e que também não se confronta com os objetivos do projeto neodesenvolvimentista, uma vez que pode contribuir para a promoção da produtividade com atenção para a preservação dos recursos naturais em risco de esgotamento e que são fundamentais para a expansão e a acumulação do capital.

Portanto, podemos observar que a perspectiva de ‘desenvolvimento sustentável’

configurou como um importante elemento para a conformação do consenso em torno do projeto neodesenvolvimentista.

Um aspecto que corrobora com nossa constatação é destacado no documento 21, que aborda o eixo ‘Desenvolvimento Sustentável e Solidário com Enfoque Territorial’, do ‘Programa Saberes da Terra’. Nesse documento

encontramos a afirmação de que a concepção de ‘desenvolvimento sustentável’216,

216 No mesmo documento encontramos a afirmação de que Ignacy Sachs é o principal autor de

referência na concepção de desenvolvimento sustentável adotada pelas políticas de Educação do Campo. Conforme analisamos anteriormente, as concepções de desenvolvimento e sustentabilidade apresentadas por Sachs, ainda que se localizem em uma perspectiva crítica, não expõem que a

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