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Educação da natureza humana: a primeira imersão na

3.2 Ideias pedagógicas de Rousseau em direção à perfectibilidade

3.2.1 Educação da natureza humana: a primeira imersão na

É a ti que me dirijo, terna e previdente mãe, que soubeste afastar-te da estrada principal e proteger o arbusto nascente do choque das opiniões humanas! Cultiva, rega a jovem planta antes que ela morra, um dia, seus frutos serão tuas delícias. Forma desde cedo um cercado ao redor da alma de teu filho, outra pode marcar a seu traçado, mas apenas tu podes colocar a cerca (ROUSSEAU, 1995, p. 7).

Na epígrafe deste subcapítulo, Rousseau (1995) além de mostrar a importância da educação na primeira infância, dirige-se especialmente às mulheres, pela proximidade e sutileza delas no seu desempenho como mãe (p. 7-8). Portanto, para o genebrino, a educação infantil está dividida em dois momentos: a primeira infância começa a partir do nascimento da criança, pela total dependência desta, no sentido da necessidade de cuidados que devem acontecer de forma direta pela mãe/cuidadora, pois sem ela perecemos. Na segunda infância, é necessário que a criança se desenvolva sentindo-se livre, portanto, inicia o distanciamento no sentido de cuidadores possibilitarem em seus ensaios as relações com as coisas. A intervenção pedagógica passa a ser de forma indireta, em que a educação e o desenvolvimento do corpo ocorrem pela força. Nessa fase, o preceptor é a própria natureza, ou seja, no princípio da pedagogia, acontece a maturação biológica. Surge, para nós, uma questão no horizonte que orientou o processo investigativo e que incide sobre a seguinte pergunta: em que constitui a educação da natureza

humana para Rousseau?

Parte-se da hipótese da educação da natureza humana. Conforme já afirmamos anteriormente, para Rousseau (1995), “a primeira educação deve ser puramente negativa e consiste em não ensinar a virtude ou a verdade, mas em proteger o coração contra o vício e o espírito contra o erro” (p. 91). Ou seja, seria a reintrodução das ideias de cuidados que se deve ter na educação infantil. O autor nos adverte que uma criança precisa de outras condições, mais específicas e peculiares; salienta ainda, a respeito do gênio particular da criança. A necessidade de conhecermos a criança para saber que regime moral lhe convém e para se obter êxito no trabalho de educador depende da determinação e da forma que o educando vai ser governado (em uma liberdade controlada). Outros autores, como Locke (influência empírica) e Comenius (influência naturalista), já haviam mencionado essas exigências na educação das crianças. No entanto, ao ressurgir em sua obra

Emílio, ocorre uma repercussão maior, pois amalgamaram-se essas duas tendências ampliadas.

A respeito do processo pedagógico apoiado na maturação biológica, no desenvolvimento da natureza humana e na educação proposta por Rousseau bem como por toda pedagogia que tenciona a formação moral e política do educando como requisitos para alcançar a maioridade, surge uma problemática a respeito dessa autoridade. Mesmo que de forma indireta, estes defenderam as posições fundamentadas em almejar projetar-se no mundo das crianças as ideias de autonomia e emancipação. Os que se contrapõem a esses ideais justificaram que poderiam estar se antecipando e em alguns casos, impondo previamente conteúdos que inicialmente deveriam ser construídos livremente pela ação da criança em sua relação com o adulto e com o meio que a cerca. Relacionado a essa ideia, como bem lembra Dalbosco (2011, p. 142), o mérito dessa oposição reside em apontar-se o risco intrínseco à orientação exacerbada, juntamente com o autoritarismo operado pelo adulto em relação à criança. Rousseau nos alerta que pode surgir a questão da reprodução do comportamento da criança de acordo com a vontade adulta e certamente estará conforme com os ideais de maioridade impostos de fora ao mundo infantil.

Por outro lado, caso essa objeção não seja levada em conta, pode-se validar o oposto da pedagogia direcionada, no caso, a pedagogia da espontaneidade, que da mesma forma pode revelar-se tão perniciosa no desenvolvimento da criança quanto o autoritarismo, posto que a criança, principalmente em sua fase inicial, deve formar-se com a orientação de um adulto. Do contrário, a criança pode estimular ilimitadamente seu desejo de domínio (os vícios da perfectibilidade) e, com isso, pode ativar o querer liberar tudo o que estiver ao seu alcance e isso inclui os próprios adultos, que nessa condição, podem ficar a serviço de seus desejos e fantasia.

Apesar de ser simpático ao empirismo de Locke, Rousseau contrapôs quanto à idade do emprego da razão. Para Rousseau (1995, p. 84), “antes da idade da razão, não se poderia ter qualquer ideia sobre os seres morais ou sobre as relações sociais”, ou seja, não se poderia empregar palavras que se fizesse compreender de modo abstrato.

[...] de todas as faculdades do homem, a razão, que não é, por assim dizer, senão um composto de todas as outras, é a que se desenvolve com mais dificuldade e mais tardiamente, e é ela que se pretende utilizar para

desenvolver as primeiras! A obra-prima de uma boa educação é formar homem razoável, e pretende-se educar uma criança pela razão! Isso é começar pelo fim, é da obra querer fazer o instrumento (ROUSSEAU, 1995, p. 84).

Ao criticar o modo como as crianças de sua época eram educadas, Rousseau contrapõe a respeito da forma como a criança recém-nascida é amarrada, esticada e imobilizada por um longo tempo9. Ou seja, deve-se liberar a criança recém-nascida,

pois “precisa esticar e mover os membros para tirá-los do entorpecimento” (ROUSSEAU, 1995, p. 16), pois, com receio de que os “corpos se deformem como os movimentos livres, apressam-se em deformá-los pondo-os entre prensas” (ROUSSEAU, 1995, p. 16).

Rousseau propõe uma educação infantil em que criança seja tratada como criança e não como um adulto. Denuncia a educação bárbara de sua época:

Não se conhece a infância; no caminho de falsas ideias que se tem, quanto mais se anda, mais fica perdido. Os mais sábios prendem-se ao que os homens importam saber, sem considerar o que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem. [...] Melhor estudar vossos alunos, pois, com toda certeza não os conheceis (ROUSSEAU, 1995, p.4).

Nessa perspectiva, a educação da criança, para Rousseau, é formada de três tipos de mestres:

Essa educação vem-nos da natureza, ou dos homens ou das coisas. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e a aquisição de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas (ROUSSEAU, 1995, p. 8).

O primeiro mestre não depende de nós. O segundo só em alguns aspectos e o terceiro é o único em que somos por suposição, afetados pelo ambiente, objetos e eventos, colocando em forma de questionamento: Quem pode esperar dirigir

inteiramente as palavras e as ações de todos os que rodeiam uma criança?

(ROUSSEAU, 1995, p.9). Para Rousseau, o primeiro mestre seria o desenvolvimento interno das faculdades e dos órgãos (da natureza física); o segundo refere-se às influências externas no desenvolvimento das faculdades e dos

9 Na época de Rousseau as crianças, ao nascer além das fraldas eram envoltas em bandagens e em

panos, presas com as pernas esticadas e com os braços pendentes ao lado do corpo. (ROUSSEAU, 1995, p. 16).

órgãos na educação da criança (físico/ambiente); o terceiro seria como ela irá registrar essas influências externas, ou seja, sua percepção de mundo (formação da subjetividade). Assim, “nascemos sensíveis e, desde o nascimento, somos afetados de diversas maneiras pelos objetos que nos cercam” (ROUSSEAU, 1995, p.10).

Ao descrever a linguagem dos diferentes tipos de choro do bebê, Rousseau (1995) atribui ao momento em que nasce a primeira relação do homem com tudo que o cerca, e o choro como a sua primeira forma de comunicação com “o outro”. Nesse sentido, revela-nos: “Aqui se forja o primeiro elo da longa cadeia de que é formada a ordem social” (p. 51). Então, ao adquirirmos a consciência de nossas sensações, realizamos uma imersão na perfectibilidade quando:

[...] estamos dispostos a procurar ou evitar os objetos que as produzem, em primeiro lugar conforme elas sejam agradáveis ou desagradáveis, depois, conforme a conveniência ou inconveniência que encontramos entre nós e esses objetos, e, enfim, conforme os juízos que fazemos sobre a ideia de felicidade ou de perfeição que a razão nos dá. Essas disposições estendem-se e afirmam-se à medida que nos tornamos mais sensíveis e mais esclarecidos; forçados, porém, por nossos hábitos, elas se alteram mais ou menos segundo nossas opiniões. Antes de tal alteração, elas são o que chamo em nós a natureza (ROUSSEAU, 1995, p. 10).

Segundo Rousseau, adquirimos a consciência de sensações de acordo com a disposição da nossa intencionalidade, ou seja, de acordo com o uso da nossa liberdade, do nosso desejo de procurar ou de evitar os objetos e, também, conforme a relação entre nós e esses objetos. Essa consciência das sensações, antes de se alterarem são, “em nós a natureza”, valores morais inatos como potência, que se alteram forçados por nossos hábitos – uma faculdade da perfectibilidade – alteram- se para mais ou para menos segundo as nossas opiniões ou juízos. Esses conceitos são formados a partir de como somos afetados pelos objetos e pela nossa percepção de mundo (relação com as coisas). Então, “o único hábito que devemos deixar que a criança pegue é o de não contrair nenhum” (ROUSSEAU, 1995, p.47). A educação é aparentemente livre, pois, aos olhos do preceptor (educador) que é ordem da natureza, o exercício no mundo dos sentidos do educando deve acostumar-se a ver, ouvir e sentir as coisas da natureza sem estranhamento. De acordo com Rousseau (1995), “os nossos verdadeiros mestres são a experiência e o sentimento, e o homem só sente bem o que convém ao homem nas relações em que se acha” (ROUSSEAU, 1995, p. 223).

Portanto, na educação da ordem natural de Rousseau, o verdadeiro estudo de seu aluno é a condição humana. Ou seja, começa-se a instrução e a educação quando se começa a viver. O primeiro preceptor é a ama de leite, no caso, hoje a própria mãe. Desse modo, o livro I de Emílio ou, da Educação propõe o cultivo de uma saúde mental e física da mulher que gestará a criança e também da cuidadora. Ambas devem ter qualidades pedagógicas como a disponibilidade, vigilância10

(indireta), autoridade, afetividade e paciência. Nesse sentido, Rousseau salienta a importância da sensibilidade da preceptora na resposta à comunicação do bebê em suas diversas características de choro (de dor, de manha, de sono, etc.). Pois, nesse processo, encontra-se a fonte que influenciará em sua tendência da

perfectibilidade – ou corrupção – ao desenvolver os valores implícitos de pré-moral,

pois, são os primeiros ensaios para a sua sociabilidade (perfectibilidade), ou seja, na relação entre mãe-bebê que influirá na constituição da relação com o outro, mais adiante. Esse processo de comunicação do choro deve se extinguir ou diminuir à medida que a criança passa a utilizar-se da fala, adquirindo a capacidade de expressar suas necessidades ao adulto, pois a necessidade do querer/do desejo que promove o sair do “repouso” é o que a perfectibilidade fará germinar. Esse estágio corresponde do nascimento até aos dois anos de idade.

Nessa fase de desenvolvimento da criança, os valores e obrigações dos pais são enaltecidos e, para isso, Rousseau mostra-nos que: “um pai quando gera e sustenta filhos, só realiza um terço de sua tarefa, ele deve homens à sua espécie, à sociedade deve homens sociáveis, cidadãos ao Estado” (ROUSSEAU, 1995, p. 25), e sobre a responsabilidade paterna afirma que: “[...] não há pobreza, trabalhos nem respeito humano que o dispensem de sustentar seus filhos e de educá-los ele próprio” (p. 25). Considerando-se a época, pode-se dizer que atualmente, esse compromisso de responsabilidade por lei, recai sobre ambas as partes.

Rousseau nutriu admiração pela educação e pela constituição da família espartana e, por isso, a presença da influência dela na sua proposta pedagógica. Assim, o fortalecimento do corpo e afloramento da afetividade do Emílio serão possibilitados com o observar, experienciar e imitar ações, situações que surgirem

10 Vigilância indireta, pois, para Rousseau o(a) preceptor (a) tem que estar atento a educação da

criança de forma indireta, em termos de disponibilizar somente experiências para o desenvolvimento da natureza humana.

na natureza e as que forem determinadas pelo preceptor. O filósofo genebrino informa-nos sobre a vocação que na ordem natural, sendo os homens todos iguais, é a “da condição de homem e quem quer que seja bem-educado para tal condição não pode preencher mal as outras relacionadas com ela” (ROUSSEAU, 1995, p. 14). Por isso, até o presente momento, a educação do Emílio é através das relações com as coisas, em que o preceptor(a) atua de forma indireta, proporcionando-lhe a liberdade diretiva.

Aliados aos pensamentos de Rousseau precedem os estudiosos a respeito da pedagogia centrada na criança. A exemplo disso, o pedagogo Vassili Sukhomlinski (1985), considera que “o emocional é a única possibilidade de desenvolver a inteligência, a única possibilidade de instruir a criança e preservar-lhe a infância” (p. 13). Sukhomlinski e os seus colegas, professores da escola Pavlich, constituíram o método denominado “o despertar emocional da razão”. A práxis desse instrumento despertava a mente infantil e, de forma indireta, dirigia-se ao sentimento e só através dele, alcançava a mente (p.13). Mas, também, influíram de forma direta ou indiretamente, outros pedagogos. Desses, a simpatia da educação com liberdade no desenvolvimento natural das faculdades, que se submete somente a princípios fundamentais para a ordem social. A exemplo disso, os preceitos de Basedow e os métodos de Pestalozzi.

Sentindo a liberdade, a criança, em contato com a sua natureza humana, na natureza, obtém por meio da experiência lúdica, em seu mundo infantil, os atos de imitar, criar, produzir, repete todas as ações de um adulto (educador, pai e mãe), bem como constrói relação com as coisas. No brincar de faz de conta, o exercício para o desenvolvimento da potência e de atividade acontece (ROUSSEAU, 1995 p. 99). Educa-se a criança a “ser rainha de si mesmo”. Nos dias atuais, estamos a concordar com Dalbosco, quando nos mostra que, no primeiro livro, Rousseau nos oferece considerações que podemos avaliar como significativas relacionadas a essa temática:

Quando falamos no processo formativo-educacional humano, pensamos, de imediato, na relação entre pai e filho, entre adulto e criança e, no que tange à educação formal, na relação entre professor e aluno. Qualquer uma destas situações caracteriza aquilo que denominamos, do ponto de vista pedagógico mais amplo, de relação entre educador e educando. Saber quando ‘intervir’ e quando ‘deixar acontecer’ é uma questão decisiva desta relação, a qual se traduz, no contexto da primeira infância, na tensão entre

as necessidades da criança e os cuidados do adulto (DALBOSCO, 2011, contracapa).

A criança, enquanto educando, ao longo de seus doze primeiros anos, com o gosto de sua liberdade (direcionada), experiencia ela própria de forma natural todos os seus sentidos: paladar, sensação, olfato, audição, tato, senso de percepção, atenção, memória, movimentos do corpo. Além disso, adquire todos as defesas naturais contra as intempéries. Ou seja, fortalece o corpo e apreende de tudo que possa necessitar em sua formação pré-moral ou na educação negativa11. Em outras

palavras, sem fomentar o seu espírito e ser “o que é”. A partir dos seus doze anos, Emílio passa a ser acompanhado por uma educação direta oferecida pelo seu preceptor que é o próprio Rousseau.

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