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PARTE II REDIMENSIONANDO O PROBLEMA DO ATRASO DO PAÍS: EDUCAÇÃO, SAÚDE E DESENVOLVIMENTO

EUGENIA E HIGIENE COMO PRÁTICAS DE MEDICALIZAÇÃO SOCIEDADE

3 EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

Pela breve análise sobre a influência eugênica na educação, nas décadas de 20 e 30, do século XX, pudemos perceber que esta manifestou-se de diversos modos na cultura escolar, associada a questões higiênicas e raciais. Com base no pressuposto eugênico e higiênico, vimos o quanto a tese do branqueamento, a crença na transmissão de caracteres adquiridos, a pedagogia centrada na capacidade biológica e a higienização dos costumes foram importantes aspectos constitutivos da cultura escolar, tendo como modelo ideal de formação o homem/aluno branco ou branqueado, normal, limpo, forte, eficiente e capaz142.

No período pós-guerra, devido aos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e a aos avanços dos conhecimentos relativos à genética e à hereditariedade, algumas instituições buscaram reduzir ou eliminar os preconceitos raciais e redimensionar a influência da hereditariedade no entendimento acerca da constituição do indivíduo. Diante desses acontecimentos, somos levados ao entendimento de que houve eliminação do discurso eugênico nas ações e questões educacionais. Entretanto, ao focalizarmos a formação de professores primários, percebemos a presença desse discurso eugênico como conteúdo científico, não central, mas importante na formação docente. Mesmo não sendo central, é fato que, no pós-guerra, a eugenia esteve presente no currículo de formação de professores primários, como conteúdo científico a ser ministrado, e como fundamento teórico e/ou procedimento a ser incorporado em determinados comportamentos sociais e educacionais.

Conforme dito na Introdução, o objetivo deste trabalho consiste na explicitação e problematização do modo de apresentação desse discurso e na explicitação da relação eugênica com a questão racial, higiênica e sanitária, como parte de um projeto de formação docente, entre 1946 e 1970, que, por sua vez, estava ligado a um plano maior de reconstrução educacional para o desenvolvimento nacional. Noções sobre desenvolvimento, subdesenvolvimento, crise, atraso, progresso, consciência nacional, reconstrução educacional e nacional permearam os debates intelectuais políticos e educacionais que buscaram, nesse período, pensar a nação, buscando compreender as razões de seu atraso e propor alternativas viáveis rumo à reconstrução e à redemocratização do Brasil.

Neste capítulo, procuramos dimensionar a educação no âmbito dessa conjuntura centrada no desenvolvimento e na redemocratização que se estabeleceu no Brasil, a partir de 1945, focalizando a questão da reconstrução nacional e o papel educacional nesse projeto.

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Depois de compreendidas uma série de questões acerca dessa conjuntura, nosso objetivo final será localizar o debate sobre a formação docente nesse período.

O período no qual está inserido nosso objeto de estudo, sobretudo a década de 50, do século XX, foi marcado por grandes transformações no campo social, cultural, econômico, com reflexos no campo educacional. Se pudéssemos dizer que é possível formar uma imagem desse período, seria a imagem de mudanças em todo o mundo ocidental, em âmbitos como o técnico, político, científico, produtivo, consumo, comunicação e, em conseqüência, drásticas mudanças no modo de vida em sociedade.

A partir da década de 50, do século XX, há grande desenvolvimento dos setores de comunicação como rádio, imprensa, televisão (criação de programas de televisão, aquisição de aparelhos de TV), aquisição de aparelhos domésticos e da indústria automobilística (KONDER, 1998; XAVIER, 1999). De modo geral, tais fatos nos permitem perceber o alvorecer da tecnologia e a crença em seu poder de transformação social.

O processo de industrialização e a generalização do consumo acirravam a euforia desenvolvimentista ao mesmo tempo em que, modificando hábitos e padrões de comportamento coletivo, anunciavam o início de uma era, inaugurando um estilo de vida, mais urbano e por isso mesmo, percebido como mais moderno (XAVIER, 1999, p. 72).

Mais urbano também, porque cada vez mais pessoas migravam das áreas rurais para as cidades. Entretanto, é preciso registrar que, até a década de 60, do século XX, o país era visto como uma terra de contrastes, lugar de coexistência de dois brasis (XAVIER, 1999), pois 64% dos habitantes do país viviam no campo (KONDER, 1998). De um lado, havia o crescente processo de industrialização e urbanização, do outro, a vida rural, a permanência de hábitos e técnicas consideradas tradicionais.

Com base em uma percepção dual da realidade do Brasil, grande parte da intelectualidade brasileira voltou-se para o entendimento do processo de mudança que sinalizava uma espécie de transição de um país de feição rural para um país de caráter urbano e industrial (XAVIER, 1999). Assim, “[…] ampliando a dualidade interna inscrita na oposição rural/urbano ou arcaico/moderno para o nível das relações externas, a visão que se

tinha do mundo era também dual.” (XAVIER, 1999, p. 69). O mundo também estava dividido

a partir das relações estabelecidas entre países desenvolvidos, portanto, considerados centrais, e aqueles como o Brasil, países subdesenvolvidos, portanto, considerados periféricos.

O fato de o Brasil ser um país em processo de industrialização, com uma realidade formada pela coexistência do urbano e do rural, evidenciou outras dualidades referentes às

oposições arcaico/moderno, tradição/modernidade, atraso/progresso, desenvolvimento/subdesenvolvimento. Assim, ao procurarmos situar o projeto educacional, em meados do século XX, tornou-se necessário evidenciar melhor estas questões. Entendemos prioritário explicitar o modo de compreender a noção de desenvolvimento e de progresso, uma vez que, neste momento, evidenciaram-se nos debates sociais, políticos e educacionais a compreensão de uma diferenciação de sentido entre os dois conceitos. Tal evidenciação nos interessa, pois, se explicita neste período, uma distinção entre a escolarização da população como irradiadora de progresso (que desde o século XIX norteou os projetos educacionais) e a escolarização para o desenvolvimento da nação (XAVIER, 2007), que, a partir de então, passou a nortear os projetos educacionais.

O conceito de desenvolvimento contrasta com o de progresso:

[…] tal como êste se veio definindo no curso do século XVIII. A idéia de progresso é o conceito secularizado da providência divina. Característica da ilustração e do deísmo transcendente peculiar a esta, a idéia de progresso implica a contínua incorporação de valores ao longo de um processo em si mesmo ilimitado de descobrimento e de criação de valores (JAGUARIBE, 1969, p. 14).

Diferentemente do progresso, o desenvolvimento não coloca os valores como algo ilimitado e que transcende ao processo social. Mas entende a incorporação de valores, no desenvolvimento, como explicitação e atualização de possibilidades virtualmente preexistentes na sociedade. Essas possibilidades preexistentes são o modo de exercício da racionalidade, que persistem, quer se trate de desenvolvimento espontâneo ou programado (JAGUARIBE, 1969)143. Portanto, diferentemente da noção de progresso, a

[…] a idéia de desenvolvimento, que é uma segunda secularização, radical e imanentizada, do conceito originário da providência divina carreia a conotação da explicitação e atualização de possibilidades virtualmente preexistentes. Implica, por isso, um sentido de limitação, em têrmos qualitativos, e uma pauta de legalidade ou validez, em sentido qualitativo. Não se pode alcançar, para uma comunidade e por um período determinado senão determinados índices de desenvolvimento. Não se pode promover o desenvolvimento senão dentro de certas normas e conforme certos critérios, ditados pelas condições em que efetivamente se encontra a sociedade a desenvolver (JAGUARIBE, 1969, p. 14).

Essa noção de desenvolvimento como projeto modificou o modo de pensar o problema do atraso das sociedades e redimensionou o entendimento acerca da antinomia tradição/modernidade em relação às mudanças sociais. Essa visão só foi possível, a partir de

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diversas análises de experiências de modernização que evidenciaram o fenômeno do desenvolvimento desigual, em contraposição ao fenômeno do desenvolvimento homogêneo, derivado da crença iluminista no progresso. Tal evidenciação foi possível devido a diversos estudos que examinaram vários casos históricos de desenvolvimento tardio, fundamentados na crítica à visão clássica da modernização.

Segundo Reinhard Bendix (1996), estudos sobre mudança social de acordo com esta visão clássica da modernização operam tipicamente com um modelo de antes-e-depois da sociedade considerada. Desse modo, a transição de uma sociedade a outra envolveria o declínio da tradição e a ascensão da modernidade. Segundo este autor, os estudos sobre modernização formulados pela tradição intelectual estavam fortemente ligados à teoria da evolução social, fundamentados em três princípios básicos: formulação dos conceitos tradição e modernidade como termos mutuamente excludentes; crença na mudança social como produto exclusivo de forças sociais internas; e crença no fato de que a industrialização teria os mesmos efeitos onde quer que ela viesse ocorrer 144.

Criticando esse paradigma evolucionista da mudança, ao longo do século XX, surgiram vertentes de investigação que, ao examinar casos históricos de desenvolvimento tardio, a partir de diferentes trajetórias de industrialização, mostraram a heterogeneidade do processo de modernização145. A partir desta perspectiva, o modo de conceber o problema do atraso de determinadas sociedades, em relação às sociedades consideradas desenvolvidas, é redimensionado, contribuindo para o entendimento de que os países periféricos poderiam alcançar o desenvolvimento econômico sem repetir a trajetória histórica dos países desenvolvidos industrializados.

Uma dessas vertentes dessa investigação teve como fundamentação, a crença disseminada, em meados do século XX, de que os países periféricos poderiam superar o atraso sem, necessariamente, vivenciar a trajetória dos países industrializados, queimando etapas e passando, assim, aos saltos, de uma fase histórica a outra (DULCI, 1999). Esse raciocínio, na avaliação de XAVIER (2007, p. 79) contribuiu na projeção de “[…] argumentos políticos e científicos que atribuíram à industrialização e ao avanço tecnológico o

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Bendix (1996) ao criticar esse paradigma evolucionista da mudança social, considera que o processo de industrialização leva em conta a combinação de mudanças intrínsecas com respostas a estímulos extrínsecos, e também, a importante participação do governo nesse processo. Portanto, a industrialização não teria os mesmos efeitos em todos os lugares que ocorresse, pois seria preciso considerar o timing e a seqüência como variáveis cruciais. “Num certo sentido, é verdadeiro dizer que, por causa do timing e da seqüência, a industrialização não pode ocorrer do mesmo modo duas vezes.” (BENDIX, 1996, p. 370).

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papel de instrumentos de aceleração do tempo histórico, considerado o seu potencial de transformação das realidades sociais, políticas e culturais”.

Para que isto pudesse ocorrer, entre outras questões seria necessário remover os obstáculos ao desenvolvimento, através de planejamento estratégico e da racionalização das ações públicas. A partir desta lógica de compreensão, a industrialização passou a ser entendida como o caminho para a superação do atraso e o alcance do desejado

desenvolvimento econômico das sociedades periféricas, uma vez que, “[…] a idéia de

desenvolvimento abrange o sentido de um aperfeiçoamento qualitativo da economia, através de melhor divisão social do trabalho, do emprego de melhor tecnologia e da melhor utilização

dos recursos naturais e do capital.” (JAGUARIBE, 1969, p. 13).

Nesse processo de substituições de fatores ou remoções de obstáculos entendidos como condições de desenvolvimento nas sociedades avançadas, considerados atalhos à modernidade, os governos têm ou tentam ter um papel decisivo (BENDIX, 1996). Tal desempenho por parte dos governos tentaria preencher o abismo existente entre as sociedades atrasadas e as sociedades avançadas, como diz Bendix (1996), pela adoção de itens ad hoc de modernidade. De acordo com esse autor, é típico das sociedades atrasadas investirem fortemente na educação para superar o abismo e o engajamento da intelligentsia em uma intensa busca que visa encontrar uma saída para o atraso de seu país. A educação é assim

entendida como um meio de modernização “[…] que é mais prontamente disponível do que o capital requerido pela tecnologia moderna.” (BENDIX, 1996, p. 377).

O investimento na educação por parte de uma intelligentsia “[…] reflete-se num rápido crescimento de esforços para superar o atraso do país por tentativas de reconciliar o fortalecimento evidenciado pela sociedade adiantada com os valores inerentes às tradições

nativas.” (BENDIX, 1996, p. 377). O investimento pesado em educação popular e superior é

devido à crença de que esta representa um atalho mais rápido, fácil e menos custoso para os benefícios alcançados por uma sociedade industrial (BENDIX, 1996). É por este motivo que os governos de sociedades atrasadas estimulam a educação. Os intelectuais não são apenas espectadores estranhos ao desenvolvimento, mas desempenham o papel de líderes que impulsionam tal processo.

No Brasil, em meados do século XX, a educação foi entendida como uma medida racional e prática exigida pela nova ordem econômica e social emergente. Abaixo, procuramos compreender como foi compreendida a educação e empreendidos esforços na reconstrução de um plano educacional para o desenvolvimento do país. Pretendemos com isso localizar a contribuição da Eugenia na construção desse projeto.

3.1 A Reconstrução Educacional para o Desenvolvimento do País

No caso brasileiro, desde 1945, quando se inicia o processo de redemocratização do país, foram reforçadas as bases do nacional-desenvolvimentismo. No entanto, o pensamento desenvolvimentista atingiu seu auge na década de 50, do século XX, no governo Juscelino Kubitschek (XAVIER, 1999). Esta ideologia desenvolvimentista visava promover o ingresso do país na modernidade e resolver problemas como justiça social e construção da democracia, enfatizando o desenvolvimento industrial, o planejamento e também outros elementos, como o recurso ao capital estrangeiro no país, a racionalidade da gestão pública – criando, por exemplo, órgãos de assessoria técnica que diagnosticassem precisamente a situação do país146.

A ênfase no desenvolvimento social e no planejamento econômico das sociedades periféricas, como no caso do Brasil, país em processo de industrialização, fora incentivada por duas entidades ligadas às Nações Unidas: a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), com sede no Chile e fundada em 1948 e o Centro Latino Americano de Ciências Sociais (CLAPCS), com sede no Rio de Janeiro e fundada em 1950 (XAVIER, 1999).

A CEPAL tinha como preocupação básica a explicação do atraso dos países da América Latina em relação aos países considerados desenvolvidos (MANTEGA, 1987). Portanto, buscava formas de superar este atraso, enfocando o que era peculiar à estrutura sócio-econômica dos países periféricos e ressaltando os obstáculos ao desenvolvimento econômico147. Segundo Mantega (1987), esse pensamento desenvolvimentista floresceu na América Latina nas décadas de 40 e 50, do século XX, mobilizando um grupo de intelectuais que, de modo variado, defendia tanto a industrialização, quanto a consolidação do desenvolvimento do Capitalismo em seus países. Na década de 50, do século XX, acentuou-se a produção teórica dessa corrente desenvolvimentista, que defendia a intervenção do Estado

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Esse pensamento desenvolvimentista encontra-se no campo da economia política, fundamentado principalmente no pensamento keynesiano. “O Keynesianismo é uma doutrina ativista, que preconiza a ação do Estado na promoção e sustentação do pleno emprego em economias empresariais” (CARVALHO, 2008, p. 571). Opõe-se ao liberalismo neoclássico, pois, segundo a ótica keynesiana, “[…] as forças de mercado, deixadas a si mesmas, estariam longe de promover a alocação ótima de recursos, causando, pelo contrário, capacidade ociosa, desperdício e desemprego. Nesse contexto, fazia-se necessária a intervenção mais decidida do Estado na economia, não mais apenas enquanto administrador da coisa pública (defesa, educação, justiça, etc.) ou mero regulador das atividades privadas, mas também enquanto agente direto da produção, aumentando os investimentos e gastos da sociedade (tidos como insuficientes no capitalismo avançado), privilegiando determinados setores em detrimento de outros, enfim, orientando a estrutura econômica para uma produção mais equilibrada.” (MANTEGA, 1987, p. 26).

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A CEPAL focalizava as transações comerciais entre países periféricos e centrais; com isso, questionava a divisão internacional do trabalho e o destino atribuído aos países subdesenvolvimentos (MANTEGA, 1987).

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